sábado, 6 de abril de 2019

Aos colegas Professores

Ensinar é um exercício de imortalidade. De alguma forma continuamos a viver naqueles cujos olhos
aprenderam a ver o mundo pela magia da nossa palavra.
O professor, assim, não morre jamais…
Rubem Alves
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Ensinar o que não se sabe
Rubem Alves - Revista Prosa, Verso e Arte

E chega o momento quando o Mestre toma o discípulo pela mão, e o leva até o alto da montanha. Atrás, na direção do nascente, se vêem vales, caminhos, florestas, riachos, planícies ermas, aldeias e cidades. Tudo brilha sob a luz clara do sol que acaba de surgir no horizonte. E o Mestre fala:

Por todos estes caminhos já andamos. Ensinei-lhe aquilo que sei. já não há surpresas. Nestes cenários conhecidos moram os homens. Também eles foram meus discípulos! Dei-lhes o meu saber e eles aprenderam as minhas lições. Constroem casas, abrem estradas, plantam campos, geram filhos… Vivem a boa vida cotidiana, com suas alegrias e tristezas. Veja estes mapas!

Com estas palavras ele toma rolos de papel que trazia debaixo do braço e os abre diante do discípulo.

Aqui se encontra o retrato deste mundo. Se você prestar bem atenção, verá que há mapas dos céus, mapas das terras, mapas do corpo, mapas da alma. Andei por estes cenários. Naveguei, pensei, aprendi. Aquilo que aprendi e que sei, está aqui. E estes mapas eu lhe dou, como minha herança. Com eles você poderá andar por estes cenários sem medo e sem sustos, pisando sempre a terra firme. Dou-lhe o meu saber.

Aí o Mestre fica silencioso, olhando dentro dos olhos do discípulo. Ele quer adivinhar o que se esconde naquele olhar. Examina os seus pés. Nos pés sólidos se revela a vocação para andar pelas trilhas conhecidas. Quem sabe isto é tudo aquilo de que aquele corpo jovem é capaz! Quem sabe isto é tudo o que aquele corpo jovem deseja! Se assim for, talvez que o melhor seria encerrar aqui a lição e nada mais dizer.

Mas o Mestre não se contém e procura, nas costas do seu discípulo, prenúncios de asas – asas que ele imaginara haver visto como sonho, dentro dos seus olhos.

O Mestre sabe que todos os homens são seres alados por nascimento, e que só se esquecem da vocação pelas alturas quando enfeitiçados pelo conhecimento das coisas já sabidas.

Ensinou o que sabia. Agora chegou a hora de ensinar o que não sabe: o desconhecido.

Volta-se então na direção oposta, o mar imenso e escuro, onde a luz do sol ainda não chegou.

É este o seu destino. Os poetas o têm sabido desde sempre: A solidez, da terra, monótona, parece-nos fraca ilusão. Queremos a ilusão do grande mar, multiplicada em suas malhas de perigo (Cecília Meireles).

É preciso navegar. Deixando atrás as terras e os portos dos nossos pais e avós, nossos navios têm de buscar a terra dos nossos filhos e netos, ainda não vista, desconhecida. (Nietzsche).

Mas, para esta aventura meus mapas não lhe bastam. Todos os diplomas são inúteis. E inútil todo o saber aprendido. Você terá de navegar dispondo de uma coisa apenas: os seus sonhos. Os sonhos são os mapas dos navegantes que procuram novos mundos. Na busca dos seus sonhos você terá de construir um novo saber, que eu mesmo não sei… E os seus pensamentos terão de ser outros, diferentes daqueles que você agora tem.

O seu saber é um pássaro engaiolado, que pula de poleiro a poleiro, e que você leva para onde quer. Mas dos sonhos saem pássaros selvagens, que nenhuma educação pode domesticar.

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Meu saber o ensinou a andar por caminhos sólidos. Indiquei-lhe as pedras firmes, onde você poderá colocar os seus pés, sem medo. Mas o que fazer quando se tem de caminhar por um rio saltando de pedra em pedra, cada pedra uma incógnita? Ah! Como são diferentes o corpo movido pelo sonho, do corpo movido pelas certezas.

Sobre leves esteios o primeiro salta para diante. a esperança e o pressentimento põem asas em seus pés. Pesadamente o segundo arqueja em seu encalço e busca esteios melhores para também alcançar aquele alvo sedutor, ao qual seu companheiro mais divino já chegou. Dir-se-ia ver dois andarilhos diante de um regato selvagem, que corre rodopiando pedras. o primeiro, com pés ligeiros, salta por sobre ele, usando as pedras e apoiando-se nelas para lançar-se mais adiante, ainda que, atrás dele, afundem bruscamente nas profundezas. O outro, a todo instante, detém-se desamparado, precisa antes construir fundamentos que sustentem seu passo pesado e cauteloso; por vezes isso não dá resultado e, então, não há deus que possa auxiliá-lo a transpor o regato. (Nietzsche)

Até agora eu o ensinei a marchar. É isto que se ensina nas escolas. Caminhar com passos firmes. Não saltar nunca sobre o vazio. Nada dizer que não esteja construído sobre sólidos fundamentos. Mas, com o aprendizado do rigor, você desaprendeu o fascínio do ousar. E até desaprendeu mesmo a arte de falar. Na Idade Média (e como a criticamos!) os pensadores só se atreviam a falar se solidamente apoiados nas autoridades. Continuamos a fazer o mesmo, embora os textos sagrados sejam outros. Também as escolas e universidades têm os seu papas, seus dogmas, suas ortodoxias. O segredo do sucesso na carreira acadêmica? Jogar bem o boca de forno, a aprender a fazer tudo o que seu mestre mandar…
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Agora o que desejo é que você aprenda a dançar. Lição de Zaratustra, que dizia que para se aprender a pensar é preciso primeiro aprender a dançar. 
Quem dança com as idéias descobre que pensar é alegria. Se pensar lhe dá’ tristeza e porque você só sabe marchar, como soldados em ordem unida. 
Saltar sobre o vazio, pular de pico em pico. Não ter medo da queda. Foi assim que se construiu a ciência: não pela prudência dos que marcham, mas pela ousadia dos que sonham. Todo conhecimento começa com o sonho. 
O conhecimento nada mais é que a aventura pelo mar desconhecido, em busca da terra sonhada. Mas sonhar é coisa que não se ensina. Brota das profundezas do corpo, como a água brota das profundezas da terra. Como Mestre só posso então lhe dizer uma coisa: “Conte-me os seus sonhos, para que sonhemos juntos!”
**
– Rubem Alves, no livro “A alegria de ensinar”. São Paulo: Ars Poetica Editora Ltda, 1994.

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domingo, 3 de março de 2019

Ah, sim, é Domingo de Carnaval...

A MÁSCARA
Sergio Rodrigues - escritor, jornalista e crítico literário brasileiro, 

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Todo cuidado é pouco com essa máscara, viu, Vi? Não, sua boba, empresto com prazer porque você sabe que é a minha neta preferida, e além disso tem outras coisas, sinto um arrepio só de imaginar que a minha máscara negra veneziana nariguda vai se soltar por essas ruas outra vez depois de meio século guardada numa caixa de chapéu com a tampa afundada, devia andar triste, a coitadinha, olha só esses olhos vazados caídos, tão merencórios. Ah, esses olhinhos viram coisa, Vi. Claro que não era como agora, era melhor, era pior.  Diferente: eu nunca fui de folia e nem podia ser, sempre fui certinha. Seu avô, sim, aquele se esbodegava inteiro, saía no sábado pra voltar na quarta-feira que nem na música da camisa listrada, só que a fantasia dele, infalível, era de arlequim – conhece a música da camisa listrada? Ainda toca isso? Em vez de tomar chá com torrada ele tomou parati, não, imagine se vai tocar. Agora é diferente, pior, melhor, depende. 
Por exemplo, quando você casar, duvido que aguente o que eu aguentei. Não aguenta, Vi, mudou demais. Para melhor, nesse ponto eu acho que foi para muito melhor, porque se o seu marido um dia sair por aí com um canivete no cinto e um pandeiro na mão, sossega leão e tal, eu acho que você pode até aceitar, mas conhecendo você como eu conheço, eu sei que mal a porta bateu você vai sair também, você pra lá, eu pra cá, até quarta-feira, lalaiá, lalaiá. 
Sossega leoa – vai ou não vai? Pois eu acho que está certíssimo, querida, nós é que éramos bobas no meu tempo, eu era. Engolia, aguentava, chorava no travesseiro, noite em cima de noite perdendo o viço. Uma mulher guardada numa caixa de chapéu com a tampa afundada, cheiro de naftalina, ih, estou melosa, estou dramática, mas era assim. Não admira que os olhinhos fossem ficando merencórios, que o marido perdesse o interesse e procurasse cada vez mais passatempos, depois vinha cair na cama sem tirar nem o sapato. 
O seu avô, por exemplo: um homem bom, trabalhador, mas um patriarcão de antigamente, acho que um dos últimos. Pisada firme, vozeirão, chicote no cinto, chicote é maneira de dizer, que no Rio de 1950 ninguém usava chicote, mas você entende. 
Sua mãe não era nascida ainda, os outros quatro sim, aquela escadinha, e foi aí que ele me prometeu. O baile de máscaras do sábado de carnaval no casarão da Glorinha Pissaraçuba na Praia do Flamengo – não tinha programa mais cintilante, joia social mais cobiçada naquele tempo. Era diferente demais, melhor, pior, eu não disse? Melhor, Vi, nesse caso era melhor porque nós íamos pela primeira vez no baile da Glorinha Pissaraçuba, ah, você tinha que ver a minha felicidade! 
A máscara veneziana eu comprei na Rua do Ouvidor para a ocasião, não foi barata, negra porque assim ficava mais discreto, mais digno, seu avô aconselhou. Aconselhou? Essa é boa, aconselhou nada, mandou, pois é. 
O vestido ia ser um verde brilhoso de festa que já começava a encardir no armário, mandei tirar, lavar, quarar, engomar, chegou o dia e eu fui fazer o cabelo, as crianças excitadas só de ver a minha felicidade, mamãe vai sambar, vai sambar, sambar, e quando chegou a hora, Vi – sambei, justamente. Seu avô ligou da rua dizendo que a gente não ia mais no baile de máscaras, imprevistos, ele falou, contratempos, uma palavra assim. Eu sabia o tipo de contratempo que ele gostava, aquele que o cabelo não nega mas em compensação a cor não pega, feito dizia o Lamartine. 
Seu avô não era fácil e a gente era boba demais, triste e amargurada, não tinha essa sabedoria das mulheres de hoje, não tinha o salve o prazer, salve o prazer. Me tranquei no quarto aquele sábado, os olhinhos merencórios dessa máscara negra aí, essa mesma, ficaram me olhando em cima da cama um tempão. Foi a Conceição que pôs as crianças para dormir, apagou a casa toda, você não teve tempo de conhecer a Conceição, até hoje eu sinto saudade. Ela cuidou de tudo enquanto eu ficava sentada na cama de vestido verde e laquê armado ouvindo as risadas, gritinhos, gente batendo na lata, os barulhos todos de carnaval que você conhece, isso não mudou tanto, ainda é assim. 
Eu nunca fui de folia e nem podia ser, sempre fui certinha, e quando cheguei na esquina de máscara e vestido verde e vi um grupo de clóvis me olhando do outro lado da rua, me veio um pânico doido, quase dei meia volta. Nem sei como continuei andando, marcando o passo com o meu coração, acho que eu corria. 
Não lembro de ter entrado no Cadillac que o pierrô de porre parou do meu lado, me deu um branco mas eu sabia que, tendo entrado ou não, a verdade era que eu estava dentro dele agora, sentada no banco do carona com a cabeça girando e a mão do pierrô no meu joelho enquanto a estradinha cheia de curvas passava por nós, o mar rugindo lá embaixo, reconheci a Niemeyer. Quem é você, diga logo que eu quero saber, ele me disse que se chamava Jorge, depois Álvaro, mais tarde Toninho, e com o céu começando a clarear já tinha virado Camilo, Ciro, Ismael. Eu também não pronunciei o nosso nome, Vi, e a máscara negra nariguda eu só tirei enquanto a escuridão nos protegia, o pierrô não soube que eu me chamava Elvira. 
Mas nunca vou esquecer os olhos verdes dele, aqueles não tinham nada de merencórios, eram da cor do mar de São Conrado quando amanhece num domingo de carnaval – idênticos aos que me olham agora da sua cara espantada, Vi, isso também não mudou, e no fim daquele ano sua mãe nasceu.

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segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

Cecília Meireles - Contemplação

CONTEMPLAÇÃO
Cecília Meireles, em 'Mar absoluto'


Não acuso. Nem perdoo.
Nada sei. De nada.
Contemplo.

Quando os homens apareceram
eu não estava presente.
Eu não estava presente,
quando a terra se desprendeu do sol.
Eu não estava presente,
quando o sol apareceu no céu.
E antes de haver o céu,
EU NÃO ESTAVA PRESENTE.

Como hei de acusar ou perdoar?
Nada sei.
Contemplo.

Parece que às vezes me falam.
Mas também não tenho certeza.
Quem me deseja ouvir, nestas paragens
onde somos todos estrangeiros?
Também não sei com segurança, muitas vezes,
da oferta que vai comigo, e em que resulta,
pois o mundo é mágico!
Tocou-se o Lírio e apareceu um Cavalo Selvagem.
E um anel no dedo pode fazer desabar da lua um temporal.

Já vês que me enterneço e me assusto,
entre as secretas maravilhas.
E não posso medir todos os ângulos do meu gesto.

Noites e noites, estudei devotamente
nossos mitos, e sua geometria.

Por mais que me procure, antes de tudo ser feito,
eu era amor. Só isso encontro.
Caminho, navego, voo,
- sempre amor.
Rio desviado, seta exilada, onda soprada ao contrário,
- mas sempre o mesmo resultado: direção e êxtase.
À beira dos teus olhos,
por acaso detendo-me,
que acontecimentos serão produzidos
em mim e em ti?

Não há resposta.
Sabem-se os nascimentos 
quando já foram sofridos.

Tão pouco somos, - e tanto causamos,
com tão longos ecos!
Nossas viagens têm cargas ocultas, de desconhecidos vínculos.

Entre o desejo do itinerário, uma lei que nos leva
age invisível e abriga 
mais que o itinerário e o desejo.

Que te direi, se me interrogas?
As nuvens falam?
Não. As nuvens tocam-se, passam, desmancham-se.
Às vezes, pensa-se que demoram, parece que estão paradas...
Confundiram-se.

E até se julga que dentro delas andam estrelas e planetas.
Oh, aparência...Pode talvez andar um tonto pássaro perdido.
Voz sem pouso, no tempo surdo.

Não acuso nem perdoo.
Que faremos, errantes entre as invenções dos deuses?

Eu não estava presente, quando formaram 
a voz tão frágil dos pássaros.

Quando as nuvens começaram a existir,
qual de nós estava presente?

*            *            *

segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

Rachel de Queiroz por Ana Miranda

Rachel e a natureza compatível
Ana Miranda, Jornal O POVO - 29/04/2010
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'O mar.. Espécie de céu líquido, também sem fim'

Pessoas de minha idade, para mais, guardam lembranças da natureza. 
Antigamente morávamos em casas, e as casas possuíam quintais, e os quintais, árvores, insetos, passarinhos... Crianças contemplavam joaninhas a passear nos dedos, prendiam vaga-lumes em potes de vidro... Viam o brotar de uma semente, um grilo era preso em barbante feito animal doméstico... Algumas moravam em fazendas ou sítios, como a menina Rachel, e acompanhavam os ciclos da flora e fauna, o regime dos ventos, das chuvas, o recorte das pedras... A natureza fazia parte de nós, e por isso éramos talvez mais felizes.

Uma das faces de Rachel de Queiroz, pouco conhecida, é sua amizade com a natureza. 
Ela cresceu nos sertões e percebeu o valor que tem cada árvore, cada tufo de macambiras, a beleza cortante dos conjuntos de mandacaru nas lajes, as paisagens sob irradiação do sol ou da lua... 
Rachel dividia a natureza cearense em quatro: o litoral arenoso, as serras, o sertão e o Cariri. Para esses mundos dedicou suas melhores palavras. 
Descreve o mar como se a si mesma, 'verde, bravio, porém leal', 'todo ali, na superfície, bem à vista para quem o quiser conhecer e amar'. 
Reclama da indiferença, 'ninguém se lembra de mostrar as nossas serras', oásis de clima temperado, verdes, com lampejos d-água, a face nua da áspera pedra furta-cor, cachoeiras nevoentas ou filetes que 'escorrem montanha abaixo como calda de açúcar desfiada'... 
E sobre seu grande amor, o sertão, Rachel demora em devaneios críticos, como era de seu temperamento. 
Chegam amigos ao sertão e Rachel lê nos seus olhos o espanto, 'que é que nos prenderá nesta secura e nesta rusticidade?'  'Tudo tão pobre. Tudo tão longe do conforto e da civilização, da boa cidade com as suas pompas e as suas obras. Aqui a gente tem apenas o mínimo, e até esse mínimo é chorado.'
'Por que tanto carinho e amor por estas terras ásperas? Não sei. Mistério é assim: está aí e ninguém sabe. Talvez a gente se sinta mais pura, mais nua, mais lavada'. 
E Rachel sonha: plantar uma árvore imensa num cabeço limpo, fazer um açudinho entre duas ombreiras, coqueiros no pé da parede, ou, no choro da revência, umas leiras de melancia...
Fala das ovelhas sertanejas que mais parecem cachorros-do-mato, do parco feijão e mãos de milho para o povo virar o ano, dos bodes magros, da confusão desolada dos galhos secos, agressivos espinhos, nuvens que são apenas enfeites do céu, e o reverdecer instantâneo. 
'Coração de nordestino é um jericó desidratado, capaz de desabrochar de repente se posto na água, todo verde e em flor'. 
Apanha um pouco de terra vermelha, toca-a com o rosto  'para sentir aquele cheiro de invisíveis sementes que germinam, e as pequenas raízes e pedacinhos de folhas, e até formigas e tracuás escapando pelo dorso das nossas mãos.' 
Parece uma prece, um ritual de amor.

Recebeu do pai o dom, Daniel de Queiroz era um ecologista avant la lettre. 
Herdou a extensa mata do Junco, onde se tirava lenha para locomotivas, mas Daniel botou critério nesse corte, poupava a madeira de lei, ali jamais se abatia um cumaru, uma aroeira, um pau d-arco. Quando Rachel recebeu de herança a intocada fazenda Não Me Deixes, aprofundou o trabalho de preservação. Durante décadas cuidou dos bosques da caatinga repleta de paus-brancos, catingueiras, juremas pretas, das imburanas e juazeiros, dos raros angicos, ou frejorges, e da fauna que ali vivia como num paraíso. Mas não se resumia aí sua atividade naturalista. 
Em 1994 apelou para o tombamento dos inselbergs de Quixadá, e a caravana de seres fantásticos em pedra foi decretada paisagem notável, de  'excepcional beleza cênica e reconhecida riqueza de seus monólitos como patrimônio natural'. 
Em 1998 escreveu de próprio punho, num papelzinho timbrado da Academia Brasileira de Letras, o requerimento para que fosse reconhecida sua fazenda como reserva particular, criando ali uma área de conservação ambiental em Quixadá.

Todo esse esforço foi coroado num dia, quando chegaram dois carros carregados de gaiolas com pássaros silvestres apreendidos, para que Rachel os libertasse e pudessem viver nas matas da fazenda. 'Acho que mereci essa honraria', ela comenta, numa crônica, 'pois sempre foi preocupação minha, desde menina, soltar passarinho'. 
E Rachel abriu as gaiolas, uma a uma. Incrível a sensação de libertar um pássaro, 'senti-lo estremecer sob seus dedos, temeroso, ou antes, apavorado; retirá-lo suavemente da prisão, levantar os braços o mais longe que pode e abrir as mãos no ar, dando liberdade aos cativos'. 
'Sentindo-se simplesmente pousado na sua mão, ele tateia com os pés os seus dedos, levanta a cabeça ainda duvidando que esteja livre. Mas agora o pássaro se ergue devagarinho nas pernas, agita as asas que você já não segura, treme, hesita e de repente se atira num voo que ele talvez suponha uma fuga.'
*               *               *

sábado, 29 de dezembro de 2018

Sobre o filme 'Bird Box' - página 'CONTI outra'


"Bird Box":  - Psicóloga desvenda mensagens 
subliminares do filme
Gabriela Souza Granero (*) - Página 'CONTI outra'



Protagonizado por Sandra Bullock, o filme “Bird Box”, estreou na Netflix já fazendo barulho e dividindo opiniões. Há os que não se agradaram, os que gostaram muito e, como sempre, os que inevitavelmente comparam com o livro, já que “Bird Box” foi baseado no livro de mesmo nome de Josh Malerman – publicado no Brasil pela Editora Intrínseca com o título “Caixa de Pássaros”.

O filme mostra a história de pessoas que são obrigadas a viver escondidas e vendadas, pois criaturas misteriosas e não visíveis para quem assiste, provocam o suicídio em quem enxergá-las. O maior desafio da personagem de Sandra Bullock é levar seus dois filhos para um abrigo em segurança, mas todo o trajeto deve ser feito com venda nos olhos.

Segundo algumas interpretações (muito bem elaboradas, diga-se de passagem), a diretora dinamarquesa Susanne Bier usa o tema do “pós apocalíptico” apenas como metáfora para passar outra mensagem: a questão da depressão que afeta mais e mais pessoas em todo o mundo a cada dia.

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Aqui apresentamos uma análise elaborada pela psicóloga Gabriela Granero. Vale muito a pena a leitura.

No início do filme, a personagem principal tem dificuldade de se vincular e mostra uma incapacidade de amar; pinta no quadro a solidão instaurada dentro de si, o que evidencia seus sintomas depressivos e uma latente infelicidade.
Correlacionado ao período que vivemos na qual depressão é a doença do nosso século.

Depois o filme mostra que a “coisa” está se espalhando por todos países e ninguém está imune, a não ser aqueles que não olham, a “coisa” que se espalha.  Faz uma analogia com a sociedade contemporânea, a qual está adoecida, e todos estão se contaminando só de olhar uns para os outros.

Esse adoecimento contemporâneo pode ser visto na enorme quantidade de pessoas com transtornos mentais (depressão, pânico, toc, TAG), além do isolamento social, a invasão tecnológica, o excesso de consumismo, etc.

O pânico é muito bem representado no filme em diversas cenas, mas talvez a mais visível seja quando estão indo ao supermercado e o personagem negro se desespera.

Também podemos relacionar com a onda de suicídios coletivos ocorridos nesse últimos ano, em pessoas de todas as faixas etárias.

Para não se “contaminar” os personagens fecham os olhos; às vezes precisamos fechar os olhos frente aos disparadores que causam adoecimento na contemporaneidade para que possamos sobreviver, porém mais do que fechar os olhos é preciso descobrir uma nova forma de viver.
Reinventar-se , entretanto. demanda um árduo trabalho, as vendas nos olhos fazem alusão a:
'Ah, como é difícil  acostumar-se a viver de uma outra maneira.'

A travessia do rio no filme , representa as travessia diária que temos que fazer para não nos contaminarmos/adoecermos, porém essa travessia não é um caminho fácil mas composto de correntezas.
Além do que, muitas vezes, é preciso fazer difíceis escolhas, como no momento que a personagem tem que escolher entre o garoto e a garota.

Quantas vezes na nossa vida não nos vemos em um beco sem saída? Sem saber qual decisão tomar?

Outro ponto são os “loucos” do filme, que fazem alusão aos transtornos mentais inerentes em todos ser humano, dos quais ninguém está imune.

As cenas de suicídio e pânico são chocantes e metaforicamente representam a fragilidade humana, o desespero muito bem retratado no filme, o desespero interno que estamos vivenciando.

Outro ponto que não pode ser esquecido, é com relação aos pássaros, sensíveis a captar quando a “coisa” está chegando.
Quantas vezes sentimos uma “coisa” que não sabemos nomear. Às vezes não somos capazes de reconhecer nossos próprios sentimentos.

Em uma determinada parte do filme, o personagem Tom diz que teve um sonho na qual os pássaros estavam em um ninho em cima da árvore,  depois voaram e foram embora

Essa metáfora representa a liberdade emocional e social que todo ser humano almeja, mas que é muito difícil encontrar. Somos como pássaros presos em gaiolas. 
As gaiolas representam a escravidão evidenciada no filme, as vendas fazem analogia ao fato de que não estamos vendo a gravidade da nossa situação; com o pânico instaurado a única saída possível é o suicídio. Será que não estamos engaiolados?
Será que não ouvimos vozes que nos querem convencer do contrário? Como a cena em que estão na floresta, a atriz principal e as crianças ouvem vozes que as confundem.
Quantas vozes nos atrapalham em nosso crescimento emocional?

Por fim, quando a personagem faz a travessia do rio, desenvolve a sua capacidade de amar, Tom não vai com ela, pois essa travessia é única, muitas vezes temos que fazê-la sozinhos.

O final do filme é o mais surpreendente: os únicos que não foram contaminados são os cegos, outra metáfora muito forte.

Eles não vêem fisicamente, mas têm a habilidade de olhar internamente para si, por isso não são “contaminados pela coisa”.

Ao final, a personagem principal aprende a amar e a lidar com seus sintomas depressivos, a capacidade de amar a salva de sua solidão e dá sentido a sua vida.

Ao dar um nome ao garoto e à garota, fica nítido que ela perdeu o medo de se vincular. E perdeu o medo de perder as pessoas, já que  perdera sua irmã, sua amiga grávida e outros amigos.

Chegar à comunidade é alcançar a liberdade, representada ao soltar os pássaros da gaiolas; chegar à comunidade é desejo de alcançar a “cura” e, mais do que isso, fugir desse adoecimento contemporâneo.

Nessa comunidade as pessoas estão convivendo umas com as outras e as crianças estão brincando, e detalhe: as crianças não estão no celular.
Porém, ainda assim, os personagens não alcançam a liberdade em sua completude, pois estão presos em uma “gaiola de pessoas”.

Será possível alcançar a felicidade em sua plenitude?

O conceito de saúde mental, de acordo com a OMS, é “o completo bem estar físico, mental e social.”
Será possível alcançar essa completude? O sofrimento não é inerente a nossa condição?

Enfim, o filme está cheio de mensagens subliminares mas às vezes estamos com os olhos vendados e não conseguimos ver.
*            *            *

(*) Gabriela Souza Granero é psicóloga,
pós-graduada em psicoterapia psicanálitica pelo Uni-Facef
Mestranda em Psicologia pela UFTM

sábado, 8 de dezembro de 2018

O Requerimento - Adriana Falcão

O REQUERIMENTO
Adriana Falcão - nascida em 12 de fevereiro de 1960. 
É escritora e também roteirista de TV.

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Caro Senhor Tempo,
Espero que esta o encontre passando bem, ou melhor, passando o mais devagar possível.
Por aqui vai-se indo, como o Senhor quer e consente, meio rápido demais para o meu gosto, e quando vi já era dezembro.
Foi-se mais um ano.
E com ele foram-se uma quantidade incalculável de amores, cores, idades, alguns amigos, não sei quantos neurônios, memórias, remorsos, desvarios, cabelos, ilusões, alegrias, tristezas, várias certezas (se não me engano, treze), algumas verdades indiscutíveis, umas calças que não fecham mais e aquele vestido de que eu gostava tanto.
Foi-se o meu gosto por vitrine.
Foi-se quase todo o meu vidro de perfume.
Foi-se meu costume de imaginar asneiras à noite.
Foi-se meu forte instinto de acreditar no que me dizem.
Foi-se meu açucareiro de porcelana.
Que pena.
Foi-se o tempo em que uma simples farra não significava necessariamente uma condenação sumária no dia subseqüente.
Foi-se a poupança.
O troquinho da gaveta.
Foi-se aquele antigo projeto.
Foram-se exatamente nove vírgula seis por cento de todas as minhas esperanças.
Será que o Senhor não se cansa, seu Tempo?
Não pensa em tirar umas férias, dar uma pausa, respirar um pouco? Não lhe agrada a ideia de mudar o andamento? Diminuir o ritmo? 
Em vez de tic-tac, inventar uma palavra mais comprida para compasso, mantra, ícone, diagrama?
Me diga sinceramente: para que tanta pressa?
Anda difícil acompanhar seus passos ultimamente.
Não precisa dar meia-volta, eu não espero tanto. Eternidade? Não. Só queria sua amizade.
Mas já é dezembro.
Foi-se mais um ano.
E o Senhor passou voando, rebocou os meus momentos, foi desbotando minhas lembranças, carregou mais doze meses inteiros levando cada instante meu de carona.
Tentei voltar atrás em algumas decisões. Já era tarde.
Não deixei nada para amanhã. Mesmo assim não fiz sequer metade do que pretendia. Imaginei várias maneiras de estancar os dias, segunda, terça, quarta, quando via já era quinta. Sexta. Sábado. Domingo. Pronto.
Pensei em fuga. Será que existe algum lugar deste mundo onde as horas não me encontrem? Fiquei meses trancada em casa. Foi inútil. Lá fora, o Senhor continua passando.
E já passou mais um pouquinho.
Calma, Tempo! Espere só um minutinho para eu explicar melhor meu ponto de vista.
Nem todo mundo é pedra, concorda? Dito isso, imagine então quantos pobres mortais sofrem da mesma agonia diária: giros e mais giros nos ponteiros, os cantos dos cucos, as denúncias das sombras, os grãos de areia escorrendo (parece até hemorragia crônica), tudo escapulindo, descendo, subindo, o frenesi dos dígitos, um, dois, três, quatro, cinco, cem, o Senhor vai tirar o pai da forca? Está fugindo de alguém? De quem? De mim? De ontem?
Eu conheço de cor suas obrigações.
Estou convencida de suas utilidades.
Não fosse o Senhor, não existiriam saudade, retrato, suvenir, antiguidade, história, época, período, calendário, outrora, passatempo, novidade, creme anti-rugas, disputa por pênaltis, antepassado, descendente, dia, noite, nada, não existiria sabedoria, eu sei disso.
Não tome como queixas minhas palavras, por favor não tome.
Aqui vai apenas uma súplica.
Ah, se o Senhor fosse mais indulgente, mais piedoso, mais pensativo, se fosse baiano, menos estressado, mais manso, menos rigoroso, um 'bon vivant', e se distraísse aí pelo caminho, e se deixasse apreciar as paisagens, e sofresse um devaneio, e ficasse de bobeira, esquecido das horas, divagando.
Escute aqui, seu Tempo, que tal deixar passar o resto e parar quieto um pouco?"

*            *            *

terça-feira, 13 de novembro de 2018

Sobre 'Macunaíma',de Mário de Andrade

"Muito mais do que um livro de vestibular"
Edison Veiga
De Milão para a BBC News Brasil 
Fonte: Jornal UOL – 15 de setembro 2018

Grande Otello no filme Macunaíma
Adaptada para o cinema, em filme considerado por críticos
um dos cem melhores da filmografia nacional

"Pouca saúde e muita saúva, os males do Brasil são" - esse slogan de Macunaíma pode ajudar a explicar metaforicamente o país até hoje, na opinião de muitos. 
Mas não é só isso que faz a grandeza dessa obra-prima, o romance rapsódia 'Macunaíma - O herói sem nenhum caráter', que o modernista Mário de Andrade (1893-1945) publicou em 1928, há 90 anos.

O escritor criou um anti-herói marginal que nasce com preguiça na Amazônia e apronta tantas traquinagens que acaba abandonado pela mãe. 
Macunaíma é erotizado e, a todo custo, busca prazeres sexuais. Ainda na floresta, ele ganha um talismã indígena, a muiraquitã. Depois perde a pedra e então viaja para São Paulo e Rio de Janeiro a fim de tentar recuperá-la. No percurso, o protagonista - que nasce negro e vira branco - vive peripécias e confusões, revelando suas falhas de caráter.

"O livro reúne uma vasta pesquisa da linguagem, das práticas narrativas e das músicas, das falas, ditos, contos e cantos populares do Brasil", enumera o antropólogo Paulo Santilli, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp).
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"Com muita pesquisa, argúcia e inventividade, Mário introduziu linguagens populares nos centros urbanos e os ambientou, amalgamados, em uma inventiva criação, tecendo uma crítica, de modo tão irreverente quanto irônico, aos cacoetes das elites."
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Uma obra 'deslumbrante e triste, como o Brasil'

A primeira edição, com 283 páginas, foi impressa nas Oficinas Gráficas de Eugenio Cupolo, em São Paulo. Saiu do prelo em 26 de julho de 1928 e, nos meses seguintes, foi assunto entre os principais expoentes da cultura nacional. "A obra apresentou uma grande renovação estética. E isso provocou uma reação irada da crítica conservadora", diz Santilli.
Capa da primeira edição de Macunaíma, de 1928, hoje em domínio público
"É um marco do modernismo, o primeiro movimento literário realmente brasileiro e, dessa forma, ele dá resposta ao anseio do brasileiro entender quem somos, afinal, como povo. Essa é uma questão eterna para um país que surge do encontro - ou desencontro - de centenas de etnias indígenas e africanas, por causa da colonização europeia. Um país que é miscigenado, que se ama e se odeia por isso", comenta a antropóloga Deborah Goldemberg, curadora de um evento promovido pela organização social Poiesis para celebrar os 90 anos do livro.

"Desde que foi lançado, o livro significou isso - um marco na literatura brasileira, algo genuinamente brasileiro, com estética e linguagem próprias e não comparáveis ao cânone europeu que influenciava a literatura brasileira até então. Sempre encantou porque ele é ao mesmo tempo deslumbrante e triste, como o nosso país."
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Macunaíma já foi pintado, aliás, por uma gigante da história das artes plásticas do Brasil. É de Tarsila do Amaral (1886-1973) o quadro O batizado de Macunaíma, que hoje pertence a uma coleção particular.
Resultado de imagem para tela Macunaíma Tarsila do Amaral

Em 1969, Macunaíma virou filme - dirigido por Joaquim Pedro de Andrade (1932-1988) e com Grande Otelo (1915-1993) no papel principal. A obra é considerada pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema como uma das cem melhores da filmografia nacional.

Filme Macunaíma
Para especialistas em literatura e sociólogos, Macunaíma é uma obra que convida a refletir sobre a identidade nacional.

Gestação longa, nascimento rápido
Mário de Andrade costumava dizer que escreveu Macunaíma em apenas seis dias - "deitado na rede em Araraquara", frisa o poeta e crítico literário Frederico Barbosa. "No entanto, a obra revela uma enorme pesquisa e profunda reflexão do escritor sobre a identidade nacional. Ou seja, demorou muito tempo para ser gestada, embora tenha saído de forma bastante natural ao ser escrita."
Barbosa acredita que é isso que faz de Macunaíma um livro "sempre interessante e vivo".

"É erudição com naturalidade e humor. É muito sério em sua essência, mas muito engraçado e divertido na leitura. Em outras palavras, Macunaíma é, antes de tudo, uma obra gostosa de se ler que abre um vasto leque de reflexões sobre nossa identidade nacional", explica.

"Segue sendo importante porque diz muito do Brasil do início deste século e também do século passado", afirma Santilli.

"A maestria de Mário de Andrade ao mesclar a língua coloquial e a escrita demonstra a distância entre esses falares e confere um efeito estético. Essa trama ilustra a distância tanto no léxico quanto na política entre as elites e a população. Significa muito mais do que as listas de vestibulares. É um livro necessário para compreender o Brasil, a riqueza e a diversidade linguística e cultural do Brasil, e ao mesmo tempo a mediocridade e a avidez mesquinha da elite que marca a história do Brasil."

"Noventa anos depois, continuamos buscando uma identidade cultural nacional, algo que nos una enquanto nação. Mas continuamos divididos e sem conhecer nossa história - o que pode ajudar a entender todas as tensões atuais", comenta o editor e poeta Eduardo Lacerda.
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Poeta, escritor, crítico literário, musicólogo, historiador da arte, folclorista e ensaísta, ele gostava de ir a campo em busca das experiências dos brasileiros reais. Foi uma das mentes por trás da Semana de Arte Moderna de 1922, que deu início ao movimento Modernista e mudou a arte no país.

Em 1935, tornou-se diretor-fundador do Departamento de Cultura de São Paulo, um órgão que seria o embrião da atual Secretaria de Cultura. Em 1937, quando o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) foi criado, Mário de Andrade foi incumbido de peregrinar pelo interior paulista a fim de identificar e mapear tudo aquilo que merecia ser protegido como bem cultural no Estado.

Nessas viagens, ele acabou se tornando o primeiro a olhar com interesse histórico para as hoje reconhecidas "casas bandeiristas", construções coloniais paulistas pobres e rudimentares, de estruturas simples e feitas de taipa de pilão. "Casas velhas", era como o poeta as chamava - sem que isso fosse algum demérito, muito pelo contrário.

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sexta-feira, 9 de novembro de 2018

Sem título - Adriano Dias

Venho falando demais,
Estúpido
Ao que deveria ouvir,
Sufocado em meus ouvidos
Por minha própria voz,
Verbanalizando sempre o mesmo:
.
- o eu! ; o mundo!; as coisas!
[tudo em terceira pessoa]
.
Deveria calar um pouco
E saber da brisa e seu frio substantivo,
Do mundo e seus ruídos,
Do tudo aí, sensível,
E do vazio
Aqui
Comigo.
.
Daí entenderia:
Talvez a fração que me falta
[esse vácuo que tanto cavo],
Talvez nada demais,
Só o vento, o som, os olhos
Com seu não significar nada,

Só menos alheio a mim mesmo.
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Adriano Dias - Página 'Semema'


Mural do árabe Shahul Kollengode @shahulart

A João Guimarães Rosa - Maureen Bisilliat

Da página "Prosa, Verso e Arte"

Fotógrafa inglesa MAUREEN BISILLIAT homenageia Guimarães Rosa

A JOÃO GUIMARÃES ROSA
– Maureen Bisilliat (IMS – Séries | 24.9.2013)


Voltas no tempo ‘A João Guimarães Rosa’

Tudo começou em 1963, quando ganhei de um amigo um exemplar de 'Grande sertão: Veredas', de Guimarães Rosa – não sem a observação de que talvez não conseguisse compreender a linguagem especialíssima do autor. 
Não só compreendi como mergulhei nas águas daquele mar de palavras – o sertão não viraria mar? -, inspirada e instigada a investigar a relação direta de Rosa com os gerais de Minas Gerais. 
Assim, durante os anos 60 viajei por essas terras seguindo um roteiro sugerido pelo autor, iniciando pelas raízes – Curvelo, Cordisburgo, Andrequicé -, subindo pelo tronco da árvore, expandindo pelos galhos, até chegar em Januária, no norte de Minas. Desloquei-me para lá e, ao voltar de cada viagem, ia visitar o escritor, então chefe do Serviço de Demarcação de Fronteiras do Itamaraty. Levava, a cada encontro, um calhamaço de fotografias captadas nas terras do autor de Sagarana e, atrás de cada uma, ele anotava detalhes – nome, idade, solteiro, casado ou viúvo, lugar de encontro, como e quando etc. -, recebendo através das imagens mensagens dos gerais. 
No final de nossas reuniões, ele sempre me acompanhava até o elevador e me desejava uma boa próxima viagem, dizendo estar certo de que eu, como irlandesa, iria compreender os eflúvios poéticos dos gerais, devido à semelhança entre aquela região e a Irlanda (“Irlandesa Cigana” foi, aliás, como ele me apelidou, teria ele entrevisto alguma ancestralidade cigana nos meus cabelos longos, roupas amplas, sandálias no pé?).

Anos depois desses nossos encontros, fui visitar sua viúva, Dona Aracy, no prédio onde eles tinham morado em Copacabana, Posto 6. 
Lá, ela me levou até uma pequena sala, entre os rochedos e o mar, e contou que fora ali que Rosa escrevera seu Grande sertão. “Noite após noite”, confidenciou-me, “eu levava para ele duas ou três trocas de pijama, pois enquanto escrevia transpirava muito, banhando-se em suor. Ele me dizia que recebia a obra assoprada, sendo ele apenas receptor”.
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Andrequicé, 1966
Porta de entrada para os gerais de Guimarães, companheiro de viagem de Manuelzão – Manuel Nardi, vaqueiro-mor, personagem central de uma das novelas de 'Corpo de Baile': 

Comecei a conhecer os sertões por suas veredas. Iniciei minha busca seguindo de ônibus para Minas, parando primeiro em Cordisburgo, lugar de nascimento do autor, prosseguindo rumo ao norte e chegando em Andrequicé, povoado pequeno, pouso na rota das boiadas pelos sertões. 
Ao chegar, o sol se escondendo no horizonte, acerquei-me de um pequeno boteco e, após me apresentar como alguém em busca dos rastros de Guimarães, fui acolhida com uma boa notícia: “A moça está com sorte, pois não é que chegou agorinha mesmo o Manuelzão do Rosa, vindo direto da fazenda para uma celebração de crisma em Andrequicé!” Sim, o próprio Manuel Nardi, inspirador do conto “Manuelzão e Miguilim”, publicado em 1956, como parte do livro 'Corpo de baile': um bom augúrio para a busca planejada!

Indaguei acerca de um lugar para pernoitar e o moço do boteco me levou à casa de uma velha senhora que me recebeu com a acolhida espontânea e ampla dos que pouco têm, mas muito oferecem: ovo frito, saborosa farofa e um café mineiro, doce, perfumado e ralo, daqueles que descem como água benta apaziguando a sede!

Dormi com a candeia acesa, a esteira no chão. Acordei cedo, o sol despontando no horizonte, no friozinho da madrugada. E lá estava ele, Manuelzão, sombra esguia na parede caiada, chapéu de abas firmes, capa de feltro azul, rosto de couro curtido, olhar de águia me aguardando sem prosa, pronto para o retrato que viria a ser – para mim e para muitos – emblemático da estirpe rija dos gerais de Guimarães. 
De repente, me olhando a esmo, deparei com a figura de um homem – um vaqueiro, talvez? Pedi licença para tirar o seu retrato. Sisudo e cismado, ele não quis me atender. Satisfeita com a sorte, feliz da vida, com Manuelzão na máquina, passei o dia fotografando boiadas na poeira do campo. No fim do dia, de volta para Andrequicé, avistei a figura do homem, lá me esperando, calmo e quieto, no aguardo de seu retrato: era isso que ele queria ter. 
Acontece que de manhã, quando me viu pela primeira vez, ficou com medo. Por ser cigano achou que eu era da polícia e estava lá para prendê-lo. Era isso, então. Como os romas da França de Sarkozy, os ciganos dos gerais também são malvistos, estigmatizados como gatunos e ladrões de cavalos, vítimas de velhos preconceitos encravados na contramão da história, levando a guerras e desentendimentos entre nações.

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