quarta-feira, 28 de agosto de 2013

MARLA DE QUEIROZ - Quando há feto

Quando há feto
Marla de Queiroz

Uma ventania no meu corpo ventre, 
afeto se exacerba se há feto após semente. 
Mudo o meu semblante, pele, poros, valores, planos. 
Será, talvez, o único amor onde não caibam desenganos.

Todas as minhas formas vão se amoldando. 
Há além de um EU, um ser tão MEU, 
que sendo em si dentro de mim, é também Mundo. 

Uma ventania no meu corpo ventre mudou todos os meus rumos. 
Como te dizer, se ainda desconheço a tua face, deste amor que já é tão profundo? 

(Flor que desabrocha, pétala por pétala. Tantas no jardim, mas só me atento a esta).

Eu te gestei por meses, guardando como MEU. 
Mas quando vi teu rosto, quem nasceu fui EU.

*            *            *

terça-feira, 27 de agosto de 2013

Uma crônica - Diogo Marins Locci

O instante, a chama e o gato 
Diogo Marins Locci


A vela consome o ar aos poucos. O ar dá-se à vela sem oposição. 
A fumaça é o beijo que se consome pelo tempo, fazendo com que suas sobras sejam cheiros e pavio. 
A chama é dela mesma. Ela domina, mas não se impõe a nada. O que vem pra chama, vem por que quer. 
A chama se espalha no que pode.

Os gatos lambem o que querem. As línguas ásperas se apetecem do que podem.
O bigode do gato indica: há chama. 
A chama não pede pelo bigode do gato. 
O gato se aproxima da chama que não o convida e a chama não se convida pra sair. 
É neste momento que se pode dizer que o instante existe. 
Ele é a intromissão do gato na vida da chama. É o bigode dilacerado pelo fogo. 
O gato tem os bigodes devorados pela vela, que é imperdoável. 
Um mio de desprazer põe à prova o instante. 
Agora o gato sabe que de todos os instantes, não são todos que devem ser causados.

A chama não sabe de nada. Para ela, o instante é a existência toda. 
Até a última parte do pavio. Até o fim do farfalhar esfumaçante. Uma boêmia. Caçadora de alegria e excitação. 

O gato ainda terá seus instantes. Fecha os olhos e os bigodinhos queimados roçam a cama. 
Os sonhos dos gatos são misteriosos. Os sustos os acordam demais e nunca se pode saber o que havia nas mentes deles. 

A chama se esvai. Acalora um espaço e faz dele outro instante. 
O instante do gato é frio, mas é aprendizado. 
Novos instantes virão. 
Mas dessa vez, bem longe das chamas.

*            *            *

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

O Pianista [trecho do filme] - filme de Roman Polanski


Post reeditado por ter 'desaparecido' o vídeo. 

Assisti a esse filme várias vezes e sempre me emociona muito esta cena.
Em um esconderijo nos guetos de Varsóvia, na Polônia devastada pela 2ª Guerra, um pianista toca para um oficial alemão tentando proteger-se e viver para voltar à sua arte.


ANTONIO SKÁRMETA - 'O carteiro e o poeta'

Sinos em Isla Negra
O Carteiro e o Poeta
Antonio Skármeta

"Quero que você vá com este gravador passeando pela Ilha Negra e grave todos os sons e ruídos que vá encontrando. 
Preciso desesperadamente de algo, nem que seja o fantasma da minha casa. A minha saúde não anda nada bem. 
Sinto falta do mar. Sinto falta dos pássaros. Mande para mim os sons da minha casa. 
Entre no jardim e faça soar os sinos. 
Primeiro grave esse repicar suave dos sininhos pequenos quando o vento bate neles, e depois puxe o cordão do sino maior, cinco, seis vezes. Sinos, meus sinos! 
Não há nada que soe tão bem como a palavra sino se a penduramos num campanário junto ao mar. 
E depois vá até as pedras e grave a arrebentação das ondas. 
E se ouvir gaivotas, grave. 
E se ouvir o silêncio das estrelas siderais, grave. 

Paris é muito bonita, mas é uma roupa que fica muito grande para mim. 
Além do mais, aqui é inverno e o vento revolve a neve como um moinho a farinha. 
A neve sobe, sobe, trepa pela minha pele. Ela me faz um triste rei com sua túnica branca. Já está chegando à minha boca, já tapa meus lábios, já não me saem as palavras".
(p. 83-84)


*              *               *

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

HILDA HILST - Aquele fino traço de colina...


Aquele fino traço de colina
quero trancar na cancela
da alma. Alimento e medida
para as muitas vidas do depois.

Curva de um devaneio inantigido,
um todo estendido adolescente.
Aquele fino traço da colina
há de viver na paisagem da mente
como a distância habita em certos pássaros
como o poeta habita nas ardências.

*            *            *

Hilda Hilst em 'Poesia reunida', p.37

Jovens, ternos e sábios anciãos - Enildes Corrêa

Jovens, ternos e sábios anciãos
Enildes Corrêa - "Somos todos um", 18-8-2013

Parece que esta sociedade não permite o envelhecimento natural de sua gente. Até o artista que envelhece é discriminado, muitas vezes, deixado de lado, como se envelhecer fosse um grave defeito e fizesse diminuir a inteligência e a criatividade dos indivíduos. E ao descobrir a sabedoria e os talentos que o passar dos anos pode dar e revelar, considero um tremendo desperdício e, por que não dizer, um ato de ignorância que o mundo ocidental comete ao desprezar e deixar de lado os mais velhos. 

Reconheço e valorizo os anciãos. Tenho a abertura, a disposição e a sede de ouvi-los atentamente, pois é uma das formas de adquirir entendimento da vida. Admiro e sinto um carinho especial pelos que souberam viver com sabedoria e relaxamento. E mesmo os que envelheceram carregando as tensões e o peso do tempo passado nas costas, também servem de exemplo se procurarmos compreender o que os impediu de viver com tranquilidade e harmonia. 

Constatei certas características comuns entre as pessoas que conseguiram relaxar, mesmo com todos os problemas que tiveram de enfrentar e lidar.

Aceitam e amam a vida. Mantêm uma confiança inabalável na Existência e em si mesmas. Conservam-se lúcidas mentalmente e muito joviais. Enxergam a realidade como ela é, porém não reclamam, mesmo se sofrem. Apreciam compartilhar sua sabedoria e sua amizade. Adotam a postura de estudante, sempre abertas para aprender, mesmo aos 80 anos ou mais. Evitam julgar os outros. Aprenderam a ouvir e a respeitar a voz do coração. Irradiam paz, tranquilidade e contentamento, o que nos faz sentir um grande bem estar ao lado delas. Vivem de forma simples e comum. Não carregam nenhum desejo de ser diferentes de quem são nem tampouco de serem extraordinárias. Aprenderam a se aceitar do jeito que são; ficaram à vontade com o próprio corpo e com seu ser. Deixaram de brigar consigo mesmas e com a vida - simplesmente são o que são e fluem nisso. E mantêm sempre o bom humor.

É uma pena que no Ocidente, atualmente, os jovens não são ensinados de forma efetiva a respeitarem e a valorizar os mais velhos e a sua orientação. Quantas experiências muitos deles gostariam de partilhar... Mas, sem interesse em ouvi-los, oportunidades de aprendizado são desprezadas e, literalmente, jogadas fora. Lições sobre a arte de viver, que poderiam ajudar a muitos a lidarem melhor com os problemas, sem tanto estresse, desespero, sem tanta loucura...

Agradeço a oportunidade de ter convivido com algumas pessoas que envelheceram em paz, com harmonia e sabedoria, sem nostalgia em relação ao passado nem ansiedade quanto ao futuro, engajadas no presente, em estado de contentamento interior. O passar do tempo foi uma ponte para cruzarem as fronteiras que vão além do corpo, além da mente, o que lhes deu coragem para abrir as asas e voar com total confiança em direção ao infinito.


Namastê!

*            *            *

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

LEANDRO ANDRADE - poemas rápidos

Da página 'Obvious'

− Eu chovendo… 
Você toda sol… 
Entre nós, o arco-íris!  



**

Quando eu nasci veio um anjo me dizer: 
- Vai, guri, ser quase na vida... 
E eu achei bacana e fui... 
pois quasar é quase estrela ... 
o que pouca coisa não é! 

*            *            *
 (Leandro Andrade – ‘Obvious’)

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

SEMPRE CLARICE

Franz_Eybl,_Lesendes_Mädchen.jpg
"Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com seu amante."
Clarice Lispector no conto 'Felicidade Clandestina'

A Impopularidade de Clarice Lispector
 Victor Silveira em 13 de jan de 2012 - página 'Obvious'


Talvez dissesse: Façam eles o que querem de minhas palavras, pouco me importa se as enfiam em suas mochilas ou bolsos rasgados, se as mastigam ou engolem.



Quanto mais popular tem se tornado Clarice Lispector, antagonicamente tem se feito impopular.

É com esta postura critica que tenho visto a proliferação desmedida de pequenos fragmentos de sua obra, partes amputadas de suas crônicas e romances e contos, disseminados por redes sociais e afins.

A autora tem recebido por seus pseudo-discípulos o titulo de “conselheira amorosa”. Existe até um aplicativo, desses de frases automáticas do faceboock com o nome “Conselhos de Clarice Lispector”. Não vejo essa crítica com uma ótica exclusivamente negativista, penso ser um meio de refletirmos até que ponto nos acomodamos com a superfície, nesta sociedade onde a tecnologia cada dia mais acessível a todos, com suas infinitas possibilidades de informação e cultura, que entretanto se apresenta em segmentos superficiais.

Fico a imaginar qual seria a postura de Clarice se estivesse viva. Frente a tal fenômeno que pode ser considerado como social, o que diria? Talvez dissesse: Façam eles o que querem de minhas palavras, pouco me importa se as enfiam em suas mochilas ou bolsos rasgados, se as mastigam ou engolem.
E pensar nessa resposta fictícia da autora me fez refletir sobre o papel, que a mesma tem assumido na atual sociedade, que pode ser visto como de resignação, retrocesso, e dissimulação por parte de seus “leitores”.

A obra de arte é circuncidada por aquilo que se vê da própria obra, sempre e cada vez, como se fosse à primeira vez em que foi vista. Essa eterna ressignificação, de atravessamento da singularidade daquele que experimenta a arte, seja ela na literatura, fotografia, pintura, teatro, música, ou qual for a modalidade em foco, será sempre o retorno de demandas internas do espectador.

Tal fato, nos faz anuir que, a significação literária se coloca por uma ética do desejo, de quem a produz e experimenta. O tão profundo e o tão raso.
São escolhas, que se apresentam marcadas pelo pragmatismo do séc. XXI.

Clarice deixa uma obra que revolucionou a literatura brasileira, e que, ao eleger o Mal como um de seus temas recorrentes, expressa o caráter demoníaco da linguagem.

Ela amplia a produção literária de vanguarda, que era até então marcado por um ortodoxismo modernista.
E ao assumir o risco pessoal de sua escrita, a configura com um padrão fatalista, mas rompido com o trágico, que emerge com dois contrapontos: O tédio e a auto-agressividade.
Mas por outro lado esse campo de luta da escritora é também vivenciado por um terno sentimento de compaixão com a condição existencial, sempre culpada de si mesmo.

“ O pudesse eu um dia escrever uma espécie de tratado sobre a culpa. Como descrevê-la? Aquela que é irremissível, a que não se pode corrigir? (...) A culpa em mim é algo tão vasto e tão enraizado que o melhor ainda é aprender a viver com ela” 


A autora inaugura no Brasil um estilismo literário único, sendo aclamada e atacada pela crítica, por sua impulsividade corrosiva como peculiaridade central de sua escrita, tendo como campo de abordagem a alma humana e suas paixões.


Desse modo, como conclui Yudith, crítico literário da autora, “Torna-se inevitável pensarmos esse modelo de sedução e destruição como o protótipo da poética de Clarice, que envolve o leitor, qual marinheiro encantado pela sereia, para em seguida engolir suas convicções e afogá-lo nas águas de um escrita letal. A escrita Clariceana é ela mesma testemunho de um salto sobre fragmentos de uma intensa explosão psíquica criativa.“


Segundo Lucio Cardo, amigo de Clarice, em seu Diário Completo, em uma das poucas alusões que faz a autora, diz: “é um longo, exaustivo e minucioso arrolamento de sensações.” 

Sua escrita é a consumação de incêndio, cujas chamas são a constância de suspiros íntimos e derradeiros. Talvez seja essa uma boa metáfora para se construir uma moldura de seu retrato.

Tendo sua obra inteiramente influência por um traço biografia que é tingido por pessoalidade/personalidade ímpar, que não só estrutura como ainda a diferenciava das demais.

Esse engendramento de ficção e vida, é experimentado por ela em uma constante desconstrução literária cuja  fusão de papeis que trocam-se entre si sem regras, e se fundem a gerar cópias de si mesmo, sem se permitir uma distinção racional.
Assim se dá sua transmigração textual.

Para Rosenbaum outro crítico, “A ficção que se arma nesse jogo de vozes desmonta as incertezas factuais, imprimindo ao texto um caráter inacabado, aberto, questionando a verdade única da experiência narrada.”


Já para Sergio Millet, a relação de Clarice com as palavras se faz de não domínio, "não as domina mais, então; elas é que tomam conta dela."

O que nos faz entender sua intensa postura de desdobramento subversivo. Que possibilita pensarmos um efeito de embriaguez artística na autora.

Poderia continuar a pensar, e conectar informações que justificariam minha crítica do mal estar de uma popularidade leiga, que impossibilita o mergulho, o aprofundar, que na literatura assume um caráter incrível, de quem se dispõe por uma perspectiva crítica, ultrapassar um consumo pragmático literário.


E são tantas as histórias que um mesmo romance, conto, ou crônica pode contar de nós mesmos.

Por isso reconheçamos os infinitos potenciais da arte literária e não nos conformemos com menos do que o longo mergulho ao infinito.

Abaixo deixo um trecho de uma crônica de Clarice, A descoberta do mundo, onde a narrativa se desenrola nesse entrelaço de experiências reais e ficcionais da autora.


“(...) fui preparada para ser dada à luz de um modo tão bonito. Minha mãe já estava doente, e, por uma superstição bastante espalhada, acreditava-se que ter um filho curava uma mulher de uma doença. Então fui deliberadamente criada: com amor e esperança. Só que não curei minha mãe. E sinto até hoje essa carga de culpa: fizeram-me para uma missão determinada e eu falhei. Como se contassem comigo nas trincheiras de uma guerra e eu tivesse desertado. Sei que meus pais me perdoaram eu ter nascido em vão e tê-los traído na grande esperança. Mas eu, eu não me perdoo.”





Sua última entrevista para a TV Cultura (youtube) me fez acordar para Clarice Lispector.
Sua depressão exalada no olhar, a fadiga das palavras, e pelos minutos que se seguem ao seu discurso, em alguns momentos, sádico, me levou a desejar o mergulho em sua vida e obra. Que tem me embriagado e feito avançar, e trazido a convicção de um infinito de águas a minha frente.


*            *            *

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

MINITEXTOS - Leonardo Sakamoto

Pequenos contos para um domingo qualquer  
Leonardo Sakamoto (*)

Posto no Facebook míseros contos e crônicas sobre o cotidiano. 
A ideia inicial era a alegrar amigos, garantindo que a caixa postal do e-mail deles tivesse uma história ao nascer do dia. 
Apenas por diversão, fui publicando os contos na rede, arregimentando meia dúzia de leitores que, caridosamente, sugeriram uma publicação em papel. 
Cometi o crime, então, de lançar “Pequenos Contos para Começar o Dia”, pela Expressão Popular. Os contos, abaixo, são de panelada nova e não estão no livro.
Leonardo Sakamoto


***
Ela gastava horas passando uma camisa, tão branca quanto os fios de sua cabeça – como se os anos tivessem deixado o tecido eternamente amarrotado. 
Após cuidar para que cada cantinho estivesse impecável, pendurava-a perto da janela e a brisa da madrugada trazia a roupa à vida. 
Dormia sentada de tanto observar, provavelmente saudosa da época em que, dentro da camisa, havia alguém. 
Quando faltava inspiração, eu pegava um café e a espiava do meu apartamento. Mas por semanas sua janela permaneceu fechada. 
Dia desses, uma moça muito bonita assumiu o lugar da velha senhora na tarefa de passar o mundo. Horas depois, duas camisas brancas, de homem e de mulher, se enroscavam, dançando juntas ao vento.
Pareciam felizes.

***
Cruzou madrugadas em claro, flutuando no sofá da sala, até decidir que ficaria lá para sempre. Quem sabe, um dia, ela se lembraria de que fizera alguém chorar um oceano? Por isso, quando as primeiras ondas de luz da primavera molharam o chão, resistiu, agarrando-se às almofadas e, nelas, à pena que sentia de si mesmo. O sol não se fez de rogado e, em fúria, o arrancou de casa. Então, na fila da padaria, conheceu Camila. Sorriu para si mesmo. E lembrou das palavras do avô, velho pescador de histórias: O mar tira. Mas o mar devolve.

***

Olhou para o lado e, de repente, sentiu-se só.
Rapidamente, tentou desfazer o nó que enrola a garganta dos que têm pena de si mesmos. 
Primeiro num silêncio que, tão fundo, foi ouvido no céu. Depois, gritando tanto que despertou a terra. Enfim, abraçou a si mesmo por tanto tempo que se lembrou de algo que fizeram-no esquecer: ele era excelente companhia.

***
Num passe de mágica, o carro dos garotos bêbados saiu de dentro do seu, devolvendo-o imediatamente à vida. 
Assim, voltou a cantarolar sua música preferida que, coincidentemente, tinha começado a tocar no rádio no momento em que deixara a casa de sua namorada – onde um pedido de casamento provocou lágrimas e dois corpos feitos um iluminaram a noite. 
Depois, algumas horas mais cedo, retornou à joalheria, onde um punhado de esperança na forma de um solitário foi financiado graças ao aumento que recebera no trabalho no final da tarde. 
Do escritório, voltou para casa a fim de tomar o café da manhã, ler o jornal e receber a notícia de que, depois de duas tentativas, havia passado no mestrado. 
Então, ainda com sono, caiu em sua cama e fechou os olhos. 
Sonhara naquela noite com uma vida longa, filhos correndo atrás de um labrador caramelo e um rosário de sucessos, mas também de fracassos, como a vida deve ser. 

Mas o maldito despertador tocou – ele sempre tem que tocar – fazendo com que o tempo voltasse a correr para frente, atropelando qualquer truque de mágica e mostrando que felicidade é algo frágil, difícil de segurar.

***
No Dia dos Pais – 11 de agosto de 2013 

Ainda escuro, ouvia meu pai estrilar os sininhos da bicicleta pela estrada de terra. 
Quando clareava, ele retornava, aninhando-se junto à lenha do fogão para comer pão de milho. Perguntei o que fazia tão cedo. “Acordar o sol”, maldizia entre os dentes. 
Foi então que, numa madrugada, ouviu-se apenas o silêncio. Papai, cansado, decidiu dormir para sempre. 
Ficamos sete dias no breu até que vovó, entregando a bicicleta, me deu o ofício da família - acordar o sol. Minha mãe diz que é maldição.
Eu não. Gosto do sininho."

*
Ele sabia ler a chuva. E escrevia pela enxada. 
Sua tristeza eram as mãos, feridas pela necessidade. 
Por nunca ter segurado um lápis, fez o impossível para seu menino. 
Na hora da foto de formatura, plantou fundo as mãos nos bolsos da calça surrada, com medo de envergonhar o filho doutor. 
Com carinho, o rapaz as colheu, abriu feito palma de flor e desferiu longo beijo.
Desde então, Emanuel sorri quando olha para elas.
*

*            *            *
(*) Leonardo Sakamoto é jornalista e Doutor em Ciências Políticas.
Blog do Sakamoto - UOL

domingo, 11 de agosto de 2013

PAIS ESCRITORES... filhos também

FELIZ DIA DOS PAIS!


Neste Dia dos Pais, homenagem singela. 
Alguns escritores brasileiros cujo filho - ou filha - seguiram seus passos e se tornaram também escritores.


Carlos Drummond de Andrade e sua filha Maria Julieta (escritora)

Érico Veríssimo e seus filhos Luís Fernando (escritor) e Clarissa

Graciliano Ramos e seus filhos Ricardo (escritor) e Maria Clara

João Guimarães Rosa e sua filha Vilma (escritora)


*            *            *

terça-feira, 6 de agosto de 2013

CHICO BUARQUE - "Gota D'Água"

Da página 'Obvious - Facebook
"Pode ser a Gota D'Água"


  Gota 5.jpg
“Eu transfiro pra vocês a nossa agonia porque, meu Pai, eu compreendi que o sofrimento de conviver com a tragédia todo dia é pior que a morte por envenenamento”

A tragédia está anunciada.

A tragédia é uma morte anunciada pelo vento.

A fome e a miséria, tragédias infelizes do cotidiano. As trocas desiguais e a ausência de renda, uma anunciação do fim. 
É assim que a vida de Joana e de seus dois filhos têm fim na peça do paraibano Paulo Ponte em parceria com Chico Buarque, escrita e encenada em 1975, pela grande Bibi Ferreira.

Entre a dureza da vida, que como um rolo compressor vai desfazendo os sonhos da sociedade e as tentativas de viver um mundo melhor, Joana nos avisa: “qualquer desatenção, faça não. Pode ser a gota d’ água”, e assim ela traça, com arame, sangue e veneno, um destino cruel, mas que só não é mais dilacerante do que a triste sina de viver as microtragédias diárias dessa terra de ninguém chamada Brasil.

Os atos de desencantamento pelo mundo e o entristecimento de perceber que nem o amor, por mais puro que seja, sobrevive quando a desgraça bate à sua porta, fazem Joana repensar a sua estadia no mundo. 
É assim que, com delicadeza de quem parece ser uma mulher, Chico Buarque nos expõe a fragilidade da troca e da traição perpetradas por Jasão, esposo de Joana na dolorosa “Gota d’água”.

Não há do que se refazer quando se nasce com o compromisso de morrer. A frase pode ser dura, mas é nesse cenário, real e fatídico que muitas senhoras, mães de família, “sobre vivem” em nosso país. Joana é um exemplo teatral de uma realidade que convence pelo nível de sinceridade e aproximação. Que mulher é essa que tem que se perder para se encontrar? Que tem que se descobrir para se desencobrir?

Quando pensamos em Joana, também pensamos em “Angélica”, mãe do Stuart, que “mora na escuridão do mar”. 
Preso e torturado pela ditadura, teve seu corpo lançado ao mar, como em desova. Pensamos no pedaço de cada uma de nós, quando ela nos fala “que a saudade é o revés de um parto. A saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu”.

Ser mulher nessa sociedade é saber “perder” o tempo inteiro. 
Perde-se um filho, perde-se a dignidade na violência, perde-se o respeito na passada de mão dentro do ônibus. É sempre perder. Perder a jovialidade. Perder o próprio nome, quando nos tornamos “mãe de alguém”. Perder sangue todo mês. As vezes, perder de gozar. Perde-se o encanto pela vida quando a vida não mais encanta.

Mais do que ninguém, Chico, enquanto poeta e, por isso, mulher, nos fala tão alto sobre nossa natureza e nossos caminhos de pedra. 
Ele sabe e entende o trajeto da perda: ser mulher o tempo inteiro, na multidão, nos compromissos, nas torturas do dia a dia, na ausência e na saudade é delirar de dor intermitentemente.


*            *            *

sábado, 3 de agosto de 2013

MERCEDES SOSA - Cancion de las simples cosas



Cancion de las simples cosas
Tejada Gómez y Cesar Isella 

Uno se despide insensiblemente de pequeñas cosas,
Lo mismo que un árbol en tiempos de otoño se quedan sin hojas.
Al fin la tristeza es la muerte lenta de las simples cosas,
Esas cosas simples que quedan doliendo en el corazón.

Uno vuelve siempre a los viejos sitios en que amó la vida,
Y entonces comprende como están de ausentes las cosas queridas.
Por eso muchacho no partas ahora soñando el regreso,
Que el amor es simple, y a las cosas simples las devora el tiempo.

Demorate aquí, en la luz mayor de este mediodía,
Donde encontrarás con el pan al sol la mesa tendida.

Por eso muchacho no partas ahora soñando el regreso,
Que el amor es simple, y a las cosas simples las devora el tiempo.

*               *               *