EU NÃO GOSTO DE NADA QUE O MUNDO GOSTA
Eberth Vêncio - colunista de "Revista Bula"
Eu não gosto de sonhar dormindo mais do que eu sonho ao permanecer acordado.
Eu não gosto do altruísmo narcisista das redes sociais.
Eu não gosto de carinho quando estou nervoso. Eu não sou um cãozinho faminto que rola e late.
Ainda que seja amargo como eu, eu não gosto de chocolate.
Eu não gosto de esconder os ovos de Páscoa das crianças nos arbustos do jardim.
Eu não gosto de brincar com os sentimentos dos outros.
Eu não gosto de ficar bêbado até dizer a verdade.
Eu não gosto de revelar os meus deslizes sexuais a um padre.
Eu não gosto das farras animais.
Eu não gosto de rodeio, de meter as esporas.
(...)
Eu não gosto de puteiros, de igrejas e da maçonaria.
Eu não gosto de tanto mistério acerca da vida e da morte.
Eu não gosto da incompreensível euforia do carnaval.
Eu não gosto do réveillon.
Por mais estranho que possa parecer, eu não gosto de me confraternizar com estranhos.
Eu não gosto de feriados prolongados.
Eu não gosto de enforcar sextas-feiras.
Eu não gosto de mendigar atestado médico para salvar um dia.
Eu não gosto de entrar num elevador sem dizer “bom dia”.
Eu não gosto de seguir a onda.
Eu não gosto de fazer a ola no estádio.
Eu não gosto de estagiárias burras e desinibidas.
Eu não gosto de jogar na loteria.
Eu não gosto de sonhar em ficar rico.
Eu não quero uma Ferrari, uma ilha só pra mim ou um novo par de tetas.
Eu não gosto das mutretas.
Eu não gosto de operar milagres no SUS.
Eu não gosto de assistir a uma sessão de espancamento do MMA.
Eu não gosto de sangue no tatame.
Eu não gosto de ketchup no salame.
Eu não gosto dos filmes do Cobra e do Jean-Claude Van Damme.
Eu não gosto da ditadura do silicone.
Eu não gosto das cicatrizes que, de tão perfeitas, nem parecem cicatrizes.
Eu não gosto das caras recauchutadas das atrizes e das madames.
Eu não gosto da farsa de uma toxina botulínica sobre o sorriso.
Eu não gosto de dizer “eu te amo”, da boca pra fora, como se fosse “me passa a margarina”.
Eu não gosto de rissoles frios e de festa infantil.
(...)
Eu não gosto do bife bem passado.
Eu não gosto daquele tempo em que eu era feliz e não sabia.
Eu não gosto de enaltecer o futebol como se ele fosse arte.
Eu não gosto do tira-teima da TV.
Eu não gosto de enaltecer o erro, esmiuçá-lo: o beiço de pulga, a pontinha da chuteira, o passinho-a-mais-à-frente… Eu acho deplorável massacrar um trio de arbitragem.
Eu não gosto de ler as bulas dos remédios.
Mesmo me sentindo — às vezes — um vendido, eu não gosto de ler os livros mais vendidos.
Eu não gosto das dinâmicas em grupo, do esforço concentrado, de rezar o terço, de fazer suruba.
Eu não gosto de novena, de novela e da dança da manivela.
Eu não gosto de assistir às retrospectivas de final de ano.
Eu não gosto da santa hipocrisia que reina em dezembro.
Eu não gosto de fazer planos em janeiro.
Eu não gosto do show da virada do Roberto Carlos.
Neste quesito, em particular, eu sou, sim, um cão que abomina foguetório.
Eu não gosto de negociar partilhas durante um velório.
Eu não gosto de dar esmolas no semáforo.
Eu não gosto de me sentir só no meio da multidão animada.
Por fim, de tudo o que o mundo gosta, eu gosto de quase nada.
* * *
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