sábado, 6 de abril de 2019

Aos colegas Professores

Ensinar é um exercício de imortalidade. De alguma forma continuamos a viver naqueles cujos olhos
aprenderam a ver o mundo pela magia da nossa palavra.
O professor, assim, não morre jamais…
Rubem Alves
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Ensinar o que não se sabe
Rubem Alves - Revista Prosa, Verso e Arte

E chega o momento quando o Mestre toma o discípulo pela mão, e o leva até o alto da montanha. Atrás, na direção do nascente, se vêem vales, caminhos, florestas, riachos, planícies ermas, aldeias e cidades. Tudo brilha sob a luz clara do sol que acaba de surgir no horizonte. E o Mestre fala:

Por todos estes caminhos já andamos. Ensinei-lhe aquilo que sei. já não há surpresas. Nestes cenários conhecidos moram os homens. Também eles foram meus discípulos! Dei-lhes o meu saber e eles aprenderam as minhas lições. Constroem casas, abrem estradas, plantam campos, geram filhos… Vivem a boa vida cotidiana, com suas alegrias e tristezas. Veja estes mapas!

Com estas palavras ele toma rolos de papel que trazia debaixo do braço e os abre diante do discípulo.

Aqui se encontra o retrato deste mundo. Se você prestar bem atenção, verá que há mapas dos céus, mapas das terras, mapas do corpo, mapas da alma. Andei por estes cenários. Naveguei, pensei, aprendi. Aquilo que aprendi e que sei, está aqui. E estes mapas eu lhe dou, como minha herança. Com eles você poderá andar por estes cenários sem medo e sem sustos, pisando sempre a terra firme. Dou-lhe o meu saber.

Aí o Mestre fica silencioso, olhando dentro dos olhos do discípulo. Ele quer adivinhar o que se esconde naquele olhar. Examina os seus pés. Nos pés sólidos se revela a vocação para andar pelas trilhas conhecidas. Quem sabe isto é tudo aquilo de que aquele corpo jovem é capaz! Quem sabe isto é tudo o que aquele corpo jovem deseja! Se assim for, talvez que o melhor seria encerrar aqui a lição e nada mais dizer.

Mas o Mestre não se contém e procura, nas costas do seu discípulo, prenúncios de asas – asas que ele imaginara haver visto como sonho, dentro dos seus olhos.

O Mestre sabe que todos os homens são seres alados por nascimento, e que só se esquecem da vocação pelas alturas quando enfeitiçados pelo conhecimento das coisas já sabidas.

Ensinou o que sabia. Agora chegou a hora de ensinar o que não sabe: o desconhecido.

Volta-se então na direção oposta, o mar imenso e escuro, onde a luz do sol ainda não chegou.

É este o seu destino. Os poetas o têm sabido desde sempre: A solidez, da terra, monótona, parece-nos fraca ilusão. Queremos a ilusão do grande mar, multiplicada em suas malhas de perigo (Cecília Meireles).

É preciso navegar. Deixando atrás as terras e os portos dos nossos pais e avós, nossos navios têm de buscar a terra dos nossos filhos e netos, ainda não vista, desconhecida. (Nietzsche).

Mas, para esta aventura meus mapas não lhe bastam. Todos os diplomas são inúteis. E inútil todo o saber aprendido. Você terá de navegar dispondo de uma coisa apenas: os seus sonhos. Os sonhos são os mapas dos navegantes que procuram novos mundos. Na busca dos seus sonhos você terá de construir um novo saber, que eu mesmo não sei… E os seus pensamentos terão de ser outros, diferentes daqueles que você agora tem.

O seu saber é um pássaro engaiolado, que pula de poleiro a poleiro, e que você leva para onde quer. Mas dos sonhos saem pássaros selvagens, que nenhuma educação pode domesticar.

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Meu saber o ensinou a andar por caminhos sólidos. Indiquei-lhe as pedras firmes, onde você poderá colocar os seus pés, sem medo. Mas o que fazer quando se tem de caminhar por um rio saltando de pedra em pedra, cada pedra uma incógnita? Ah! Como são diferentes o corpo movido pelo sonho, do corpo movido pelas certezas.

Sobre leves esteios o primeiro salta para diante. a esperança e o pressentimento põem asas em seus pés. Pesadamente o segundo arqueja em seu encalço e busca esteios melhores para também alcançar aquele alvo sedutor, ao qual seu companheiro mais divino já chegou. Dir-se-ia ver dois andarilhos diante de um regato selvagem, que corre rodopiando pedras. o primeiro, com pés ligeiros, salta por sobre ele, usando as pedras e apoiando-se nelas para lançar-se mais adiante, ainda que, atrás dele, afundem bruscamente nas profundezas. O outro, a todo instante, detém-se desamparado, precisa antes construir fundamentos que sustentem seu passo pesado e cauteloso; por vezes isso não dá resultado e, então, não há deus que possa auxiliá-lo a transpor o regato. (Nietzsche)

Até agora eu o ensinei a marchar. É isto que se ensina nas escolas. Caminhar com passos firmes. Não saltar nunca sobre o vazio. Nada dizer que não esteja construído sobre sólidos fundamentos. Mas, com o aprendizado do rigor, você desaprendeu o fascínio do ousar. E até desaprendeu mesmo a arte de falar. Na Idade Média (e como a criticamos!) os pensadores só se atreviam a falar se solidamente apoiados nas autoridades. Continuamos a fazer o mesmo, embora os textos sagrados sejam outros. Também as escolas e universidades têm os seu papas, seus dogmas, suas ortodoxias. O segredo do sucesso na carreira acadêmica? Jogar bem o boca de forno, a aprender a fazer tudo o que seu mestre mandar…
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Agora o que desejo é que você aprenda a dançar. Lição de Zaratustra, que dizia que para se aprender a pensar é preciso primeiro aprender a dançar. 
Quem dança com as idéias descobre que pensar é alegria. Se pensar lhe dá’ tristeza e porque você só sabe marchar, como soldados em ordem unida. 
Saltar sobre o vazio, pular de pico em pico. Não ter medo da queda. Foi assim que se construiu a ciência: não pela prudência dos que marcham, mas pela ousadia dos que sonham. Todo conhecimento começa com o sonho. 
O conhecimento nada mais é que a aventura pelo mar desconhecido, em busca da terra sonhada. Mas sonhar é coisa que não se ensina. Brota das profundezas do corpo, como a água brota das profundezas da terra. Como Mestre só posso então lhe dizer uma coisa: “Conte-me os seus sonhos, para que sonhemos juntos!”
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– Rubem Alves, no livro “A alegria de ensinar”. São Paulo: Ars Poetica Editora Ltda, 1994.

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domingo, 3 de março de 2019

Ah, sim, é Domingo de Carnaval...

A MÁSCARA
Sergio Rodrigues - escritor, jornalista e crítico literário brasileiro, 

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Todo cuidado é pouco com essa máscara, viu, Vi? Não, sua boba, empresto com prazer porque você sabe que é a minha neta preferida, e além disso tem outras coisas, sinto um arrepio só de imaginar que a minha máscara negra veneziana nariguda vai se soltar por essas ruas outra vez depois de meio século guardada numa caixa de chapéu com a tampa afundada, devia andar triste, a coitadinha, olha só esses olhos vazados caídos, tão merencórios. Ah, esses olhinhos viram coisa, Vi. Claro que não era como agora, era melhor, era pior.  Diferente: eu nunca fui de folia e nem podia ser, sempre fui certinha. Seu avô, sim, aquele se esbodegava inteiro, saía no sábado pra voltar na quarta-feira que nem na música da camisa listrada, só que a fantasia dele, infalível, era de arlequim – conhece a música da camisa listrada? Ainda toca isso? Em vez de tomar chá com torrada ele tomou parati, não, imagine se vai tocar. Agora é diferente, pior, melhor, depende. 
Por exemplo, quando você casar, duvido que aguente o que eu aguentei. Não aguenta, Vi, mudou demais. Para melhor, nesse ponto eu acho que foi para muito melhor, porque se o seu marido um dia sair por aí com um canivete no cinto e um pandeiro na mão, sossega leão e tal, eu acho que você pode até aceitar, mas conhecendo você como eu conheço, eu sei que mal a porta bateu você vai sair também, você pra lá, eu pra cá, até quarta-feira, lalaiá, lalaiá. 
Sossega leoa – vai ou não vai? Pois eu acho que está certíssimo, querida, nós é que éramos bobas no meu tempo, eu era. Engolia, aguentava, chorava no travesseiro, noite em cima de noite perdendo o viço. Uma mulher guardada numa caixa de chapéu com a tampa afundada, cheiro de naftalina, ih, estou melosa, estou dramática, mas era assim. Não admira que os olhinhos fossem ficando merencórios, que o marido perdesse o interesse e procurasse cada vez mais passatempos, depois vinha cair na cama sem tirar nem o sapato. 
O seu avô, por exemplo: um homem bom, trabalhador, mas um patriarcão de antigamente, acho que um dos últimos. Pisada firme, vozeirão, chicote no cinto, chicote é maneira de dizer, que no Rio de 1950 ninguém usava chicote, mas você entende. 
Sua mãe não era nascida ainda, os outros quatro sim, aquela escadinha, e foi aí que ele me prometeu. O baile de máscaras do sábado de carnaval no casarão da Glorinha Pissaraçuba na Praia do Flamengo – não tinha programa mais cintilante, joia social mais cobiçada naquele tempo. Era diferente demais, melhor, pior, eu não disse? Melhor, Vi, nesse caso era melhor porque nós íamos pela primeira vez no baile da Glorinha Pissaraçuba, ah, você tinha que ver a minha felicidade! 
A máscara veneziana eu comprei na Rua do Ouvidor para a ocasião, não foi barata, negra porque assim ficava mais discreto, mais digno, seu avô aconselhou. Aconselhou? Essa é boa, aconselhou nada, mandou, pois é. 
O vestido ia ser um verde brilhoso de festa que já começava a encardir no armário, mandei tirar, lavar, quarar, engomar, chegou o dia e eu fui fazer o cabelo, as crianças excitadas só de ver a minha felicidade, mamãe vai sambar, vai sambar, sambar, e quando chegou a hora, Vi – sambei, justamente. Seu avô ligou da rua dizendo que a gente não ia mais no baile de máscaras, imprevistos, ele falou, contratempos, uma palavra assim. Eu sabia o tipo de contratempo que ele gostava, aquele que o cabelo não nega mas em compensação a cor não pega, feito dizia o Lamartine. 
Seu avô não era fácil e a gente era boba demais, triste e amargurada, não tinha essa sabedoria das mulheres de hoje, não tinha o salve o prazer, salve o prazer. Me tranquei no quarto aquele sábado, os olhinhos merencórios dessa máscara negra aí, essa mesma, ficaram me olhando em cima da cama um tempão. Foi a Conceição que pôs as crianças para dormir, apagou a casa toda, você não teve tempo de conhecer a Conceição, até hoje eu sinto saudade. Ela cuidou de tudo enquanto eu ficava sentada na cama de vestido verde e laquê armado ouvindo as risadas, gritinhos, gente batendo na lata, os barulhos todos de carnaval que você conhece, isso não mudou tanto, ainda é assim. 
Eu nunca fui de folia e nem podia ser, sempre fui certinha, e quando cheguei na esquina de máscara e vestido verde e vi um grupo de clóvis me olhando do outro lado da rua, me veio um pânico doido, quase dei meia volta. Nem sei como continuei andando, marcando o passo com o meu coração, acho que eu corria. 
Não lembro de ter entrado no Cadillac que o pierrô de porre parou do meu lado, me deu um branco mas eu sabia que, tendo entrado ou não, a verdade era que eu estava dentro dele agora, sentada no banco do carona com a cabeça girando e a mão do pierrô no meu joelho enquanto a estradinha cheia de curvas passava por nós, o mar rugindo lá embaixo, reconheci a Niemeyer. Quem é você, diga logo que eu quero saber, ele me disse que se chamava Jorge, depois Álvaro, mais tarde Toninho, e com o céu começando a clarear já tinha virado Camilo, Ciro, Ismael. Eu também não pronunciei o nosso nome, Vi, e a máscara negra nariguda eu só tirei enquanto a escuridão nos protegia, o pierrô não soube que eu me chamava Elvira. 
Mas nunca vou esquecer os olhos verdes dele, aqueles não tinham nada de merencórios, eram da cor do mar de São Conrado quando amanhece num domingo de carnaval – idênticos aos que me olham agora da sua cara espantada, Vi, isso também não mudou, e no fim daquele ano sua mãe nasceu.

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segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

Cecília Meireles - Contemplação

CONTEMPLAÇÃO
Cecília Meireles, em 'Mar absoluto'


Não acuso. Nem perdoo.
Nada sei. De nada.
Contemplo.

Quando os homens apareceram
eu não estava presente.
Eu não estava presente,
quando a terra se desprendeu do sol.
Eu não estava presente,
quando o sol apareceu no céu.
E antes de haver o céu,
EU NÃO ESTAVA PRESENTE.

Como hei de acusar ou perdoar?
Nada sei.
Contemplo.

Parece que às vezes me falam.
Mas também não tenho certeza.
Quem me deseja ouvir, nestas paragens
onde somos todos estrangeiros?
Também não sei com segurança, muitas vezes,
da oferta que vai comigo, e em que resulta,
pois o mundo é mágico!
Tocou-se o Lírio e apareceu um Cavalo Selvagem.
E um anel no dedo pode fazer desabar da lua um temporal.

Já vês que me enterneço e me assusto,
entre as secretas maravilhas.
E não posso medir todos os ângulos do meu gesto.

Noites e noites, estudei devotamente
nossos mitos, e sua geometria.

Por mais que me procure, antes de tudo ser feito,
eu era amor. Só isso encontro.
Caminho, navego, voo,
- sempre amor.
Rio desviado, seta exilada, onda soprada ao contrário,
- mas sempre o mesmo resultado: direção e êxtase.
À beira dos teus olhos,
por acaso detendo-me,
que acontecimentos serão produzidos
em mim e em ti?

Não há resposta.
Sabem-se os nascimentos 
quando já foram sofridos.

Tão pouco somos, - e tanto causamos,
com tão longos ecos!
Nossas viagens têm cargas ocultas, de desconhecidos vínculos.

Entre o desejo do itinerário, uma lei que nos leva
age invisível e abriga 
mais que o itinerário e o desejo.

Que te direi, se me interrogas?
As nuvens falam?
Não. As nuvens tocam-se, passam, desmancham-se.
Às vezes, pensa-se que demoram, parece que estão paradas...
Confundiram-se.

E até se julga que dentro delas andam estrelas e planetas.
Oh, aparência...Pode talvez andar um tonto pássaro perdido.
Voz sem pouso, no tempo surdo.

Não acuso nem perdoo.
Que faremos, errantes entre as invenções dos deuses?

Eu não estava presente, quando formaram 
a voz tão frágil dos pássaros.

Quando as nuvens começaram a existir,
qual de nós estava presente?

*            *            *

segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

Rachel de Queiroz por Ana Miranda

Rachel e a natureza compatível
Ana Miranda, Jornal O POVO - 29/04/2010
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'O mar.. Espécie de céu líquido, também sem fim'

Pessoas de minha idade, para mais, guardam lembranças da natureza. 
Antigamente morávamos em casas, e as casas possuíam quintais, e os quintais, árvores, insetos, passarinhos... Crianças contemplavam joaninhas a passear nos dedos, prendiam vaga-lumes em potes de vidro... Viam o brotar de uma semente, um grilo era preso em barbante feito animal doméstico... Algumas moravam em fazendas ou sítios, como a menina Rachel, e acompanhavam os ciclos da flora e fauna, o regime dos ventos, das chuvas, o recorte das pedras... A natureza fazia parte de nós, e por isso éramos talvez mais felizes.

Uma das faces de Rachel de Queiroz, pouco conhecida, é sua amizade com a natureza. 
Ela cresceu nos sertões e percebeu o valor que tem cada árvore, cada tufo de macambiras, a beleza cortante dos conjuntos de mandacaru nas lajes, as paisagens sob irradiação do sol ou da lua... 
Rachel dividia a natureza cearense em quatro: o litoral arenoso, as serras, o sertão e o Cariri. Para esses mundos dedicou suas melhores palavras. 
Descreve o mar como se a si mesma, 'verde, bravio, porém leal', 'todo ali, na superfície, bem à vista para quem o quiser conhecer e amar'. 
Reclama da indiferença, 'ninguém se lembra de mostrar as nossas serras', oásis de clima temperado, verdes, com lampejos d-água, a face nua da áspera pedra furta-cor, cachoeiras nevoentas ou filetes que 'escorrem montanha abaixo como calda de açúcar desfiada'... 
E sobre seu grande amor, o sertão, Rachel demora em devaneios críticos, como era de seu temperamento. 
Chegam amigos ao sertão e Rachel lê nos seus olhos o espanto, 'que é que nos prenderá nesta secura e nesta rusticidade?'  'Tudo tão pobre. Tudo tão longe do conforto e da civilização, da boa cidade com as suas pompas e as suas obras. Aqui a gente tem apenas o mínimo, e até esse mínimo é chorado.'
'Por que tanto carinho e amor por estas terras ásperas? Não sei. Mistério é assim: está aí e ninguém sabe. Talvez a gente se sinta mais pura, mais nua, mais lavada'. 
E Rachel sonha: plantar uma árvore imensa num cabeço limpo, fazer um açudinho entre duas ombreiras, coqueiros no pé da parede, ou, no choro da revência, umas leiras de melancia...
Fala das ovelhas sertanejas que mais parecem cachorros-do-mato, do parco feijão e mãos de milho para o povo virar o ano, dos bodes magros, da confusão desolada dos galhos secos, agressivos espinhos, nuvens que são apenas enfeites do céu, e o reverdecer instantâneo. 
'Coração de nordestino é um jericó desidratado, capaz de desabrochar de repente se posto na água, todo verde e em flor'. 
Apanha um pouco de terra vermelha, toca-a com o rosto  'para sentir aquele cheiro de invisíveis sementes que germinam, e as pequenas raízes e pedacinhos de folhas, e até formigas e tracuás escapando pelo dorso das nossas mãos.' 
Parece uma prece, um ritual de amor.

Recebeu do pai o dom, Daniel de Queiroz era um ecologista avant la lettre. 
Herdou a extensa mata do Junco, onde se tirava lenha para locomotivas, mas Daniel botou critério nesse corte, poupava a madeira de lei, ali jamais se abatia um cumaru, uma aroeira, um pau d-arco. Quando Rachel recebeu de herança a intocada fazenda Não Me Deixes, aprofundou o trabalho de preservação. Durante décadas cuidou dos bosques da caatinga repleta de paus-brancos, catingueiras, juremas pretas, das imburanas e juazeiros, dos raros angicos, ou frejorges, e da fauna que ali vivia como num paraíso. Mas não se resumia aí sua atividade naturalista. 
Em 1994 apelou para o tombamento dos inselbergs de Quixadá, e a caravana de seres fantásticos em pedra foi decretada paisagem notável, de  'excepcional beleza cênica e reconhecida riqueza de seus monólitos como patrimônio natural'. 
Em 1998 escreveu de próprio punho, num papelzinho timbrado da Academia Brasileira de Letras, o requerimento para que fosse reconhecida sua fazenda como reserva particular, criando ali uma área de conservação ambiental em Quixadá.

Todo esse esforço foi coroado num dia, quando chegaram dois carros carregados de gaiolas com pássaros silvestres apreendidos, para que Rachel os libertasse e pudessem viver nas matas da fazenda. 'Acho que mereci essa honraria', ela comenta, numa crônica, 'pois sempre foi preocupação minha, desde menina, soltar passarinho'. 
E Rachel abriu as gaiolas, uma a uma. Incrível a sensação de libertar um pássaro, 'senti-lo estremecer sob seus dedos, temeroso, ou antes, apavorado; retirá-lo suavemente da prisão, levantar os braços o mais longe que pode e abrir as mãos no ar, dando liberdade aos cativos'. 
'Sentindo-se simplesmente pousado na sua mão, ele tateia com os pés os seus dedos, levanta a cabeça ainda duvidando que esteja livre. Mas agora o pássaro se ergue devagarinho nas pernas, agita as asas que você já não segura, treme, hesita e de repente se atira num voo que ele talvez suponha uma fuga.'
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