segunda-feira, 13 de julho de 2015

É preciso estranhar Clarice

Clarice escreve como que em espanto, como se cada palavra surgisse de repente no papel e precisasse ser dita. Mas é precisamente nos não ditos dos seus textos que se insinua a possibilidade de nos fazermos sentir naquilo que realmente nos interessa. É como se uma batalha (ou quem sabe uma dança) fosse travada com a palavra para que dela, através dela, pudesse surgir o que de fato se pretendia anunciar. E o que se pretendia anunciar?



É PRECISO ESTRANHAR CLARICE
Danielle Mezzari -  em "Obvious - magazine"

Quando entrei em contato com a literatura de Clarice entrei em choque. 
Era ainda menina e me perguntava o que era aquilo que lia, tão profundo e suave. Tão direto e indeciso. 
Acho necessário fazer um esforço no sentido contrário da pretensão da pergunta formulada acima. 
Ao invés de nos perguntarmos o que pretendia anunciar Clarice Lispector com seus textos, o que ela queria dizer, deveríamos começar a nos indagar sobre o que nós pretendemos com eles. O que somos capazes de criar a partir do contato com suas obras?
Alguma coisa fica por ser dita. Alguma coisa dita ficou por dizer. 
Clarice não nos dá respostas, não traça caminhos a serem percorridos e não há nenhum sentido já dado em seus textos. Pelo contrário, é quando nos deixamos tocar, ou quando alguma coisa no texto encontra algo em nós que um sentido, ou qualquer outra coisa, é produzido. 
Quero dizer que não há nada pronto em sua obra, apenas para ser contemplado ou encontrado. 
O que há é o vislumbre de uma dor, de uma potência de dor. 
O que há é a possibilidade de produção de sentidos. 
A autora sozinha, seus textos, não transmitem nada. É só no contato com um outro que as palavras ganham corpo, ganham vida. É só através de um outro que um texto pode ter um direcionamento e uma aplicação. Cabe a nós, enquanto leitoras e leitores, a partir do que temos, de nossas experiências, produzir novos caminhos e interpretações.

Acredito na potência do silêncio. Silêncio enquanto condição para a produção de sentidos. 
Eni Orlandi em seu livro “as formas do silêncio” nos diz que este não se refere ao vazio, mas que ele é o indício de uma totalidade significativa. 
O silêncio diz da produção de possibilidades, de conexões, de relações que muitas vezes transgridem, subvertem o efeito esperado por quem escreveu. 
O silêncio faz alusão a uma totalidade que a palavra mobiliza na tentativa de fazer referência e atribuir significado a uma parte desse todo. É, portanto, só na palavra que o silêncio se manifesta, se esconde e cria espaços que a palavra não consegue dizer.

Uma das questões que passaram a me incomodar após o contato com Clarice diz respeito justamente à palavra. 
A palavra é paradoxal desde o seu nascimento. No momento em que designo algo estou ao mesmo tempo a potencializar e a limitar o objeto designado. Potencializo ao lhe atribuir um significado e limito ao negar-lhe o movimento, o deslizamento por entre outros sentidos. 
Parece-me que Clarice enfrenta esse dilema, paradoxo intransponível, e busca criar a não palavra dentro da própria palavra. A palavra que nega a si própria enquanto capacitada de designação, do conhecimento necessário. 
Clarice subverte a própria língua para nela criar uma oscilação, uma linguagem que, se não é outra coisa, também não é mais a mesma.

Deleuze fala sobre a capacidade que a literatura possui de produzir uma minoração na língua, de criar um devir-outro da língua, “uma linha de feiticeira que se escapa do sistema dominante”.
Para fazer isso é preciso um pouco de estranheza. É preciso estranhar o mundo, estranhar a si mesma.

A escritora e professora Noemi Jaffe nos fala um pouco sobre isso. Ela nos explica que o estranho ou o estrangeiro é aquele que é de fora, que não pertence a um determinado lugar e que, por este motivo, olha as coisas com um olhar de espanto, como quem vê algo pela primeira vez. 
Essa “estrangereidade” é marcante na obra de Clarice. No entanto, ela relativiza essa relação fora-dentro. 
É possível ser estrangeira no seu próprio país, na sua própria cidade. É possível ser um estrangeiro de si, em si. 
Clarice estranha o que é dado como óbvio, o que é naturalizado e, portanto, tornado invisível no nosso cotidiano. Esse estranhamento faz com que ela possa olhar a si mesma e ao mundo a partir de perspectivas outras e criar a partir de outros lugares.

É preciso que também nós, enquanto leitoras e leitores, estranhemos Clarice. 
Pode ser que o impacto seja tanto que nos afastemos de imediato frente ao desconhecido de sua obra. No entanto, talvez desse encontro prolifere caminhos e se crie outros sentidos para coisas que já estávamos tão habituadas/os a ver.

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