domingo, 29 de setembro de 2013

SOPHIA DE MELLO BREYNER-ANDRESEN - Um dia

Postagem da página "A louca da biblioteca" - facebook



Um dia
Sophia de Mello Breyner

Um dia, gastos, voltaremos
A viver livres como os animais
E mesmo tão cansados floriremos
Irmãos vivos do mar e dos pinhais.

O vento levará os mil cansaços
Dos gestos agitados irreais
E há-de voltar aos nossos membros lassos
A leve rapidez dos animais.

Só então poderemos caminhar
Através do mistério que se embala
No verde dos pinhais na voz do mar
E em nós germinará a sua fala.

*            *            *

sábado, 28 de setembro de 2013

FLORBELA ESPANCA - DESEJOS VÃOS - Marcos Assunção - Programa Sr. Brasil



Desejos Vãos
Florbela Espanca
Musicado por Marcos Assunção



Eu queria ser o Mar de altivo porte
Que ri e canta, a vastidão imensa!
Eu queria ser a Pedra que não pensa,
A pedra do caminho, rude e forte!

Eu queria ser o Sol, a luz intensa,
O bem do que é humilde e não tem sorte!
Eu queria ser a árvore tosca e densa
Que ri do mundo vão e até da morte!

Mas o Mar também chora de tristeza…
As árvores também, como quem reza,
Abrem, aos Céus, os braços, como um crente!

E o Sol altivo e forte, ao fim de um dia,
Tem lágrimas de sangue na agonia!
E as Pedras… essas… pisa-as toda a gente!…

*            *            *

In:  "Livro de Mágoas"

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Da Telma

Post da página facebook -  A louca da biblioteca

Foto: ANTEONTEM PELA MANHÃ, céu acinzentando-se para receber a chuva da tarde, aconteceu um fato poético que - Ave! - fui capaz de ver a tempo. Uma pequena pétala que voa*, asas marrons e brancas, pousou no meu braço, quase à altura do ombro. Pousou e ficou o tal instante exato para cristalizar o presente.
E senti-me, súbito, um ser eleito, digno de experiências além do limite da realidade - conversar com anjos, sobrevoar o tempo nas costas de um dragão,...
Tá bom, sei, grande coisa, não foi nada demais. Mas permita-me, Deus, experimentar uma gota de envaidecimento. Perdoe-me pelo meu orgulho ao olhar minhas mãos limpas de sangue e por ainda me descobrir capaz de encantar-me com essa alegria boba que estremeceu meu coração jurássico. Uma borboletinha silvestre fez-me um carinho inesperado e pincelou meu dia de sonho. (TEL MONT)

* referência a Clarice Lispector

ANTEONTEM PELA MANHÃ, céu acinzentando-se para receber a chuva da tarde, aconteceu um fato poético que - Ave! - fui capaz de ver a tempo.

Uma pequena pétala que voa*, asas marrons e brancas, pousou no meu braço, quase à altura do ombro. Pousou e ficou o tal instante exato para cristalizar o presente.

E senti-me, súbito, um ser eleito, digno de experiências além do limite da realidade - conversar com anjos, sobrevoar o tempo nas costas de um dragão,...

Tá bom, sei, grande coisa, não foi nada demais. Mas permita-me, Deus, experimentar uma gota de envaidecimento. Perdoe-me pelo meu orgulho ao olhar minhas mãos limpas de sangue e por ainda me descobrir capaz de encantar-me com essa alegria boba que estremeceu meu coração jurássico. 
Uma borboletinha silvestre fez-me um carinho inesperado e pincelou meu dia de sonho. 
(TEL MONT)

* referência a Clarice Lispector


*            *            *

CLARICE LISPECTOR - O mundo das águas


O mundo das águas 
Clarice Lispector

Aí está ele, o mar, o mais ininteligível das existências não humanas. E aqui está a mulher, de pé na praia, o mais ininteligível dos seres vivos. Como o ser humano fez um dia uma pergunta sobre si mesmo, tornou-se o mais ininteligível dos seres vivos. Ela e o mar.

Só poderia haver um encontro de seus mistérios se um se entregasse ao outro: a entrega de dois mundos incognoscíveis feita com a confiança com que se entregariam duas compreensões.

Ela olha o mar, é o que se pode fazer. Ele só lhe é delimitado pela linha do horizonte, isto é, pela sua incapacidade humana de ver a curvatura da terra.

São seis horas da manhã. Só um cão livre hesita na praia, um cão negro. Por que é que um cão é tão livre? Porque ele é o mistério vivo que não se indaga.

A mulher hesita porque vai entrar. Seu corpo se consola com sua própria exiguidade em relação a vastidão do mar porque é a exiguidade do corpo que o permite manter-se quente e é essa exiguidade que a torna livre gente, com sua parte de liberdade de cão nas areias. Esse corpo entrará no ilimitado frio que sem raiva ruge no silêncio das seis horas. A mulher não está sabendo: mas está cumprindo uma coragem.

Com a praia vazia nessa hora da manhã, ela não tem o exemplo de outros humanos que transformam a entrada no amor em simples jogo leviano de viver. 
Ela está sozinha. O mar salgado não é sozinho porque é salgado e grande, e isso é uma realização. 
Nessa hora ela se conhece menos ainda do que conhece o mar. Sua coragem é a de , não se conhecendo, no entanto prosseguir. É fatal não se conhecer, e não se conhecer exige coragem.
Vai entrando. A água salgada é de um frio que lhe arrepia em ritual as pernas. 
Mas uma alegria fatal – a alegria é uma fatalidade – já a tomou, embora nem lhe ocorrera sorrir. Pelo contrário, está muito séria. 
O cheiro é de uma maresia tonteante que a desperta de seus mais adormecidos sonos seculares. E agora ela está alerta, mesmo sem pensar, como um caçador está alerta, mesmo sem pensar.

A mulher é agora uma compacta e uma leve e uma aguda- e abre caminho na gelidez que, líquida, se opõe a ela, e no entanto a deixa entrar, como no amor em que a oposição pode ser um pedido.

O caminho lento aumenta a coragem secreta. E de repente ela se deixa cobrir pela primeira onda. O sal, o iodo, tudo líquido, deixam-na por uns instantes cega, toda escorrendo- espantada de pé, fertilizada.

Agora o frio se transformou em frígido. Avançando, ela sobre o mar pelo meio. Já não precisa da coragem, agora já é antiga no ritual. Abaixa a cabeça dentro do brilho do mar e retira uma cabeleira que sai escorrendo toda sobre os olhos salgados que ardem. Brinca com a mão na água, pausada, os cabelos ao sol quase imediatamente já estão endurecendo de sal.

Com a concha das mãos faz o que sempre fez no mar, e com altivez dos que nunca darão explicação nem a eles mesmos: com a concha das mãos cheia de água, bebe em goles grandes, bons.
E era isso o que estava lhe faltando: o mar por dentro como o líquido espesso de um homem.

Agora está toda igual a si mesma. A garganta alimentada se constringe com o sal, os olhos avermelham-se pelo sal secado pelo sol, as ondas suaves lhe batem e voltam pois ela é um anteparo compacto.

Mergulha de novo, de novo bebe mais água, agora sem sofreguidão pois não precisa mais. 
Ela é a amante que sabe que terá tudo de novo.

O sol se abre mais e arrepia-a ao secá-la, ela mergulha de novo: está cada vez menos sôfrega e menos aguda. Agora sabe o que quer. Quer ficar de pé parada no mar. Assim fica pois. 
Como contra os costados de um navio, a água bate, volta, bate.

A mulher não recebe transmissões. Não precisa de comunicação.

Depois caminha dentro da água de volta à praia. Não está caminhando sobre as águas- ah, nunca faria isso depois que há milênios já andaram sobre as águas- mas ninguém lhe tira isso: caminhar dentro das águas. 
Às vezes o mar lhe impõe resistência puxando-a com força para trás, mas então a proa da mulher avança um pouco mais dura e áspera.

E agora pisa na areia. 
Sabe que está brilhando de água , e sal e sol. Mesmo que o esqueça daqui a uns minutos, nunca poderá perder tudo isso. 
E sabe de algum modo obscuro que seus cabelos escorridos são de náufrago. Porque sabe – sabe que fez um perigo. 
Um perigo tão antigo quanto o ser humano.

*            *            *

In: "Felicidade Clandestina"

 Felicidade Clandestina.jpg

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

HILDA HILST - Sendo quem sou...

Sendo quem sou, em nada me pareço 
Hilda Hilst - (1930 - 2004)

Sendo quem sou, em nada me pareço.
Desloco-me no mundo, ando a passos
e tenho gestos e olhos convenientes.
Sendo quem sou
não seria melhor ser diferente
e ter olhos a mais, visíveis, úmidos
ser um pouco de anjo e de duende?
Cansam-me estas coisas que vos digo.

As paisagens em ti se multiplicam
e o sonho nasce e tece ardis tamanhos.
Cansam-me as esperanças renovadas
e o verso no meu peito repetido.
Cansa-me ser assim quem sou agora:
planície, monte, treva, transparência.
Cansa-me o amor porque é centelha
e exige posse e pranto, sal e adeus.

Queres o verso ainda? Assim seja.
Mas viverás tua vida nesses breus.

*            *            *

In: "Exercícios" - Organização Alcir Pécora

domingo, 22 de setembro de 2013

ROSEANA MURRAY - Transformação

Transformação
Roseane Murray


Fabrico uma árvore
com uma simples semente,
terra escura e quieta,
umas gotas de água.
Pouco a pouco,
de lua em lua,
de folha em folha,
enquanto o tempo
desenha arabescos
em meu rosto,
minha árvore se transforma
em poema vivo,
suas letras são flores,
são frutos, são música

*        *        *

In:  "Fábrica de poesia", ed. Scipione

sábado, 21 de setembro de 2013

CLARICE e A PAIXÃO SEGUNDO G.H.

Saiba tudo sobre o livro de Clarice Lispector em que se mastiga uma barata, clicando aqui: http://ads.tt/C8X1
Clarice Lispector e a experiência subjetiva em A paixão segundo G.H

Márwio Câmara (*) - em "Homo Literatus", 21/09/2013

A experiência fora do sistema

Publicado em 1964, e não diferente de seu romance inaugural, intitulado Perto do coração selvagem, de 1942, a escritora ucraniana naturalizada brasileira, Clarice Lispector, causou barulho entre os críticos e leitores com a publicação de A paixão segundo G.H., considerado, para muitos, um dos pontos altos de sua literatura e um de seus livros mais difíceis; à flor de sua maturidade literária, já evidenciada em seu romance anterior, A maçã no escuro, de 1961, não apenas pela temática psicológica e introspectiva — que cerne a sua literatura —, mas pela escritora inovar mais uma vez: quebrando as estruturas tradicionais do gênero romanesco para compor um livro essencialmente experimentalista, adornado de signos e metáforas — nos introduzindo a uma viagem intrínseca aos labirintos psíquicos de sua personagem, que busca respostas sobre a essência do mundo e da vida —, transmutando a narrativa em níveis inigualáveis de significação.

Cada passagem de A paixão segundo G.H. é possível que nela seja evidenciada novos entendimentos e formas de enxergar o romance quando tomado a novas releituras, dando o caráter grandioso do não esgotamento da obra — e que para alguns críticos é a verve da obra-prima —, esta escrita em primeira pessoa, e que se nivela entre a loucura (o desconserto da personagem) e o renascimento (a descoberta do novo olhar para as coisas), a hermeticidade (a ocultação da experiência metaforizada pela linguagem) e o autoconhecimento (a busca por respostas às indagações íntimas da personagem).

Logo no primeiro parágrafo do livro encontramos um discurso ousado e nada comum, construído pela escritora que inicia a narrativa com seis travessões, o que indica um possível desconserto existencial da personagem: a identidade de G.H. em ruptura com o mundo, o qual ela sempre estivera habituada, e consigo mesma.
Buscando dentro de si a sua remontagem humana; desvencilhando-se da máscara ou da persona que durante toda a sua vida, de fato, a personagem usou em seu mundo exterior e sistematizado, parte crucial de sua zona de conforto e alienação.

“— — — — — — estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender. Tentando dar a alguém o que vivi e não sei a quem, mas não quero ficar com o que vivi. Não sei o que fazer do que vivi, tenho medo dessa desorganização profunda. Não confio no que me aconteceu. Aconteceu-me alguma coisa que eu, pelo fato de não a saber como viver, vivi uma outra? A isso quereria chamar desorganização, e teria a segurança de me aventurar, porque saberia depois para onde voltar: para a organização anterior.”
(Trecho de A paixão segundo G.H., Clarice Lispector, Editora Rocco, p. 9)

Clarice Lispector

A epifania ante a hostilidade ou a separação de mundos dentro de um único
Desde que G.H. se desloca para o antigo quarto de sua empregada, despedida no dia anterior, um novo mundo de completa renúncia e estranhamento se rompe sobre a vida da personagem — uma artista, uma escultora de classe média alta que vive numa cobertura, é tudo que sabemos.
Ao entrar no cômodo, G.H. tem a sua primeira surpresa e/ou decepção: a de encontrar o quarto limpo. Diferente do que pensara há pouco, a personagem que se apresenta apenas com duas iniciais em maiúsculas encontra o antigo quarto da empregada limpo e com uma alvura que se diferenciava dos demais cômodos que compunham seu apartamento.
Porém, além do quarto limpo, ela se deflagra com três desenhos feitos a carvão na parede: três signos codificados nas figuras de um homem, uma mulher e um cachorro.
O que mais lhe causa estranhamento diante daqueles desenhos é  que cada um parecia isento do outro, como se ambos não pertencessem ao mesmo plano ilustrativo, e assim não dialogassem mesmo estando próximos ao outro.
O que a empregada queria dizer com aquilo? indaga a personagem.
E logo G.H se vê naquela mulher despida que fora desenhada a carvão na parede.

A incomunicabilidade dos desenhos era a metáfora do que  ocorria na vida cotidiana.
Dentro desse aspecto, a escritora frisa um ponto crítico nas relações vividas dentro da contemporaneidade — a segregação das classes e indivíduos.

G.H., por exemplo, mesmo tendo aquela mulher como a sua empregada, habituada dentro de sua casa, era como se a ela lhe fosse uma estrangeira, um ser invisível, ignorado e insignificante, onde apenas se estabelecia, entre elas, uma relação de ordem e cumprimento.

“Nenhuma figura tinha ligação com a outra, e as três não formavam um grupo: cada figura olhava para a frente, como se nunca tivesse olhado para o lado, como se nunca tivesse visto a outra e não soubesse que ao lado existia alguém.
Sorri constrangida, estava procurando sorrir: é que cada figura se achava ali na parede exatamente como eu mesma havia permanecido rígida de pé à porta do quarto. O desenho não era um ornamento: era uma escrita.
A lembrança da empregada ausente me coagia. Quis lembrar-me de seu rosto, e admirada não consegui — de tal modo ela acabara de me excluir de minha própria casa, como se me tivesse fechado a porta e me tivesse deixado remota em relação à minha moradia. A lembrança de sua cara fugia-me, devia ser um lapso temporário.” 
(Trecho de A paixão segundo G.H., Clarice Lispector, Editora Rocco, p. 39)

G.H. e a barata: o confronto de duas distintas naturezas
 E como falar sobre a relação entre G.H. e uma barata, a qual a personagem encontra dentro do armário do antigo quarto da empregada, e que termina sendo esmagada pela personagem entre o vão da porta?
A matéria branca que é expulsa de dentro do corpo da barata ritualiza a relação da personagem consigo mesma e com o mundo, enveredando-a entre os limites de sua própria existência, passando a caminhar entre o seio transgressor ao mais primário da vida; deixando sua subjetividade elevá-la a caminhos que transcendem a sua própria condição do “real”.

G.H se vê peregrinando entre desertos, portais, inferno e oratório, participando de rituais ocultos e orgias. Toda essa peregrinação faz parte, na verdade, de um ensaio interior e sabático que a personagem reporta em sua busca incessante pelo autoconhecimento e por respostas substanciais e reveladoras ante ao mistério da existência.
G.H está sentada na beira da cama frente à barata presa entre o vão da porta do armário em que a matara. Duas existências distintas, porém tão próximas em seus paradoxais distanciamentos (a nobreza e o anódino).
A barata, mesmo na sua condição fadada à mortalidade, guia G.H. a experiências que nunca antes encontradas em sua vida sistematizada.

“O mundo havia reivindicado a sua própria realidade, e, como depois de uma catástrofe, a minha civilização acabara: eu era apenas um dado histórico. Tudo em mim fora reivindicado pelo começo dos tempos e pelo meu próprio começo. Eu passara a um primeiro plano primário, estava no silêncio dos ventos e na era de estanho e cobre — na era primeira da vida.” 
(Trecho de A paixão segundo G.H., Clarice Lispector, p. 68)

Mas o grande momento do livro ainda estaria por vir: onde a personagem decide degustar da própria barata.
G.H. pensa que provando daquilo que ela considerava demasiadamente asqueroso e repugnante chegaria a “redenção” de sua própria existência. Ou seja, ao próprio estado de libertação dos limites que a definiam como humana.

“Não contei que, ali sentada e imóvel, eu ainda não parara de olhar a barata com grande nojo, sim, ainda com nojo, a massa branca amarelecida por cima do pardacento da barata. E eu sabia que enquanto eu tivesse nojo, o mundo me escaparia e eu me escaparia. Eu sabia que o erro básico de viver era ter nojo de uma barata. Ter nojo de beijar o leproso era eu errando a primeira vida em mim — pois ter nojo me contradiz, contradiz em mim a minha matéria.”

Porém, a personagem novamente é surpreendida durante o feito. Já que ao provar a barata morta e, em seguida, cuspir os restos mortais do animal, G.H. não sente nada; apenas uma estranha insipidez, que a remetia a coisa alguma, senão a ela mesma.

“Crispei minhas unhas na parede: eu sentia agora o nojento na minha boca, e então comecei a cuspir, a cuspir furiosamente aquele gosto de coisa alguma, gosto de um nada que no entanto me parecia quase adocicado como o de certas pétalas de flor, gosto de mim mesma.”

G.H., por fim, chega à conclusão:

“Eu que pensara que a maior prova de transmutação de mim em mim mesma seria botar na boca a massa branca da barata. E que assim me aproximaria do… divino? do que é real? O divino para mim é o real.”
(Trecho de A paixão segundo G.H., Clarice Lispector, p. 167)

Conclusões finais:
 A paixão segundo G.H. é o livro que confirma toda a maestria inventiva e literária da escritora Clarice Lispector.
Uma obra que impressiona seja no seu modo narrativo quanto pelo poder da escritora em criar “novas atmosferas” através da linguagem.
Além do que, a escritora consegue a faceta de cativar o leitor à medida que ele se particulariza com a experiência subjetiva da personagem — embora a tensão da própria narrativa não deixe de causar, inicialmente ou constantemente, vertiginosos desconfortos aos leitores.

A obra mistura filosofia, existencialismo, experimentalismo estético e misticidade, já que dentro do subsolo da personagem, são levantados questionamentos entre a natureza do divino e do imoral, do céu e do inferno, que orbitam dentro da gente.
E situa a importância de se ter um alguém segurando em nossa mão, sobretudo, durante os náufragos de nós mesmos. Um alguém que esteja ali pronto para nos ouvir, para não nos sentirmos tão solitários e pequenos frente à inexorável complexidade e crueza da vida, do mundo — a mão de Deus.

E termino com um trecho de um parágrafo situado na página 158 do livro, onde a personagem, em seu enigmático monólogo interior, dissipa:

“(…) Não quero a meia-luz, não quero a cara benfeita, não quero o expressivo. Quero o inexpressivo. Quero o inumano dentro da pessoa; não, não é perigoso, pois de qualquer modo a pessoa é humana, não é preciso lutar por isso: querer ser humano me soa bonito demais.
Quero o material das coisas. A humanidade está ensopada de humanização, como se fosse preciso; e essa falsa humanização impede o homem e impede a sua humanidade. Existe uma coisa que é mais ampla, mais surda, mais funda, menos boa, menos ruim, menos bonita. Embora também essa coisa corra o perigo de, em nossas mãos grossas, vir a se transformar em “pureza”, nossas mãos que são grossas e cheias de palavras.”


*            *            *
(*) Márwio Câmara - Escritor, poeta e jornalista; pós-graduando em Cinema e Linguagem Audiovisual pela Universidade Gama Filho. Já foi premiado em concursos literários, na categoria Poesia. Dirigiu e produziu o documentário A rua do artista.

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

FERNANDO PESSOA - "A criança que eu fui..."



Fernando Pessoa

A criança que eu fui chora na estrada.
Deixei-a ali quando vim ser quem sou;
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou.

Ah, como hei-de encontrá-lo? Quem errou
A vinda tem a regressão errada.
Já não sei de onde vim nem onde estou.
De o não saber, minha alma está parada.

Se ao menos atingir neste lugar
Um alto monte, de onde possa enfim
O que esqueci, olhando-o, relembrar,

Na ausência, ao menos, saberei de mim,
E, ao ver-me tal qual fui ao longe, achar
Em mim um pouco de quando era assim.

*            *           *

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

CECÍLIA MEIRELES - Ribeira da minha vida...


Post no facebook - "Artes & Poesias", via Tel Mont

Ribeira da minha vida... 

Cecília Meireles

Ribeira da minha vida
por onde agora andarão
meus barcos de ausência e bruma,
com sua tripulação!

Pergunto se estão de volta,
pergunto se ainda se vão.
Ribeira dos meus cuidados,
minha voz é solidão.

Ribeira da minha vida,
por que sinto o coração
morrer-me nestas areias
de antiga recordação?

Hei de ser o mar e o vento,
e a noite, e a constelação,
- ribeira dos meus cuidados! -
e a própria navegação.

Ribeira da minha vida,
hei de mudar de aflição:
não mais despedida ou espera,
mas naufrágio ou salvação.

Ribeira da minha vida... 
Cecília Meireles

Ribeira da minha vida
por onde agora andarão
meus barcos de ausência e bruma,
com sua tripulação!

Pergunto se estão de volta,
pergunto se ainda se vão.
Ribeira dos meus cuidados,
minha voz é solidão.

Ribeira da minha vida,
por que sinto o coração
morrer-me nestas areias
de antiga recordação?

Hei de ser o mar e o vento,
e a noite, e a constelação,
- ribeira dos meus cuidados! -
e a própria navegação.

Ribeira da minha vida,
hei de mudar de aflição:
não mais despedida ou espera,
mas naufrágio ou salvação.

*            *            *

terça-feira, 17 de setembro de 2013

ADÉLIA PRADO - Dona Doida

Dona Doida
Adélia Prado

Uma vez, quando eu era menina, choveu grosso
com trovoadas e clarões, exatamente como chove agora.
Quando se pôde abrir as janelas,
as poças tremiam com os últimos pingos.

Minha mãe, como quem sabe que vai escrever um poema,
decidiu inspirada: chuchu novinho, angu, molho de ovos.

Fui buscar os chuchus e estou voltando agora,
trinta anos depois.  Não encontrei minha mãe.
A mulher que me abriu a porta, riu de dona tão velha, 
com sombrinha infantil e coxas à mostra. 

Meus filhos me repudiaram envergonhados,
meu marido ficou triste até a morte,
eu fiquei doida no encalço.

Só melhoro quando chove.

*            *            *

In: "Poesia Reunida",  p. 108.

domingo, 15 de setembro de 2013

FERNANDO PESSOA - Não sei quantas almas tenho


Não sei quantas almas tenho
Fernando Pessoa


Não sei quantas almas tenho. 
Cada momento mudei. 
Continuamente me estranho. 
Nunca me vi nem acabei. 
De tanto ser, só tenho alma. 
Quem tem alma não tem calma. 
Quem vê é só o que vê, 
Quem sente não é quem é,

Atento ao que sou e vejo, 
Torno-me eles e não eu. 
Cada meu sonho ou desejo 
É do que nasce e não meu. 
Sou minha própria paisagem; 
Assisto à minha passagem, 
Diverso, móbil e só, 
Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo 
Como páginas, meu ser. 
O que segue não prevendo, 
O que passou a esquecer. 
Noto à margem do que li 
O que julguei que senti.
Releio e digo: "Fui eu ?"
Deus sabe, porque o escreveu.

*        *        *

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

FERNANDO PESSOA - Na ribeira deste rio


Da página "Artes & Poesias" - Facebook
Foto: "Na ribeira deste rio
Ou na ribeira daquele
Passam meus dias a fio
Nada me impede, me impele
Me dá calor ou dá frio

Vou vivendo o que o rio faz
Quando o rio não faz nada
Vejo os rastros que ele traz
Numa seqüência arrastada
Do que ficou para trás

Vou vendo e vou meditando
Não bem no rio que passa
Mas só no que estou pensando
Porque o bem dele é que faça
Eu não ver que vai passando

Vou na ribeira do rio
Que está aqui ou ali
E do seu curso me fio
Porque se o vi ou não vi
Ele passa e eu confio

Ele passa e eu confio..."


Fernando Pessoa



arte" roman romanov"
Tela de Roman Romanov
Fernando Pessoa

Na ribeira deste rio
Ou na ribeira daquele
Passam meus dias a fio
Nada me impede, me impele
Me dá calor ou dá frio

Vou vivendo o que o rio faz
Quando o rio não faz nada
Vejo os rastros que ele traz
Numa seqüência arrastada
Do que ficou para trás

Vou vendo e vou meditando
Não bem no rio que passa
Mas só no que estou pensando
Porque o bem dele é que faça
Eu não ver que vai passando

Vou na ribeira do rio
Que está aqui ou ali
E do seu curso me fio
Porque se o vi ou não vi
Ele passa e eu confio

Ele passa e eu confio...

*        *        *

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

WILLIAM BLAKE - O Tygre

O Tygre de William Blake

O Tygre de William Blake

Eliane Boscatto - "Homo Literatus" página Facebook

Quando a poesia é fruto da imaginação em delírio, escrevê-la é dar voz à alma. 
Não precisa necessariamente ser entendida ou explicada, a racionalidade é insuficiente para entendê-la. Seu entendimento passa antes pela percepção, por uma visão sensitiva do mundo e das coisas.
Este poema é um dos mais conhecidos de William Blake, um poeta visionário, considerado místico, onde estão contidos a beleza e o horror, e em algum ponto tudo parece se integrar e dessa fusão, não se percebe outra coisa, senão tão somente a beleza.




O Tygre  
William Blake

Tygre, Tygre, fogo ativo,
Nas florestas da noite vivo;
Que olho imortal tramaria
Tua temível simetria?

Que profundezas, que céus
Acendem os olhos teus?
Aspirar quais asas ousa?
Qual mão em tuas chamas pousa?

Por que braço e que arte é feito
Cada nervo do teu peito?
E teu peito ao palpitar,
Que horríveis mãos?  e pés sem par?

Que martelo? Que elo? Tua mente
Vem de qual fornalha ardente?
Qual bigorna? Que mão forte
Prende o teu terror de morte?

Quando em lanças as estrelas
Choraram ao céu, ao vê-las:
Ele sorriu da obra que fez?
Quem fez o cordeiro te fez?

Tygre, Tygre, fogo ativo,
Nas florestas da noite, vivo,
Que mão imortal armaria
Tua terrível simetria?



*           *            *

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

HAIKAIS - Leo Carrion

por Leo Carrion

Escritor premiado no FC do B (Ficção Científica Brasileira), concurso literário criado  em 2005 para incentivar, difundir e renovar a literatura de ficção científica no Brasil



Deitado sob o ipê
passei o dia inteiro
a receber flores

**


Que desconfiança?
a primavera é maravilhosa
desde criança

*        *        *