Existência iletrada
Mariana Gonçalves - 08 de abril 2014
A tarde está indo embora e descendo um céu gradual e escuro janela afora, a TV ligada baixo no noticiário das sete nos dá um conforto típico de anoitecer chuvoso.
Ela finge que presta atenção à repórter à sua frente, mas olha em minha direção de quando em quando, com curiosidade. Eu finjo que nada vejo. Acho graça.
Minha avó não sabe ler. Encara as palavras como algo além de sua compreensão. Sente vontade, deixa transparecer seu desejo de decifrar aqueles símbolos em meu livro a cada olhar.
Lembro-me de quando eu era criança, tentando ensiná-la a escrever o nome, e de seu caderno de 96 folhas com o qual passava as tardes em companhia dela, vendo-a rabiscar seu nome com mãos trêmulas, lutando contra a rigidez dos dedos. No começo, tinha pena dela. Porém, tarde após tarde, eu amava tentar ensinar como se faz a voltinha do “o” e a cauda do “j”.
Se minha avó sente hoje orgulho ao escrever o próprio nome, esse mérito é, em parte, meu.
Deixo o livro um instante e encontro seu olhar. “Tá estudando é, fia?”, pergunta ela, amável, tentando disfarçar sua curiosidade com a casualidade de uma pergunta simples. “Não, vó. Só lendo.”
Entendo, então, que essa explicação nada diz à minha avó, cujos olhos nunca tiveram o prazer de transcorrer uma frase em um livro. E que “só ler” é um grande e nobre ato para ela.
Sinto-me culpada. Embora tenha tentado ensiná-la, sua mente senil já está completa e cansada com anos de trabalho, desde a fazenda na Paraíba a apartamentos de madames no Sudeste. Seu corpo e sua mente agora só querem descansar.
Como será viver sem leitura?
Enxergo nos olhares de minha avó um sentimento de desalento resignado, de exclusão.
Recordo-me de uma pergunta sua, sobre o que diziam os livros que eu tanto carregava comigo. Disse a ela que eram como novelas escritas, e lembro-me de ter me deparado com olhos instigados que, ainda assim, não puderam assimilar o sentido do que é algo “escrito”.
Quando pequena, minha primeira tentativa fora com “O Príncipe e o Mendigo”. Levei anos até chegar ao último ponto final.
Mais tarde, meu segundo, dado por meu pai, um livro fininho de Pedro Bandeira com meu nome como título. E então, leituras das quais hoje me envergonho, porém cruciais.
Evoco aqui a sensação de um mundo inteiro se abrir para mim. De repente, entendia tudo com mais clareza, enxergava mensagens onde antes só poderia ver o óbvio. Um universo inteiro sob meu mundo.
Penso, agora eu com os olhos voltados a ela, em como seria bom que pessoas como minha avó pudessem sentir o que eu senti com meus primeiros livros. Sentir que são dignas de estarem aqui, sentir que estão no mesmo patamar de todos os outros, sentir a inclusão que ler nos traz. Sentir, afinal, o inocente orgulho de chegar ao último ponto final.
Não apenas ler, mas entender e refletir. E não serem mais enganadas por desonestos afora, e por uma sociedade que não perde a deixa de tirar vantagem sobre alguém cuja instrução é pouca ou nula.
Há macetes para viver em um mundo cercado de palavras quando não se sabe interpretá-las, é claro. Mas minha avó nunca saberá o que é ler um livro. Um ato tão simples, porém tão grande a seus olhos.
Sinto então que entre meu livro, eu, e minha avó ao lado, há uma distância imensurável que nunca será superada. Sinto-me longe dela, longe de sua pessoa que, mesmo analfabeta, carrega uma enorme sabedoria e grandes experiências consigo.
E mesmo que eu adore o livro em minhas mãos, desisto e pergunto a ela sobre seu tempo de moça, de sua vida na roça. Descubro uma inteligência, uma instrução, que grande parte do mundo não pode entender ou sequer enxergar. Pois, ainda assim, não há apenas a inteligência intelectual. Agora, também aprenderei com ela.
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