O sertão vai virar mundo
Marco Antonio Cruz
Quando “Grande Sertão: Veredas” foi publicado em 1956, não demorou para que a crítica o aclamasse como a grande obra que é.
Sua narrativa e estilo único fizeram do livro um dos romances mais importantes da literatura brasileira, talvez de toda a língua portuguesa.
Seguindo a influência modernista, seu texto imprime uma marca inventiva tanto em forma como enredo.
A personagem Riobaldo narra os fantásticos episódios de sua vida a um interlocutor sem nome, um doutor da cidade de passagem pelos “Gerais”.
As histórias de amor e guerra, deus e diabo, vão se derramando com a imprecisão e falta de linearidade típicas de quem rememora, num monólogo de 500 páginas que mantêm a fluidez e musicalidade a cada linha.
O texto escrito guarda muito da expressão oral do relato.
Permeado por particularidades linguísticas da região sertaneja, o regionalismo da fala de Riobaldo colore a narrativa.
Neologismos de toda sorte (conhecenças e duvidações desenormes!) e também arcaísmos que resgatam o que há de mais antigo no português medieval, fazem da obra um tesouro do idioma.
A sintaxe singular do livro, suas construções frasais entre poesia e prosa, quase filosóficas, levaram muitos críticos a dizer que Guimarães Rosa havia inventado uma nova língua.
O choque do leitor, não deve ser muito diferente do que o doutor da cidade experimenta ao ouvir o relato de Riobaldo, e faz parte da atmosfera do livro.
É um conflito de dialetos, suas influências geográficas e temporais. Tendo a compartilhar a opinião do poeta Manuel Bandeira, que em carta ao amigo escreve:
“Ao despois de depois, andaram dizendo que você tinha inventado uma língua nova e eu não gosto de língua inventada. Sempre arreneguei de esperantos e volapuques.
Vai-se ver, não é língua nova nenhuma a do Riobaldo.
Difícil é, às vezes. Quanta palavra do sertão!
A princípio, muito aplicadamente, ia procurar a significação no dicionário. Não encontrava. (…) Tinha vezes que pelo contexto eu inteligia: ‘ciriri dos grilos’, ‘gugo da juriti’ etc. Mas até agora não sei, me ensine, o que é ‘arga’, ‘suscenso’, ‘lugugem’ e um desadôro de outras vozes dos gerais.
Tinha vezes que eu nem podia atinar se a palavra era nome de bicho vivente, plantinha ou coisa sem corpo nem côr nem coragem, abstrato que se diz, não é? Ou é? Ou será?
Ainda por cima disso, você fez Riobaldo poeta, como Shakespeare fez Macbeth poeta.”
Lemos Guimarães Rosa em português como quem aprende uma língua estrangeira, prestando atenção aos sons e ao que se diz no subtexto.
É a redescoberta da língua-mãe.
Guimarães Rosa era um alquimista da língua.
Além de falar o português e as principais línguas europeias, como o alemão, inglês, francês, também lia italiano, o servo-croata, sueco e russo, além de estudar por prazer a gramática de diversas outras línguas como o persa, chinês, japonês, hindi, húngaro, malaio.
Em carta a João Condé, 1946, escreve que “cada língua guarda em si uma verdade interior que não pode ser traduzida.”
Este esclarecimento possibilitou a Guimarães Rosa escrever o livro intraduzível.
É verdade que Grande Sertão: Veredas possui inúmeras traduções, algumas delas acompanhadas de perto e aprovadas pelo autor, mas sempre incompletas e decididamente pobres perto do original.
A pior delas talvez seja a versão em língua inglesa “The devil pay in the backlands” de 1963.
É difícil transportar os malabarismos sintáticos do livro para o inglês, idioma mais enxuto. Excessivamente acadêmica e literal o fracasso desta versão foi tão contundente que não houve outra tradução desde então.
Sem novas edições, mesmo seus sofríveis exemplares são caros e raros.
Guimarães Rosa permanece, até hoje, na penumbra para os leitores de língua inglesa.
Porém, novas tentativas de tradução tem sido articuladas pelos herdeiros do escritor.
Após muitos escritores anglófonos alegarem falta de tempo ou mesmo capacidade para transportar o romance para o idioma, desde 2013 uma nova tradução está em curso. Até ela ficar pronta, esforços anônimos como o do pesquisador Felipe Wood Martinez, geram iniciativas como a tradução do romance feita pelo Twitter, 140 caracteres por vez, acessível pelo perfil (@___VIATOR___).
Mas o que perdem os gringos ao deixar de ler uma história escrita em português intraduzível sobre o idiossincrático interior do Brasil?
A grande virada de Guimarães Rosa é que o escritor desvendou, entre os regionalismos intrincados de sua obra, algo de universal e cosmopolita no sertão brasileiro.
Muito além de digressões literárias, os “desvarios” de Riobaldo no sertão são o centro da trama. Suas reflexões existencialistas sobre o sentido da vida e o fatalismo da morte, a existência ambivalente de deus e do diabo, as muitas faces do amor e as veredas do mundo, são as mesmas de todos os homens, de qualquer parte.
O sertão, de cenário, torna-se aos poucos o personagem principal, o mundo. E o mundo é um só para todos.
“O sertão não chama ninguém às claras; mais, porém, se esconde e acena.”
“O sertão é do tamanho do mundo.”
“Sertão é dentro da gente.”
“O sertão é sem lugar.”
“O sertão está em toda parte.”
“O sertão é uma espera enorme.”
“O sertão não tem janelas, nem portas. E a regra é assim: ou o senhor bendito governa o sertão, ou o sertão maldito vos governa.”
É por isto que este sertão mundo é acessível de qualquer lugar.
Guimarães Rosa escreveu seu grande sertão na metrópole parisiense, rememorando, à maneira de Riobaldo.
Dizia à filha: “O sertão, Vilminha, é metafísico. Eu galopo nele as minhas histórias.”
E neste sentido escreveu que “Goethe nasceu no sertão, assim como Dostoievski, Tolstoi, Flaubert, Balzac… porque o Sertão é o terreno da eternidade, da solidão, onde o interior e o exterior não podem mais estar separados.”
Com um romance regional, porém universal. Universal, porém intraduzível. Intraduzível, mas ainda cosmopolita — Guimarães Rosa revelou que o sertão vai virar mundo, basta que o mundo saiba traduzir-se e virar sertão.
Mas para nós, seus companheiros de língua, deixou a porta aberta:
“…o aspecto metafísico da língua, que faz com que minha linguagem antes de tudo seja minha. (…) Meu lema é: a linguagem e a vida são uma coisa só. Quem não fizer do idioma o espelho de sua personalidade não vive; e como a vida é uma corrente contínua, a linguagem também deve evoluir constantemente. Isto significa que, como escritor, devo me prestar contas de cada palavra e considerar cada palavra o tempo necessário até ela ser novamente vida. O idioma é a única porta para o infinito, mas infelizmente está oculto sob montanhas de cinzas.”
* * *
Nenhum comentário:
Postar um comentário