sexta-feira, 9 de novembro de 2018

A João Guimarães Rosa - Maureen Bisilliat

Da página "Prosa, Verso e Arte"

Fotógrafa inglesa MAUREEN BISILLIAT homenageia Guimarães Rosa

A JOÃO GUIMARÃES ROSA
– Maureen Bisilliat (IMS – Séries | 24.9.2013)


Voltas no tempo ‘A João Guimarães Rosa’

Tudo começou em 1963, quando ganhei de um amigo um exemplar de 'Grande sertão: Veredas', de Guimarães Rosa – não sem a observação de que talvez não conseguisse compreender a linguagem especialíssima do autor. 
Não só compreendi como mergulhei nas águas daquele mar de palavras – o sertão não viraria mar? -, inspirada e instigada a investigar a relação direta de Rosa com os gerais de Minas Gerais. 
Assim, durante os anos 60 viajei por essas terras seguindo um roteiro sugerido pelo autor, iniciando pelas raízes – Curvelo, Cordisburgo, Andrequicé -, subindo pelo tronco da árvore, expandindo pelos galhos, até chegar em Januária, no norte de Minas. Desloquei-me para lá e, ao voltar de cada viagem, ia visitar o escritor, então chefe do Serviço de Demarcação de Fronteiras do Itamaraty. Levava, a cada encontro, um calhamaço de fotografias captadas nas terras do autor de Sagarana e, atrás de cada uma, ele anotava detalhes – nome, idade, solteiro, casado ou viúvo, lugar de encontro, como e quando etc. -, recebendo através das imagens mensagens dos gerais. 
No final de nossas reuniões, ele sempre me acompanhava até o elevador e me desejava uma boa próxima viagem, dizendo estar certo de que eu, como irlandesa, iria compreender os eflúvios poéticos dos gerais, devido à semelhança entre aquela região e a Irlanda (“Irlandesa Cigana” foi, aliás, como ele me apelidou, teria ele entrevisto alguma ancestralidade cigana nos meus cabelos longos, roupas amplas, sandálias no pé?).

Anos depois desses nossos encontros, fui visitar sua viúva, Dona Aracy, no prédio onde eles tinham morado em Copacabana, Posto 6. 
Lá, ela me levou até uma pequena sala, entre os rochedos e o mar, e contou que fora ali que Rosa escrevera seu Grande sertão. “Noite após noite”, confidenciou-me, “eu levava para ele duas ou três trocas de pijama, pois enquanto escrevia transpirava muito, banhando-se em suor. Ele me dizia que recebia a obra assoprada, sendo ele apenas receptor”.
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Andrequicé, 1966
Porta de entrada para os gerais de Guimarães, companheiro de viagem de Manuelzão – Manuel Nardi, vaqueiro-mor, personagem central de uma das novelas de 'Corpo de Baile': 

Comecei a conhecer os sertões por suas veredas. Iniciei minha busca seguindo de ônibus para Minas, parando primeiro em Cordisburgo, lugar de nascimento do autor, prosseguindo rumo ao norte e chegando em Andrequicé, povoado pequeno, pouso na rota das boiadas pelos sertões. 
Ao chegar, o sol se escondendo no horizonte, acerquei-me de um pequeno boteco e, após me apresentar como alguém em busca dos rastros de Guimarães, fui acolhida com uma boa notícia: “A moça está com sorte, pois não é que chegou agorinha mesmo o Manuelzão do Rosa, vindo direto da fazenda para uma celebração de crisma em Andrequicé!” Sim, o próprio Manuel Nardi, inspirador do conto “Manuelzão e Miguilim”, publicado em 1956, como parte do livro 'Corpo de baile': um bom augúrio para a busca planejada!

Indaguei acerca de um lugar para pernoitar e o moço do boteco me levou à casa de uma velha senhora que me recebeu com a acolhida espontânea e ampla dos que pouco têm, mas muito oferecem: ovo frito, saborosa farofa e um café mineiro, doce, perfumado e ralo, daqueles que descem como água benta apaziguando a sede!

Dormi com a candeia acesa, a esteira no chão. Acordei cedo, o sol despontando no horizonte, no friozinho da madrugada. E lá estava ele, Manuelzão, sombra esguia na parede caiada, chapéu de abas firmes, capa de feltro azul, rosto de couro curtido, olhar de águia me aguardando sem prosa, pronto para o retrato que viria a ser – para mim e para muitos – emblemático da estirpe rija dos gerais de Guimarães. 
De repente, me olhando a esmo, deparei com a figura de um homem – um vaqueiro, talvez? Pedi licença para tirar o seu retrato. Sisudo e cismado, ele não quis me atender. Satisfeita com a sorte, feliz da vida, com Manuelzão na máquina, passei o dia fotografando boiadas na poeira do campo. No fim do dia, de volta para Andrequicé, avistei a figura do homem, lá me esperando, calmo e quieto, no aguardo de seu retrato: era isso que ele queria ter. 
Acontece que de manhã, quando me viu pela primeira vez, ficou com medo. Por ser cigano achou que eu era da polícia e estava lá para prendê-lo. Era isso, então. Como os romas da França de Sarkozy, os ciganos dos gerais também são malvistos, estigmatizados como gatunos e ladrões de cavalos, vítimas de velhos preconceitos encravados na contramão da história, levando a guerras e desentendimentos entre nações.

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