Rachel e a natureza compatível
Ana Miranda, Jornal O POVO - 29/04/2010
'O mar.. Espécie de céu líquido, também sem fim' |
Pessoas de minha idade, para mais, guardam lembranças da natureza.
Antigamente morávamos em casas, e as casas possuíam quintais, e os quintais, árvores, insetos, passarinhos... Crianças contemplavam joaninhas a passear nos dedos, prendiam vaga-lumes em potes de vidro... Viam o brotar de uma semente, um grilo era preso em barbante feito animal doméstico... Algumas moravam em fazendas ou sítios, como a menina Rachel, e acompanhavam os ciclos da flora e fauna, o regime dos ventos, das chuvas, o recorte das pedras... A natureza fazia parte de nós, e por isso éramos talvez mais felizes.
Uma das faces de Rachel de Queiroz, pouco conhecida, é sua amizade com a natureza.
Ela cresceu nos sertões e percebeu o valor que tem cada árvore, cada tufo de macambiras, a beleza cortante dos conjuntos de mandacaru nas lajes, as paisagens sob irradiação do sol ou da lua...
Rachel dividia a natureza cearense em quatro: o litoral arenoso, as serras, o sertão e o Cariri. Para esses mundos dedicou suas melhores palavras.
Descreve o mar como se a si mesma, 'verde, bravio, porém leal', 'todo ali, na superfície, bem à vista para quem o quiser conhecer e amar'.
Reclama da indiferença, 'ninguém se lembra de mostrar as nossas serras', oásis de clima temperado, verdes, com lampejos d-água, a face nua da áspera pedra furta-cor, cachoeiras nevoentas ou filetes que 'escorrem montanha abaixo como calda de açúcar desfiada'...
E sobre seu grande amor, o sertão, Rachel demora em devaneios críticos, como era de seu temperamento.
Chegam amigos ao sertão e Rachel lê nos seus olhos o espanto, 'que é que nos prenderá nesta secura e nesta rusticidade?' 'Tudo tão pobre. Tudo tão longe do conforto e da civilização, da boa cidade com as suas pompas e as suas obras. Aqui a gente tem apenas o mínimo, e até esse mínimo é chorado.'
'Por que tanto carinho e amor por estas terras ásperas? Não sei. Mistério é assim: está aí e ninguém sabe. Talvez a gente se sinta mais pura, mais nua, mais lavada'.
E Rachel sonha: plantar uma árvore imensa num cabeço limpo, fazer um açudinho entre duas ombreiras, coqueiros no pé da parede, ou, no choro da revência, umas leiras de melancia...
Fala das ovelhas sertanejas que mais parecem cachorros-do-mato, do parco feijão e mãos de milho para o povo virar o ano, dos bodes magros, da confusão desolada dos galhos secos, agressivos espinhos, nuvens que são apenas enfeites do céu, e o reverdecer instantâneo.
'Coração de nordestino é um jericó desidratado, capaz de desabrochar de repente se posto na água, todo verde e em flor'.
Apanha um pouco de terra vermelha, toca-a com o rosto 'para sentir aquele cheiro de invisíveis sementes que germinam, e as pequenas raízes e pedacinhos de folhas, e até formigas e tracuás escapando pelo dorso das nossas mãos.'
Parece uma prece, um ritual de amor.
Recebeu do pai o dom, Daniel de Queiroz era um ecologista avant la lettre.
Herdou a extensa mata do Junco, onde se tirava lenha para locomotivas, mas Daniel botou critério nesse corte, poupava a madeira de lei, ali jamais se abatia um cumaru, uma aroeira, um pau d-arco. Quando Rachel recebeu de herança a intocada fazenda Não Me Deixes, aprofundou o trabalho de preservação. Durante décadas cuidou dos bosques da caatinga repleta de paus-brancos, catingueiras, juremas pretas, das imburanas e juazeiros, dos raros angicos, ou frejorges, e da fauna que ali vivia como num paraíso. Mas não se resumia aí sua atividade naturalista.
Em 1994 apelou para o tombamento dos inselbergs de Quixadá, e a caravana de seres fantásticos em pedra foi decretada paisagem notável, de 'excepcional beleza cênica e reconhecida riqueza de seus monólitos como patrimônio natural'.
Em 1998 escreveu de próprio punho, num papelzinho timbrado da Academia Brasileira de Letras, o requerimento para que fosse reconhecida sua fazenda como reserva particular, criando ali uma área de conservação ambiental em Quixadá.
Todo esse esforço foi coroado num dia, quando chegaram dois carros carregados de gaiolas com pássaros silvestres apreendidos, para que Rachel os libertasse e pudessem viver nas matas da fazenda. 'Acho que mereci essa honraria', ela comenta, numa crônica, 'pois sempre foi preocupação minha, desde menina, soltar passarinho'.
E Rachel abriu as gaiolas, uma a uma. Incrível a sensação de libertar um pássaro, 'senti-lo estremecer sob seus dedos, temeroso, ou antes, apavorado; retirá-lo suavemente da prisão, levantar os braços o mais longe que pode e abrir as mãos no ar, dando liberdade aos cativos'.
'Sentindo-se simplesmente pousado na sua mão, ele tateia com os pés os seus dedos, levanta a cabeça ainda duvidando que esteja livre. Mas agora o pássaro se ergue devagarinho nas pernas, agita as asas que você já não segura, treme, hesita e de repente se atira num voo que ele talvez suponha uma fuga.'
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