Mais Dostoiévski, por favor
Thiago Ribeiro – em ‘Obvious’
A crítica mais comum a Dostoiévski normalmente se inicia na dificuldade da leitura e quase sempre se encerra naquilo que seria uma tendência depressiva de seus romances, sempre entremeados por crises de consciência, culpas cristãs e um sem número de questões meio fora de moda no mundo atual.
Sim, porque diante da felicidade incessante e inabalável de Facebooks e Instagrams, ser crítico, olhar para o mundo e ver mazelas que perpassam toda a sociedade, perceber a face negativa da natureza humana seja no rico ou no pobre – sim, os pobres não são todos bonzinhos sempre explorados pelos ricos maldosos -, e se entristecer por isso se torna praticamente um atestado de não pertencimento ao universo.
Dostoiévski não teria segundo esses críticos, portanto, nada de bom, leia-se aproveitável, a nos oferecer.
De fato, nenhum manual prático de como ser um líder carismático adorado por seus empregados, como conquistar todas as mulheres do mundo em 10 lições, como ser um gordinho feliz e desavergonhado em público ou como viver o amor livre com todos os seus parceiros sem desrespeitar a nenhum deles poderá ser jamais encontrado em Memórias do Subsolo, Crime e Castigo, O Idiota, O Eterno Marido ou em qualquer outra obra do russo. Dostoiévski que“apenas” nos oferece a chance de olhar e mergulhar em profundidade na alma humana, em todas as suas crises de consciência, contradições e complexidades que, como diria uma amiga, fazem do viver uma arte apenas permitida aos profissionais.
E viver hoje em dia não pode ser arte (tem de ser banal), não pode ser complexo (tem de ser fácil), não pode ter crises de consciência (tem de ser leve), não pode ter valores absolutos (tem de ser relativo), não pode ter compromissos (a não ser com o próprio eu) não pode ter sofrimento (temos Facebook e Instagram para encher de sorrisos).
Dostoiévski não se casa com o nosso tempo porque fala de um tipo de vida não permitida, ou quase proibida, para os padrões atuais.
É na altura da superfície que se vive, que se conversa, que se discute, que se aplaude e que se vaia.
É na altura da superfície que se ama e que se constrói todo um mundo de maniqueísmos rasos, fáceis e fanáticos.
É da profundidade da superfície que sai um emaranhado de regras burocráticas que ensinam o ser humano a ser humano, que estabelecem o que é permitido ou não na vida em sociedade. E é desta mesma profundidade que os próprios tutelados aceitam todas essas regras que os cerceiam, regras que nada mais fazem do que atentar contra a capacidade individual de escolher entre o certo e o errado, entre o moral e o imoral, entre o bom e o mau.
Mas não estaria essa capacidade individual de fato cada vez mais reduzida?, é a pergunta que se coloca. E a resposta infelizmente pode ser um triste sim. Pois a cada livro “Faça isso que vai dar certo” que se vende numa livraria enquanto um Dostoiévski fica na prateleira, limita-se um pouco mais a potencialidade de discernimento individual da sociedade.
Receber e se contentar com receitas pré-fabricadas significa não querer gastar tempo, ou indiretamente assumir a incapacidade pessoal, para se chegar aos melhores ingredientes para o próprio bolo.
O protagonista das Memórias do Subsolo perguntava se por acaso um homem com consciência pode ter algum respeito próprio.
A resposta talvez esteja mais para não do que para sim, mas só o desenvolvimento dela, a consciência, é capaz de nos levar a um nível razoável de lucidez sobre os nossos próprios atos – ainda que deles não nos orgulhemos – e os atos dos outros sobre nós.
Se um homem com consciência corre o risco de não ter respeito por si próprio, aquele sem consciência certamente não terá respeito algum pelo próximo e só merecerá respeito daqueles que, assim como ele, vivem no mundo da inconsciência.
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