segunda-feira, 31 de julho de 2017

Publicidade 'literária'

Sabonete Phebo: O último resquício de civilização em um mundo de barbárie


O homem ao meio da selvageria apega-se ao último sinal de refinamento como uma criança aperta contra o peito seu bichinho de pelúcia favorito. Na mão do homem, bem guardado pelos dedos cerrados, repousa um sabonete Phebo. Sem dúvida a magnum opus da Granado Pharmacia, empresa responsável pelo sabonete entre dezenas de produtos, o Phebo é uma joia rara no comércio brasileiro. Sua linha mediterrânea (“Figo da Turquia”, “Tuberosa do Egito”, Alfazema Provençal”, “Cedro do Marrocos” e “Limão Siciliano”) transcende a responsabilidade com a higiene pessoal do corpo, da virilha, do bumbum e atrás da orelha. 
Os sabonetes Phebo são uma viagem no tempo, são o cheiro de avós, uma homenagem à tradição. O tipo de sabão que ultrapassa a pele e limpa até a alma.

Eu não vou julgar se, na intimidade do box embaçado, você abrir a boca e morder o Phebo. 
Morde, vai. Mastiga. Sob efeito do Phebo, você se transporta dessa miséria, do aluguel, dos boletos de contas empilhados em cima da escrivaninha (cheia de adesivos de marcas de skate) que você tem desde os 14 anos. Sob efeito de Phebo, você vira um barão balonista voando pelos ares cantarolando uma melodia do Rimsky-Korsakov. 
Só a caixinha dos sabonetes Phebo já é mais elegante e sofisticada que a maioria dos itens de decoração das nossas casas

Disco de vinil na parede é o equivalente decorativo do blazer com camiseta de cultura pop, um equívoco assustadoramente popular que deixa seu quarto com cara de bar de rock do interior. 
Outro cenário recorrente: alguém critica Romero Britto e você pensa “caraio, que artista de altíssimo calibre intelectual essa pessoa gosta? Rothko? J.M.W. Tuner?” e aí descobre que ela coleciona toy art, boneco, bonecrinho, hominho. 
A arte em E.V.A., mesmo feia, é a menos pior das três, pois já estimulava o lado criativo da sua tia-avó anos antes da popularização do livro para colorir de adultos. 
O fato é que E.V.A., disco de vinil ou toy art: nada chega perto da elegância tradicional da embalagem do sabonete Phebo.


Talvez seja a classe média impregnada no meu sangue, mas Ph com som de F é a coisa mais chic que existe, ainda mais com essa fonte. 
E a ilustração botânica? O obsoleto ofício que uniu a ciência e arte repousa agora lindo e melancólico em uma caixa de sabonete. (...)

*            *            *

sábado, 29 de julho de 2017

Amor à primeira vista - Wislawa Szymborska

Amor à primeira vista
Wislawa Szymborska (Polônia 1923-2012)

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Ambos estão certos
de que uma paixão súbita os uniu.
É bela essa certeza,
mas é ainda mais bela a incerteza.

Acham que por não terem se encontrado antes
nunca havia se passado nada entre eles.
Mas e as ruas, escadas, corredores
nos quais há muito talvez se tenham cruzado?

Queria lhes perguntar,
se não se lembram –
numa porta giratória talvez
algum dia face a face?
um “desculpe” em meio à multidão?
uma voz que diz “é engano” ao telefone?
- mas conheço a resposta.
Não, não se lembram.

Muito os espantaria saber
que já faz tempo
o acaso brincava com eles.

Ainda não de todo preparado
para se transformar no seu destino
juntava-os e os separava
barrava-lhes o caminho
e abafando o riso
sumia de cena.

Houve marcas, sinais,
que importa se ilegíveis.
Quem sabe três anos atrás
ou terça-feira passada
uma certa folhinha voou
de um ombro ao outro?
Algo foi perdido e recolhido.
Quem sabe se não foi uma bola
nos arbustos da infância?

Houve maçanetas e campainhas
onde a seu tempo
um toque se sobrepunha ao outro.
As malas lado a lado no bagageiro.
Quem sabe numa noite o mesmo sonho
que logo ao despertar se esvaneceu.

Porque afinal cada começo
é só continuação
e o livro dos eventos
está sempre aberto no meio.

*            *            *


sexta-feira, 28 de julho de 2017

Mais Dostoiévski, por favor

Mais Dostoiévski, por favor
Thiago Ribeiro – em ‘Obvious’

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(...)
A crítica mais comum a Dostoiévski normalmente se inicia na dificuldade da leitura e quase sempre se encerra naquilo que seria uma tendência depressiva de seus romances, sempre entremeados por crises de consciência, culpas cristãs e um sem número de questões meio fora de moda no mundo atual. 
Sim, porque diante da felicidade incessante e inabalável de Facebooks e Instagrams, ser crítico, olhar para o mundo e ver mazelas que perpassam toda a sociedade, perceber a face negativa da natureza humana seja no rico ou no pobre – sim, os pobres não são todos bonzinhos sempre explorados pelos ricos maldosos -, e se entristecer por isso se torna praticamente um atestado de não pertencimento ao universo.
Dostoiévski não teria segundo esses críticos, portanto, nada de bom, leia-se aproveitável, a nos oferecer. 
De fato, nenhum manual prático de como ser um líder carismático adorado por seus empregados, como conquistar todas as mulheres do mundo em 10 lições, como ser um gordinho feliz e desavergonhado em público ou como viver o amor livre com todos os seus parceiros sem desrespeitar a nenhum deles poderá ser jamais encontrado em Memórias do Subsolo, Crime e Castigo, O Idiota, O Eterno Marido ou em qualquer outra obra do russo. Dostoiévski que“apenas” nos oferece a chance de olhar e mergulhar em profundidade na alma humana, em todas as suas crises de consciência, contradições e complexidades que, como diria uma amiga, fazem do viver uma arte apenas permitida aos profissionais.

E viver hoje em dia não pode ser arte (tem de ser banal), não pode ser complexo (tem de ser fácil), não pode ter crises de consciência (tem de ser leve), não pode ter valores absolutos (tem de ser relativo), não pode ter compromissos (a não ser com o próprio eu) não pode ter sofrimento (temos Facebook e Instagram para encher de sorrisos). 
Dostoiévski não se casa com o nosso tempo porque fala de um tipo de vida não permitida, ou quase proibida, para os padrões atuais.

É na altura da superfície que se vive, que se conversa, que se discute, que se aplaude e que se vaia. 
É na altura da superfície que se ama e que se constrói todo um mundo de maniqueísmos rasos, fáceis e fanáticos. 
É da profundidade da superfície que sai um emaranhado de regras burocráticas que ensinam o ser humano a ser humano, que estabelecem o que é permitido ou não na vida em sociedade. E é desta mesma profundidade que os próprios tutelados aceitam todas essas regras que os cerceiam, regras que nada mais fazem do que atentar contra a capacidade individual de escolher entre o certo e o errado, entre o moral e o imoral, entre o bom e o mau.

Mas não estaria essa capacidade individual de fato cada vez mais reduzida?, é a pergunta que se coloca. E a resposta infelizmente pode ser um triste sim. Pois a cada livro “Faça isso que vai dar certo” que se vende numa livraria enquanto um Dostoiévski fica na prateleira, limita-se um pouco mais a potencialidade de discernimento individual da sociedade. 
Receber e se contentar com receitas pré-fabricadas significa não querer gastar tempo, ou indiretamente assumir a incapacidade pessoal, para se chegar aos melhores ingredientes para o próprio bolo.
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(...) coloquemos mais Doistoiévski em nossas vidas. Para que olhemos as dramáticas crises de consciência de Raskolnikovs, Ivans e Dimitris Karamázovs como um símbolo da mais profunda essência humana, chave fundamental para nos engrandecermos e evoluirmos como seres habitantes de um mundo cada vez mais necessitado de amor, lucidez e respeito ao próximo. Porque, por mais que sejam leves e reconfortantes textos fáceis com receitas de como ser feliz, nada mais profícuo para a verdadeira evolução humana do que um mergulho profundo e sincero sobre si mesmo, um mergulho de reconhecimento de erros, de definição de valores e caminhos, de busca por discernimento e autonomia reais. 
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Certamente será bem mais difícil do que com os manuais e possivelmente gere um tempo razoável de nariz torcido, semblante franzido e (por que não?) lágrimas no rosto. Mas o resultado será, pelo menos, mais sólido e resistente às intempéries cotidianas.
O protagonista das Memórias do Subsolo perguntava se por acaso um homem com consciência pode ter algum respeito próprio. 
A resposta talvez esteja mais para não do que para sim, mas só o desenvolvimento dela, a consciência, é capaz de nos levar a um nível razoável de lucidez sobre os nossos próprios atos – ainda que deles não nos orgulhemos – e os atos dos outros sobre nós.
Se um homem com consciência corre o risco de não ter respeito por si próprio, aquele sem consciência certamente não terá respeito algum pelo próximo e só merecerá respeito daqueles que, assim como ele, vivem no mundo da inconsciência.

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domingo, 23 de julho de 2017

PARA ESTARMOS MAIS PERTO UNS DOS OUTROS
André J. Gomes - em 'Revista Letra'

Tela de Edward Hopper

De hoje em diante, teremos um longo caminho rumo ao encontro. Assim, passo a passo, pisaremos novas ruas, tomaremos rumos desconhecidos e aprenderemos a compreender o óbvio: tudo o que nos acontece hoje são sinais de alerta.


Um dia estaremos mais perto uns dos outros. Não importa quando e nem como. Mas nós seremos mais próximos do que somos hoje.

Nesse dia, estaremos para além de qualquer classificação superficial. Seremos mais que certos ou errados, pobres ou ricos, brancos ou pretos ou vermelhos e amarelos, homens ou mulheres, novos ou velhos. Mais que tudo isso, seremos simples pessoas mais próximas.

Ainda que distantes na geografia, guardaremos em nós a lembrança ou o desejo do encontro. E o encontro nada mais será que um pedido assentido e sincero de compreensão. Encontrar será a prática simples de pensar em alguém e querer nada senão compreendê-lo e aceitá-lo.

Viveremos perto o suficiente para nos vermos, nos ouvirmos e nos sentirmos ali. Próximos o bastante para dividir nossas alegrias e nossas dores, para seguir os caminhos de cada um sem nos perder de vista. Íntimos a ponto até de nos afastarmos quando preciso, em respeito à nossa necessidade humana da solidão que de quando em vez nos empurra para o claustro.

Entre tantas respostas e ponderações absolutas e julgamentos e certezas tão comuns desse mundo, estaremos juntos para nos fazer perguntas sem esperar respostas. Apenas nos perguntaremos coisas à toa, pelo puro e simples exercício de falar e ouvir. Mais ouvir do que falar.

Em longas conversas de manhã, sentados no sol de um banco de praça, nossos livros sobre o colo esperando atenção, relembraremos sem saudade os tempos frios em que nos tornamos duros estranhos. Riremos juntos de nossos ódios superados, nossas pendengas ridículas e desconfianças daninhas. E de tão boas, nossas conversas se estenderão sem pressa e sem culpa pela tarde e pela noite, até o mundo amanhecer de novo em cada dia seguinte.

Até lá, as histórias de uma gente que aprendeu a viver separada demais, uns contra os outros, fazendo do conjunto da vida uma imensa guerra campal, gritalhona e infértil serão nada além de velhas narrativas de barbárie e estupidez. Peças de um museu inexistente. Sombras de uma guerra em que os vencedores celebravam sua superioridade sem se dar conta de que, no fim do jogo, todas as peças sempre voltam para a caixa.

Então, façamos um trato. De hoje em diante, teremos um longo caminho rumo ao encontro. Assim, passo a passo, pisaremos novas ruas, tomaremos rumos desconhecidos e aprenderemos a compreender o óbvio: tudo o que nos acontece hoje são sinais de alerta. Alguém está a nos advertir que devíamos passar mais tempo juntos, ficar mais perto uns dos outros, tomar sol, apanhar vento, esperar a lua que se esconde por trás das nuvens.

Em todos os sentidos, de todas as formas, você e eu e todos nós seremos uma só vizinhança afetiva, moradores de um só quarteirão amoroso. Perto ou longe, não importa, seremos simples pessoas mais próximas, afeitas e dispostas a fazer da vida um longo e sincero gesto de amor ao outro.

É que um dia, se Deus quiser, estaremos mais perto uns dos outros.

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terça-feira, 18 de julho de 2017

TURBILHÃO - Martha Medeiros

TURBILHÃO
Martha Medeiros
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Fico escutando as quantias (dois milhões, quatro, nove) e a cifra vai aumentando até que de milhões a bilhões muda apenas a consoante no início da palavra, pois parece que já não se trata de dinheiro – entramos num território mais subjetivo e intangível.

Que grana toda é essa que saía de uma conta corrente para entrar em outra, numa transferência que parecia uma simples jogada do Banco Imobiliário
O brinquedo da Estrela existe até hoje e é assim descrito nos sites de venda: “Você agora poderá ser um próspero proprietário de imóveis. Ter crédito em banco, títulos, terrenos, casas e hotéis nos melhores pontos da cidade. Onde o céu é o limite! Cabe a você investir tudo que possui para tornar-se um milionário e monopolizar o mercado imobiliário. Para isso, você terá que provar que tem faro para os negócios.” 
Dinheiro de papel. A gente se divertia com isso. Era fácil se sentir rico. Ter o céu como limite. 
Em que momento a pessoa se apega tanto a uma fantasia infantil que não consegue mais crescer? Troca dinheiro de papel por dinheiro de verdade sem perceber que está negociando outros valores.

Ouço, leio: sete milhões, 25 milhões, 300 milhões. E apenas uma palavra me vem à cabeça: pobreza. Que vida miserável. Não bastasse a total ausência de escrúpulos, a pessoa não consegue se contentar com o suficiente, nunca atinge um montante que sirva para apaziguar sua insignificância. 
A ganância é um sorvedouro, o muito é pouco, é nada para quem carrega dentro de si um buraco profundo no lugar onde deveria haver retidão.

Dizem que todo mundo tem um preço. Qual o meu, qual o seu? Que saldo deveria aparecer em nosso extrato para nos sentirmos seguros, satisfeitos e dizer: ok, já tenho o que preciso, me basta.
Não é aos 30 nem aos 40 anos de idade que a gente começa a acumular bens. Nosso patrimônio é constituído bem mais cedo, antes até de aprendermos a brincar com o Banco Imobiliário. 
É o que investiram em nós, na infância, que vai determinar para que servirá, de verdade, o nosso faro, se para correr atrás de uma vida digna ou para enfiar o nariz numa lixeira. 
Se tiverem investido no nosso caráter, seremos tão ricos que não nos importaremos de parecer uma pessoa barata aos olhos dos outros - nos contentaremos com uma casa boa e não gigante, com um carro legal e não um tanque de guerra, e nos vestiremos com despojamento em vez de desfilar por aí feito uma árvore de natal. 
Alguém tem medo de parecer barato aos olhos dos outros? 
Melhor não perguntar a quem não vale nada.

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