A escritora relembra momentos marcantes de sua trajetória, como a amizade com Clarice Lispector e Hilda Hilst, a viagem à China em 1960, o encontro com Montero Lobato e a agonizante espera pela liberação de 'As meninas' pela censura
Falando de Clarice Lispector:
"Era uma grande amiga, além de excepcional escritora. Sempre me dizia: “Liginha, não sorria nas fotos. Ninguém leva a sério mulher que aparece sorrindo na fotografia!”.
Também era ótima companhia em viagens. Certa vez, em Cali, na Colômbia, abandonamos os debates para ficar no bar, bebendo champanhe (ela) e vinho tinto, enquanto ríamos gostosamente e ela pedia a minha opinião sobre quem era mais indiscreto nas suas traições, o homem ou a mulher.
Aliás, na viagem de ida, quando o avião balançava muito e eu estava preocupada, Clarice se voltou para mim e disse: “Não tenha medo porque o avião não vai cair. Minha cartomante disse que eu morreria deitada, portanto, fique tranquila”. Esse misticismo era contagiante.
Certa noite, quando eu dormia em um hotel da cidade de Marília, onde participava de um seminário, fui acordada por uma andorinha desgarrada, que entrou voando no meu quarto. Levei um susto, mas logo estranhei a forma como o animal me encarava, muito amigável. Logo, consegui que o pássaro saísse pela janela. No dia seguinte, fui informada que Clarice morrera naquela noite. Só consegui dizer, baixinho: “Eu já sabia”."
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Hilda Hilst
"Verão de 1952.
Eu já estava casada com Goffredo quando a Hilda foi nos visitar no Rio. Ficou hospedada no Hotel Olinda, em Copacabana.
Ela usava um maiô claro de tecido acetinado, inteiriço, na moda, os discretos maiôs inteiriços. Lembro que tinha no pescoço um longo colar de conchinhas.
Falou-me dos novos planos, tantos. Estava amando e escrevendo muito, quando ela se apaixonava a gente já sabia que logo viria um novo livro celebrando o amor. Nesse sábado, tínhamos marcado no nosso apartamento um encontro com alguns amigos, Carlos Drummond de Andrade, Cyro dos Anjos, Breno Accioly, José Condé…
Hilda Hilst chegou toda de preto, os cabelos dourados soltos até os ombros. Falou em Santa Teresa d’Ávila, a do “amor duro e inflexível como o inferno”.
Pedi-lhe que dissesse o seu poema mais recente.
Então, eu me lembro, Cyro dos Anjos cumprimentou-a com entusiasmo e começou a examinar a pequena palma da mão que ela lhe estendeu, ele sabia ler o destino nas linhas da mão."
Hilda e Lygia |
Paulo Emílio Salles Gomes
"Meu segundo marido era um homem encantador, inteligente, vibrante, irônico. Ele me apelidou de Cuco, brincadeira com o relógio de uma velha tia cujo cuco sempre cantava as horas com atraso – eu sempre me atrasava para nossos compromissos.
Também apelidou meu filho Goffredinho de Cré, pois, nas aulas de francês, quando o garoto errava feio, Paulo disparava: ‘Crétain!” (cretino).
Paulo sempre foi um grande incentivador da minha obra, especialmente nos momentos mais difíceis. Como em 1973, quando publiquei As Meninas.
Era época pesada da ditadura militar e eu me inspirei, entre outras coisas, num panfleto que detalhava a violência física sofrida por um preso político. Coloquei isso no meio da trama e fiquei apreensiva quando o livro foi enviado para a censura.
Enquanto aguardava, nervosa, o veredicto, fui surpreendida pela chegada, alegre, de Paulo, em nosso apartamento. Ele trazia uma garrafa de vinho e estava muito disposto a comemorar. Logo explicou: aborrecido com uma história em que não acontecia nada, o censor só lera algumas páginas, não chegara àquele ponto da tortura e liberava a obra."
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Monteiro Lobato
"No longo corredor que me pareceu sombrio, o carcereiro avisou que a visita teria que ser breve, mesmo porque já tinha um visitante lá dentro.
Entrei na saleta fria. Uma mesa tosca, algumas cadeiras de palhinha. Em torno da mesa, Monteiro Lobato de sobretudo preto, um longo cachecol de tricô enrolado no pescoço. Sentado ao lado, o visitante de terno e gravata, calvo, os olhos azuis.
Monteiro Lobato levantou-se abotoando o sobretudo e veio ao meu encontro com um largo sorriso.
Era mais franzino e mais baixo do que eu imaginava. Tinha os cabelos grisalhos bem penteados e o tom da pele era de uma palidez meio esverdeada, mas os olhos brilhavam joviais sob as grossas sobrancelhas negras.
Ofereceu-me a cadeira que estava entre ambos. “Este aqui é um caro editor”, apresentou-o e disse o nome do editor que não guardei. Sem saber o que dizer, fui logo enumerando os seus livros que já tinha lido e que ocupavam uma prateleira da minha estante, “ah! as paixões da minha adolescência”: Narizinho Arrebitado, Tia Nastácia, o Jeca Tatu, as memórias daquela boneca de pano, a Emília, o Saci-pererê…
Ele me interrompeu com um gesto afetuoso, eu sabia que era avesso às homenagens e assim entendi a razão pela qual desviou a conversa, afinal seus personagens não eram culpados pela sua prisão, mas sim as cartas que andou escrevendo, ou melhor, as denúncias que andou fazendo através dessas cartas porque livros os governantes não liam mesmo. Deviam ler, mas não liam e daí a ideia das cartas curtas e diretas.
“Estou aqui no meio de bandidos, tinha que me calar ao invés de avisar que o petróleo é nosso. A mocinha já entendeu, hein? Sei que é estudante, mas o que está estudando?”
Quando contei que estava na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, ele abriu os braços num gesto radiante: “Pois foi lá que eu me formei!”. Só que na nossa turma não tinha meninas, só marmanjos. “Ah! Se tivesse aqui um vinho a gente poderia brindar estes doutores! Quer dizer que a mocinha vai advogar?”
Comecei gaguejando, bem, era difícil explicar, eu era uma estudante pobre, queria me formar para ter um diploma e assim anunciar um bom emprego.
Na realidade queria ser escritora, escrever contos, romances…
Monteiro Lobato voltou-se para o editor e tocou-lhe no ombro. “Olha aí, a mocinha é vidente! Já está sabendo que escrever neste país não dá dinheiro, escritor morre pobre e ignorado. Então ela é uma vidente!”, disse e tirou do bolso do sobretudo um pequeno bloco e uma caneta. “Vamos, deixe o seu nome e endereço, o meu amigo aqui vai lhe enviar algumas reedições dos meus livros, vamos, diga logo antes que o carcereiro apareça.”
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Fonte: Ubiratan Brasil - Jornal "O Estado de S.Paulo"
Parada obrigatória para o meu deleite!
ResponderExcluirAdorei "Conversa com LYGIA"!
Tudo aqui é de muito bom gosto.
Beijos e ótima noite, amiga!