segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

ANDRÉ J. GOMES - A chuva que varre...

Tela de Leonid Afremov
A chuva que varre os velhos ódios 
e a vida que brota em cada um de nós
André J. Gomes - "Revista Bula",

E no fim do trigésimo terceiro dia de calor desumano, uma chuva impetuosa varreu as ruas e as praças e os telhados das casas na terra abatida pela seca, a burrice e a falta de amor. 

Lá de cima, um batalhão de nuvens robustas disparava toneladas de água fria sobre a vida inflamada aqui embaixo, levantando do solo outras nuvens grossas de vapor e alívio em franca liberdade de volta ao céu.

Na eternidade de um instante, só a chuva se fez existir no conjunto da vida. 

Não havia mais o mundo e sua gente, suas regras e seus empregos, suas certezas e verdades absolutas, suas cargas horárias e tributárias, suas chantagens e mesquinharias. 
Só havia a água que caía e se esparramava em enxurradas, ondas, espirros e torrentes desmedidas.

Era só uma chuva. 

Mas enquanto caía, operava nas coisas uma inusitada transformação. 
Em vez das carreiras para debaixo das marquises, dos pedestres se escondendo em lojas e das senhoras abrindo suas sombrinhas, o pé d’água arrancou toda a gente de seus abrigos e as levou para fora. 
E foi como se todas as pessoas boas tivessem combinado de sair às ruas na mesma hora. 
De repente, a vida foi violentamente invadida por boas intenções e ações generosas. Estranhamente, o aguaceiro inundou o mundo de pequenos milagres.
Rios de gentileza desceram barulhentos as grandes avenidas e desembocaram em afluentes de compreensão e amizade, invadindo as ruas e suas casas, encharcando as famílias de amor, embebendo suas roupas de novas motivações, arrebentando as paredes que separam as pessoas de seus sonhos.

Velhos inimigos se deram conta do quanto são ridículas as suas rixas, maridos dominadores tremeram de vergonha ao perceber o quanto são patéticos ao subjugar suas companheiras de tantas formas. 

No trânsito, motoristas deram e receberam passagem em largos sorrisos. 
Por todos os lugares, as palavras mais ouvidas foram “bom dia”, “boa tarde”, “boa noite”, “por favor” e “obrigado”, num burburinho gentil e interminável de bondade e festa.

Entre todos os seres humanos, estabeleceu-se um novo conjunto de regras tácitas, sendo a mais interessante aquela que determina nosso dever absoluto de, sem nenhuma recompensa ou qualquer represália, avisar discretamente a todo semelhante, sobretudo os desconhecidos, sobre o advento de um incidente estético não percebido, como uma alface presa ao dente depois do jantar e a bunda que se prenuncia à apreciação pública involuntária no chamado cofrinho.


A chuva dissipou generosa em sua fúria os velhos ódios e rancores impregnados no solo como velhos chicletes. 

Limpou do coração dos homens a empáfia e a maldade, libertou os devedores de suas contas correntes e os inseguros de seus amores impostos. 
Firme em seu estado democrático natural, o temporal desabou com justiça sobre nossa série interminável de pequenas infelicidades e nossas alegrias rotineiras que, de tão recorrentes, já nem notamos.

Assim choveu por dias e noites ou minutos e segundos. Não importa. 

Só importa a chuva e o que ela trouxe. E quando a última nuvem esgotou seu derradeiro pingo, o sol retornou manso ao seio da terra e fez brotar o amor em todos os cantos.
Nas rachaduras do asfalto, nos jardins abandonados, nas sombras de um bosque, entre os bichos que nascem nas cascas das árvores, o amor renasceu forte e fecundo.

Como a festa de sons e cheiros e luzes que tem início nos corações refeitos, renovados e sãos, tão logo termina a chuva e recomeça a vida.


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