Acariciando as páginas que se vão — ou qual é o papel do papel
Luiz Schwarcz - 28 setembro 2016
Vocês já sabem o que penso sobre o aspecto tátil do livro. Num dos primeiros posts desta série, falei sobre o momento em que um editor recebe o livro da gráfica e o cheira.
Comentando sobre o carisma que os livros carregam, que deve ser respeitado quando se elabora uma capa, também destaquei o componente material da edição como parte fundamental do trabalho do editor.
Na minha opinião, ao pensar no formato e no aspecto de um livro, estamos sempre tentando unir espírito e forma, de certa maneira por entender que o produto com o qual trabalhamos não é um objeto qualquer — ele permanece vivo e mutante mesmo depois de impresso.
Chego agora à questão que me foi colocada por Wellington Machado. Tentarei escrever algumas linhas sobre o papel do papel nas edições dos livros físicos, já que hoje convivemos também com o livro digital, aquele que liga no “on” do nosso tablet e some da tela sozinho quando vamos dormir. Aliás, é curioso pensar — e sem qualquer demérito para com as edições eletrônicas — que livro digital, imagino, cai menos da nossa mão quando adormecemos lendo.
Suponho que por termos o costume de desligar o tablet ao finalizar a leitura — eu pelo menos desligo — a ocorrência de cair no sono com o livro digital na cama deve ser bem menor. Talvez terminamos a leitura do dia, quando utilizamos aparatos eletrônicos, mais despertos do que com o livro físico, com quem já nos acostumamos a passar a noite juntos.
Vários componentes do papel usado em um livro passam desapercebidos a muitos leitores, mas não são desimportantes.
Creio que, dado o seu aspecto corpóreo, o livro físico valoriza mais essa relação carismática sobre a qual falei em outro post. Essa pode ser uma das razões de o hábito de ler edições no formato convencional ser tão duradouro, e o apocalipse do livro, como ouvimos dizer desde o advento do rádio, não ter acontecido como previam os mais chegados aos constantes temores com o final dos tempos.
Seguindo essa linha de pensamento, é interessante pensar em alguns aspectos materiais, por exemplo: por que será que, no contato com o livro físico, é tão melhor ler em páginas não tão brancas?
Por que será que o toque com os dedos em um papel mais poroso cria uma sensação diferente para a leitura?
Recentemente lançamos o livro Viva a língua brasileira!, de Sérgio Rodrigues, e usamos um papel totalmente alvo, com a intenção de manter mais identificadas as cores das ilustrações em preto e laranja, que acompanham a edição.
Ao receber o primeiro exemplar, confesso que tive um choque.
Desde o segundo ano da editora passamos a usar, de maneira crescente, o papel de cor creme, desenvolvido pela Suzano, em parte talvez devido a um pedido ou incentivo da Companhia das Letras.
Naquela época eu já me incomodava com as edições brasileiras, todas impressas em papel offset convencional, onde as palavras vibram mais, devido ao contraste entre a tinta escura e a página tão branca. Nos outros países isso não ocorria.
As edições em capa dura já há muito tempo eram impressas em papel de tonalidade creme, e os pockets usavam um papel-jornal mais caprichado, acinzentado.
Sabe-se que o papel mais escuro, ou melhor, a diminuição do contraste entre papel e tinta que se dá com essa tonalidade, permite maior descanso para os olhos. Mas, para mim, não é só isso que ocorre. Ao marcar as páginas brancas com a tinta durante a impressão, aparentemente realizamos um ato definitivo. O que está impresso assim permanecerá para sempre, o que está dito não pode ser corrigido, apenas em uma futura edição, ou em um livro que contenha uma revisão das ideias expostas.
Nesse sentido, o preto no branco potencializa esse sentido peremptório inerente às edições físicas; o contraste exacerbado entre papel e tinta tem quase um toque de declaração, transforma o livro em statement, o que, no meu entender, está longe do ideal.
Acreditar que algo escrito não passará por elaborações pessoais diversas ou imaginar que a página marcada pela tinta não será remarcada com a imaginação dos leitores é um erro típico de escritores donos da verdade, que querem permanecer senhores da sua própria criação.
Embora a escolha do papel seja um atributo do editor, ele, o papel, de certa forma, representa os olhos ou a mente dos leitores, abertos para conhecer uma história ainda não contada. De alguma maneira, somos nós leitores os papéis em branco, é esta a posição na qual devemos tentar nos colocar previamente, antes de nos encontrarmos com a imaginação do escritor.
Assim, um papel mais próximo da tinta, que diminua o contraste entre o que é dito e o que se espera ouvir, manifesta maior igualdade entre escritor e leitor, garantindo a harmonia necessária para que um livro solte também a imaginação de quem lê.
Seguindo a mesma linha, acredito que um papel poroso, menos liso e menos uniforme, tem também uma função importante. Ao tocarmos uma página antes de virá-la, sentindo na pele suas irregularidades, inconscientemente nos colocamos em contato com algo que pode mudar durante e após a leitura e lembramos que o livro traz imperfeições que o tornam mais humano.
Antigamente um livro tinha que ser aberto pelo próprio leitor com um cortador de páginas. Era necessário separar as páginas, uma a uma, já que estas vinham agrupadas, demarcando um trabalho final que cabia ao leitor, e não ao autor nem mesmo ao editor ou ao gráfico.
Cada página trazia, assim, uma dimensão diferente, todas elas marcadas pela imperfeição do corte feito à mão.
O livro visto de lado não era uniforme, cada folha tinha um tamanho, como que simbolizando as viradas de uma história e o percurso imprevisto da imaginação de quem lê.
O livro apresentava-se como fisicamente mutante, nos intervalos assinalados pela mudança de página, se não a cada linha ou palavra.
Por vezes demoramos dias para voltar a um livro, e tudo que parecia imutável no papel mudou devido a uma nova condição do leitor ou da leitora.
O desenrolar de um romance acompanha acontecimentos por vezes dramáticos em nossas vidas. Podemos começar uma história casados e terminá-la solitários, ou tendo nos despedido de alguém importante em nossa vida.
Será que a página virada é diferente apenas pelo novo sentido agregado pelo autor, pela continuidade da história?
Ainda hoje, algumas editoras americanas como a Knopf mantêm seus livros com acabamento irregular nas bordas das páginas, fazendo com que eles se assemelhem às edições que exigiam a abertura individual pelo leitor.
Acho maravilhosos os livros que nos lembram desse tempo, que marcam fisicamente as diferenças que virão com a leitura, aos poucos.
Não quero dizer que o livro era irregular de propósito, para marcar o que imagino ser inerente ao ato da leitura, mas sim que esses sentidos poderiam ou podem ser atribuídos ao formato material de um livro, já que os símbolos não ganham existência por vontade ou intenção de alguém, mas pela riqueza espontânea de nossa vida interior e social.
Por tudo o que tenho dito neste espaço, é fácil verificar o quanto defendo o aspecto simbólico das edições, o quanto penso no livro como algo vivo, objeto de uma criação coletiva, que adiciona os leitores aos criadores originais, na posição mais igualitária possível.
Se talvez os tenha cansado, caros leitores, com a repetição dessas ideias, com meu apego a detalhes aparentemente tão pequenos, peço que me desculpem.
Não sei se as ideias começam a escassear, se esse espaço já começa a anunciar o seu próprio final. Quem sabe?
Como editor, estou muito mais acostumado a ler do que a escrever. Por isso, por vezes me parece difícil ser sempre original ao tentar expressar o que penso.
Sei, no entanto, que leio os livros como todos os leitores, de forma pessoal e única, assim como viro uma página tentando tirar dela o máximo que posso, acariciando o papel antes de me despedir dele, mesmo que por um brevíssimo instante, e assim partir para o que me espera logo a seguir.
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