Velhice, por que não?
Lya Luft
Detestamos ou tememos a velhice pela sua marca de incapacidade e isolamento. É algo a ser evitado como uma doença. Não deixa de ser tolo encarar o tempo como um conjunto de gavetas compartimentadas nas quais somos jovens, maduros ou velhos – porém só em uma delas, a da juventude, com direito a alegrias e realizações. Pois a possibilidade de ter saúde, projetos e ternura até os 90 anos é real, dentro das limitações de cada período.
Quando não pudermos mais realizar negócios, viajar a países distantes ou dar caminhadas, poderemos ainda ler, ouvir música, olhar a natureza; exercer afetos, agregar pessoas, observar a humanidade que nos cerca, eventualmente lhe dar abrigo e colo. Para isso não é necessário ser jovem, belo (significando carnes firmes e pele de seda… ) ou ágil, mas ainda lúcido. Ter adquirido uma relativa sabedoria e um sensato otimismo – coisas que podem melhorar com o correr dos anos. Mas predomina a ideia de que a velhice é uma sentença da qual se deve fugir a qualquer custo – até mesmo nos mutilando ou escondendo.
No espírito de manada que nos caracteriza, adotamos essa hipótese sem muita discussão, ainda que seja em nosso desfavor. Isso se manifesta até na pressa com que acrescentamos, como desculpa: “Sim, você está, eu estou, velho aos 80 anos, mas… jovem de espírito.” Porque ser jovem de espírito seria melhor do que ter um espírito maduro ou velho? Ter mais sabedoria, mais serenidade, mais elegância diante de fatos que na juventude nos fariam arrancar os cabelos de aflição, não me parece totalmente indesejável.
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“Trato bem ao meu corpo, esse grande gato”, escreveu uma poeta com essa sensatez dos artistas e das pessoas simples. “Afinal até aqui ele me serviu, e cada dia gosto mais dele, do jeito que está ficando.”
Gostar de seu velho corpo com sua necessidade de cuidados e de amor, de mais treinamento para que funcione direito, de paciência porque nem sempre é como lembro que foi um dia, é uma forma de felicidade que a experiência pode ensinar.
Há poucas décadas alteraram-se nossos prazos, e os conceitos sobre juventude, maturidade e velhice. Passamos a viver mais. Nem sempre passamos a viver melhor. Esse me parece um dos mais extraordinários desperdícios da nossa época. Minhas avós, muito mais jovens do que sou agora, me pareciam – e deviam se sentir – velhas: lentas e vagamente reumáticas, roupa escura, cabelo grisalho, óculos na ponta do nariz, fazendo doces ou tricô.
Vou detestar se, ficando velha, alguém quiser me elogiar dizendo que tenho espírito jovem. Acho o espírito maduro bem mais interessante do que o jovem. Mais sereno, mais misterioso, mais sedutor.
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Somos seres humanos completos em qualquer fase, na completude daquela fase.
Custa-nos acreditar nisso na velhice, como na adolescência era difícil termos confiança em nós e nossas escolhas quanto ao futuro.
Com direito e dever de procurar interesses e revisar outros, ter alegrias e prazeres, sejam eles quais forem. Posso na velhice não ser um atleta na cama nem mesmo ter atração pela vida sexual, mas sou capaz de exercitar minha alegria com amigos, minha ternura com família, meu prazer em caminhadas, em jardinagem, em leitura, em contemplação da arte. Porém, numa sociedade em que sucesso e felicidade se reduzem a dinheiro, aparência e sexo, se somos maduros ou velhos estamos descartados. Cada dia será o dia do desencanto. Em lugar de viver estaremos sendo consumidos. Em vez de conquistar estaremos sendo, literalmente, devorados pelos nossos fantasmas – na medida em que permitirmos isso. Essa é a nossa possibilidade, a nossa grandeza ou a nossa derrota: viver com naturalidade – ou experimentar como um súbito castigo dos deuses – os novos 70 ou 80 anos. Algumas pessoas parecem tombar subitamente da juventude impensada para a velhice ressentida.
Foram apanhados desprevenidos. Nunca tinham pensado. Estavam desatentos.
Triste maneira de percorrer isso que é afinal o milagre da existência.
Imaginamos enganar a máquina do tempo, e suas engrenagens nos atropelaram em lugar de nos impulsionar. Para quem só pensa nos desencantos da maturidade, eu falo no encanto da maturidade. Para quem só sabe da resignação da velhice, eu lembro a possível sabedoria da velhice. É preciso seguir em frente com o meu tempo. Mas qual é, onde está, em que lugar ficou… o meu tempo?
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Uma de minhas mais queridas amigas tem quase 90 anos, e espero pelo fim de semana para tomar com ela, em sua casa aconchegante, o uísque dos fins de tarde de domingo.
Sempre temos assunto. Ela sabe de tudo, é informada, é interessada. Não fala preferencialmente de sua saúde, que já não é a de dez anos atrás. Comenta coisas de jornal, política, música. Pergunta pelos amigos. Já não vai ao cinema, mas, como é grande leitora, há mil assuntos para se falar. Ela gosta de rir e nos divertimos muito.
Pensando nela e em outras pessoas assim, questiono se ter 80 anos ou mais será realmente uma condenação ou se pode ser o coroamento de uma vida. Verdade que para haver um “coroamento” é preciso uma estrutura razoável para ser “coroada”. Generosa, de conquistas, de perdas mas igualmente de elaboração e acúmulo. Vivida com gosto e dor, com afetos bons e outros menos bons. O prato luminoso do positivo mais pesado do que o das coisas escuras.
“E da juventude, o que você diz?”, me indagam.
Não preciso falar tanto dela porque é cantada e louvada em todos os meios de comunicação, em todos os salões, em todos os quartos. Ela é deslumbramento e aflição, crescimento e inépcia, angústia e êxtase como todos os nossos estágios – apenas tudo ali está condensado em intensidade e brilho.
Mas não acho que só ela vale a pena, só ela nos avaliza. Como não defendo a ideia de que a maturidade e a velhice sejam melhores. São diferentes. Com seus lados bons e ruins.
Idade não dá aval de bondade e graça. O velho sempre bonzinho é um mito, a velhinha doce pode ser comum nos livros de história, mas na realidade é muito diferente.
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Na idade avançada os interesses não precisam ou não podem ser os de antes: atividade, trabalho, dinheiro, viagens, conquistas. A certa altura mudam as possibilidades mas não se anula a pessoa.
O bem-estar e a alegria residem nas coisas mais triviais: esse é um dos aprendizados que o tempo nos dá. Por isso mesmo, a essa altura é mais simples ser feliz. Novos afetos são possíveis em qualquer idade: sempre se podem estabelecer novos laços com pessoas, coisas, lugares, interesses
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O tempo tem de ser sempre o meu tempo, para realizar qualquer coisa positiva e plausível – ainda que seja mudar de lugar a cadeira (até a de rodas) e ver melhor a chuva que cai.
Uma velha senhora mora sozinha mas curte as amizades, a família, livros e músicas, a natureza. De vez em quando abre uma garrafa de champanha e faz um brinde, sozinha (não chorosa): a coisas boas que teve, coisas boas que tem, e uma ou outra que ainda pretende viver.
Um dia lhe manifestei minha admiração por isso. Com um sorriso entre tímido e divertido ela respondeu que sempre havia o que celebrar. Era um privilégio estar viva tendo consciência disso, e sem graves problemas de saúde. Poder apreciar a luz da manhã, o aroma da comida, o perfume das pessoas. Comunicar-se, saber das notícias, que podiam ir do esporte à música, à política, ao… o que eu quiser. Participar ainda.
Me enterneceu essa visão positiva de uma mulher ficando velha. Sua idade não era o ponto de estagnação, mas de fazer tranquilamente coisas que antes não podia. Não tinha mais de cumprir tantos deveres nem realizar tantas expectativas. “Acho que as pessoas são mais condescendentes comigo”, ela disse com um sorrisinho malicioso. “Devem pensar “ela está velhinha, coitada” e assim eu posso finalmente respirar fundo, e ser mais… natural.”
Certa vez li uma história mais ou menos assim: Uma jovem corria para ficar em forma. Passou por uma velhinha que cuidava de seu jardim na frente da casa, e gritou ao passar:
— Vovó, se eu fosse magra como você, não precisaria ficar aqui correndo desse jeito!
A velhinha a fez parar com um sinal, aproximou-se dela, e lhe disse sorrindo:
– Filha, quando a gente fica velha como eu, tudo é mais fácil. A gente pode até se aposentar e gostar de cuidar das rosas.
Mas se sonharmos apenas com a viagem à Lua, cuidar das rosas pode parecer tedioso demais, e não cultivaremos coisa alguma.
A vida é sempre a nossa vida, aos 12 anos, aos 30 anos, aos 70. Dela podemos fazer alguma coisa mesmo quando nos dizem que não. Dentro dos limites, do possível, do sensato (até alguma vez do insensato), podemos.
Só seremos nada se acharmos que merecemos menos de tudo que ainda é possível obter.
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LYA LUFT, no livro “Perdas e ganhos”. Rio de Janeiro: Record, 2006.
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