quinta-feira, 11 de abril de 2013

OTTO LARA RESENDE - Vista cansada


Vista cansada
Otto Lara Resende

Acho que foi o Hemingway quem disse que olhava cada coisa à sua volta como se a visse pela última vez. 
Pela última ou pela primeira vez? Pela primeira vez foi outro escritor quem disse. 
Essa ideia de olhar pela última vez tem algo de deprimente. Olhar de despedida, de quem não crê que a vida continua, não admira que o Hemingway tenha acabado como acabou.  Fugiu enquanto pôde do desespero que o roía – e daquele tiro brutal.

Se eu morrer, morre comigo um certo modo de ver, disse o poeta. 

Um poeta é só isso: um certo modo de ver. O diabo é que, de tanto ver, a gente banaliza o olhar... vê, não vendo.

Experimente ver pela primeira vez o que você vê todo dia sem ver. Parece fácil, mas não é. 
O que nos é familiar, já não desperta curiosidade. O campo visual da nossa rotina é como um vazio. 

Você sai todo dia, por exemplo, pela mesma porta. Se alguém lhe perguntar o que é que você vê no seu caminho, você não sabe. De tanto ver, você não vê. 

Sei de um profissional que passou 32 anos a fio pelo mesmo porteiro. Dava-lhe bom-dia e, às vezes, lhe passava um recado ou uma correspondência. Um dia, o porteiro cometeu a descortesia de falecer. 
Como era ele? Sua cara, sua voz, como se vestia? Não fazia a mínima ideia. Em 32 anos, nunca o viu. Para ser notado, o porteiro teve que morrer. 
Se um dia, no seu lugar estivesse uma girafa cumprindo o rito, pode ser que ninguém desse por sua ausência. 

O hábito suja os olhos e lhes baixa a voltagem. Mas, há sempre o que ver: gente, coisas, bichos. E vemos? Não, não vemos. 

Uma criança vê o que um adulto não vê, pois tem olhos atentos e limpos para o espetáculo do mundo. 
O poeta é capaz de ver pela primeira vez o que, de tão visto, ninguém vê. 
Há pai que nunca viu o próprio filho, marido que nunca viu a própria mulher, , isso existe às pampas. Nossos olhos se gastam no dia-a-dia, opacos. 

É por aí que se instala no coração o monstro da indiferença.


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