domingo, 29 de março de 2015

Sobre a menina síria que confundiu... - Nara Rúbia Ribeiro

Há alguns dias um fotógrafo capturou, na Síria, a imagem de uma criança que se rendeu em frente sua câmera. Segundo informações do site Huffington Post, a pequena levantou os braços ao confundir a câmera com um rifle.
Sobre a menina síria...
Nara Rúbia Ribeiro - página 'CONTI outra arte e afins'

Quando ainda menina, lia muito Drummond. Achava um exagero ele dizer que chegaria um tempo de absoluta depuração, em que “(…) os olhos não choram./E as mãos tecem apenas o rude trabalho./E o coração está seco.” 
Mas hoje eu vi no noticiário uma cena muito peculiar, e a verdade do poema me veio à alma, imediatamente. 
Um fotógrafo, ao tentar retratar a vida das crianças sírias, conseguiu captar não a frieza deste mundo, mas já a sua consequência. 
Ele enquadra a criança em sua lente e essa levanta os braços, rendida, pensando ser uma arma.

Deus! Que mundo é este, onde a inocência caminha de mãos levantadas e a alma do mundo não sangra, e os olhos dos homens não choram, e a dor já não nos pode chocar? 
Que mundo é este cujos avanços tecnológicos não encontram eco na evolução moral dos indivíduos e onde só o que conta são os cifrões?

Um mundo cujo colorido já não é convidativo aos olhos. Onde a beleza é preterida. Onde a pureza dos pequeninos ainda é roubada e banhada do sangue de seus pares, de seus pais e, não raro, do seu próprio sangue. 
Um mundo cujas crianças já têm a esperança prematuramente envelhecida pela dor que transborda dos noticiários e que não raro floresce ao seu lado. 
Um mundo em que, a cada dia, o homem teme mais e mais o próprio homem.

Frequentei um curso, há um tempo, e algo me deixou sobremodo perplexa. 
O instrutor mostrava-nos diversos vídeos com acidentes causados por veículos. 
Em dada situação, um homem fora atropelado por não olhar para a sua direita quando um carro vinha na contra mão.  
Alguns dos colegas, a maioria jovens entre 18 e 25 anos, riram da cena. 
Noutro atropelamento, a maioria riu. 
Esboçaram alguma comoção, leve, quando uma criança foi atropelada. 
(...)
A dor do outro é estatística. “Quantas mortes, mesmo, na Síria? Quantos desabrigados no Acre? Quantas mulheres são agredidas por ano? Quantas crianças são estupradas por parentes próximos?” 
Não! Essa postura desmerece o infinito que somos, desautoriza a angelitude a que estamos destinados, desmente a centelha do Eterno que permeia a alma de cada um de nós!

Necessitamos ver o outro como parte desprendida, mas ainda ligada a nós por laços infindáveis de natureza espiritual. 
Ninguém pode ser plenamente feliz enquanto um só de nós estiver de braços levantados, rendida criança assustada pelos estrondos da guerra, cativa da dor e da morte. 
Esfomeada de uma Justiça que ela não pode compreender ou dizer, mas, humana que é, já a pode desejar e de sua falta se ressentir.

Que esta criança que hoje vi de mãos levantadas por confundir a câmera com uma arma possa ainda, é o que utopicamente desejo, levantar novamente as suas mãos, mas não por medo. 
Que ela ainda possa, na pontinha dos pés, elevar os seus braços para brincar com as estrelas.


*            *           *

E agora, o ABSURDO ainda maior.  De qualquer modo, o texto acima é impactante, movido pela sensibilidade que falta à maioria das pessoas. 
A mentira descarada não é mais 'privilégio' individual. A grande mídia aderiu.  A pergunta é : como saber quem está mentindo?
Tenho que concordar com a frase "A humanidade fracassou."
**


Desvendado mistério de foto viral de criança síria que "se rende"


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  • Osman Sagirli
    Foto que viralizou foi tirada pelo fotógrafo turco Osman Sagirli
    Foto que viralizou foi tirada pelo fotógrafo turco Osman Sagirli
Milhares de pessoas compartilharam a imagem de uma criança síria com as mãos para cima, como se estivesse se entregando, ao confundir a câmera fotográfica com o cano de uma arma.

Mas quem fez este flagrante?

A imagem começou a viralizar no Twitter na terça-feira da semana passada, quando foi postada por Nadia Abu Shaban, uma fotógrafa baseada em Gaza.

A mensagem original foi retuitada mais de 11 mil vezes. "Estou chorando", "muito triste" e "a humanidade fracassou" foram alguns dos comentários.

Na sexta-feira, a imagem foi compartilhada no Reddit, onde recebeu mais de 5.000 votos positivos e 1.600 comentários.

Não demorou para que surgissem acusações de que a foto era falsa. Muitos no Twitter questionaram quem seria o autor da foto e por que a imagem havia sido postada sem crédito.

Nadia confirmou que não tinha tirado a foto, mas não sabia explicar quem havia feito a imagem.

No Imgur, um site de compartilhamento de imagens, um usuário pesquisou a origem da fotografia - um clipping de um jornal - e disse que ela era real, mas tirada "por volta de 2012". A mensagem também nomeou o fotógrafo: o turco Osman Sagirli.

A BBC conversou com Sagirl, que agora trabalha na Tanzânia, e desvendou o mistério.

A criança é uma menina, Hudea, de 4 anos. A imagem foi tirada no campo de refugiados de Atmeh na Síria, em dezembro do ano passado. Hudea viajou ao campo - a cerca de 10 km da fronteira turca - com a mãe e dois irmãos, a 150 km da cidade deles, Hama.

"Eu usei uma lente de telefoto e ela pensou que fosse uma arma", disse Sagirli.

"Depois que eu tirei, eu olhei [para a foto] e percebi que ela [a criança] estava assustada, porque ela mordeu os lábios e levantou as mãos. Normalmente, crianças correm, escondem os rostos ou sorriem quando veem uma câmera", disse.

Ele diz que fotos de crianças dos campos de refugiados são especialmente reveladoras.

"Você sabe que há pessoas que foram desalojadas nos campos. Faz mais sentido ver o que elas sofreram através das crianças e não dos adultos. São as crianças que refletem os sentimentos com a inocência que têm."

A imagem foi publicada inicialmente no jornal "Türkiye" em janeiro e foi amplamente compartilhada pelas redes sociais em turco, mas só na semana passada se tornou viral em mídias na língua inglesa.
*          *         *

sexta-feira, 27 de março de 2015

quinta-feira, 26 de março de 2015

Trocando E-mail - Joaquim Ferreira dos Santos


De: tom@arpoador 
Para: zózimo@leblon
 (15/12/2014)
Joaquim Ferreira dos Santos - colunista jornal O Globo

Meu caro Zózimo, receba daqui, diretamente da muvuca do Arpoador, toda a minha invejinha branca por você estar aí, no outro lado do calçadão, no cantinho discreto do Leblon. 
Que sossego deve ser essa vida de estátua longe das multidões!
Não sei se você tem lido jornal, mas me colocaram no meio de uma cena infernal, na esquina dos arrastões e dos turistas internacionais. 
Eu virei aquela pedra no caminho de que falava o Drummond, outra vítima, coitado, dessa mania de fazerem estátua para todo mundo.

Estou no meio da calçada atravancando ainda mais a vida de quem quer a simplicidade feliz de andar de um lado para o outro, sem ter que desviar de um cara feito de pedra, paradão na tua frente.
Pois saiba, meu bom Zózimo, que me botaram num lugar cheio de fradinhos, antenas de operadora de celular, latões de lixo, aqueles bancos desconfortáveis para mendigo não sentar, enfim, uma confusão de obstáculos. 
Como se fosse pouco este caos de atrapalhamentos, agora colocaram mais um cotoco para o cidadão tropeçar. Eu!
Você que é jornalista, me diga: quem teve essa ideia maluca?

Estou de costas para o mar, servindo de enfeite para que gente do mundo inteiro venha se apoiar no meu ombro, se tome de intimidades com minha pacata figura tijucana e me compartilhe em milhares desse negócio que eles agora pedantemente chamam de selfie.

Como eu te invejo, querido Zózimo! O tempo todo olhando a sinuosidade do Leblon, as dunas de Ipanema. 
A vista alcançando daí até o nascer do sol aqui na praia do Diabo, um deslumbramento de cores que agora está nas minhas costas e eu para sempre fiquei condenado a nunca mais ver.
Você é um felizardo, meu caro! Te colocaram de olho direto sobre a areia, para você seguir apreciando o cenário tão ao seu gosto, o mais impressionante espetáculo sobre a terra – a eterna melhoria das sucessivas gerações de moças que vão à praia.
Elas continuam basicamente as mesmas, com todos os mesmos acessórios de sempre, mas como é que elas conseguem? Como é que o Divino lá em cima consegue? Mexem no cabelo aqui, no músculo ali, redesenham as redondilhas, as panturrilhas, aperfeiçoam minúcias que ninguém imaginava poderem ser aprimoradas – e a cada safra, a cada geração, elas se apresentam para o banho de mar com uma arte final mais espetacular do que nunca.
Pois, Zózimo, me deixaram de costas para tudo isso!
Me fizeram na medida para servir de cenário, uma curiosidade carioca a mais para que as pessoas coloquem no tal do Instagram e digam aos amigos distantes que estão no Rio e tropeçaram com o Tom Jobim. 
As operadoras de celular estão faturando às minhas custas e eu, duro de pedra, tenho que permanecer em silêncio.

Essas são as notinhas que eu tenho aqui do outro lado da praia, meu caro colunista.

Que saudade do tempo em que a gente ficava na Cobal do Leblon jogando conversa fora, resenhando a Humanidade. 
Ninguém chegava para fotografar. Grandes charutos, grandes chopes, papos intermináveis.
Uma vez você aproveitou na coluna uma das loucuras que saíam nessas horas. 
A gente conversava sobre um amigo, bom de copo, que se internara para uma temporada de 30 dias de desintoxicação. Aí eu disse, “pois é Zózimo, a gente passa a vida inteira construindo uma reputação pra ver tudo se perder em um mês”. 
No dia seguinte estava no jornal, em três linhas, com aquela tua classe redacional.

Pois é, meu caro, do cantinho discreto da Cobal eu vim parar no calçadão do Arpoador. 
Como se não bastasse ser abraçado o dia inteiro por gente que nunca vi mais gorda e cheia de areia, colocaram para me proteger dos vândalos um carro da Guarda Municipal estacionado do meu lado. Em cima da calçada!
Um repórter veio cobrir a inauguração daquilo a que agora estou condenado e me disse. No Rio já somos 312 bustos e, com a minha, 98 estátuas fincadas. É quase a população de um bairro. 
Imagino que em breve um decreto municipal vai nos dar vida e começar a cobrar o IPTU.

Enfim, eu agradeço a intenção de quem o fez, inclusive de terem me esculturado jovem. 
Mas quem ouviu a bossa nova sabe que eu sou zero de pompa e pose. 
A grande homenagem seria cuidar da minha sumaúma no Jardim Botânico. Conservar as praias do Oceano Atlântico sem estátua na frente ou sem a favela de quiosques escondendo as Cagarras. 
Meu negócio é a poesia do urubu solto, o resto é a lama, é a lama.
A propósito, meu bom Zózimo, eu temo que agora, com a estátua plantada no meio da calçada, comecem a cantar uma nova versão da minha música – e ela passe a ser “é pau, é pedra, é o Tom no caminho”
**
De: zózimo@leblon 
Para: tom@arpoador
04/03/2015
Joaquim Ferreira dos Santos 

Meu caro Tom Jobim, antes de mais nada seguem, de estátua para estátua, do fundo do meu coração de bronze, as desculpas por ter demorado tanto tempo, lá se vão três meses, desde que o amigo me mandou aquela carta tão simpática aí da ponta do Arpoador. 
Como vão as coisas? Muito pau de selfie? 
Parece que agora você foi cercado por hippies estrangeiros vendendo anel de lua e estrela. Muito cheiro de mato?
Seja bem vindo ao clube, Tomzinho. 
Antes, seres ambulantes, nós éramos sol, sal, sul, sexo e social. Agora, fixos nessas calçadas, somos só sol, susto e sereno. É o que rola. 
Chuva tem tido pouca. A propósito, prepare-se. São Pedro, pelo andar da carruagem e do movimento das nuvens, não vai mandar as águas de março que você tão bem cantou e fechavam o verão. 
Aposto que neguinho (escapou o politicamente incorreto!) vai aproveitar para dizer que a tua obra está superada e, se bobear, faz manifestação aí na tua frente para exigir as tuas promessas.
É, meu bom Tom, foi você quem disse: no Brasil, sucesso é ofensa pessoal.

Eu não posso reclamar da vida de estátua aqui no Leblon. 
Me colocaram de olho na praia, o que me permite dar uma geral nessa nova geração de gatinhas – a propósito, onde vai parar a evolução da espécie com esse interminável aperfeiçoamento do layout das moças? 
A Duda Cavalcanti era linda, mas no outro dia passou por aqui a Paolla Oliveira e, posso estar errado, havia nela uns músculos ainda não desenhados pelos deuses do design feminino nos anos 1960. Espero que a maresia não me enferruje as retinas e eu possa ver onde elas e o lápis divino vão parar.

Não reclamo, Tomzinho. Eu estou na estátua um pouco menor e mais magro do que era. 
O ar de severidade do rosto também não parece ser capaz de a qualquer momento soltar uma gargalhada, e era o que eu mais fazia. 
Mas tive minhas compensações. Fiquei num cantinho discreto, fora da muvuca. A toda hora chega alguém para se apoiar em mim e começar o alongamento para a corrida, mas fazer o quê? É dura a vida de estátua ao rés do chão, obrigada ao corpo a corpo com as multidões. 
Ah, que inveja dos generais, quase cutucando o céu com suas espadas, todos sobre cavalos e pedestais.

O Drummond, coitado, que teve a sorte de ficar sentado, no outro dia me escreveu dizendo que confundem poeta com psicanalista. 
Homens e mulheres sentam ao seu lado e sussurram horas e horas de desditas amorosas, como se procurassem no silêncio dele uma inspiração para sair das armadilhas em que se meteram com seus pares. “Amor é estado de graça e com amor não se paga”, me disse o Drummond. “Virem-se, que eu já virei estátua.”

Não é fácil pra ninguém, Tonzinho, e eu, se não tenho os paus de selfie me cutucando o juízo, tenho aqui atrás uma fábrica de esgoto que de vez em quando lança uma fedentina que vou te contar.
Não reclamo, vou ficando. 
Eu sou do Jardim Botânico, nasci lá, morei 25 anos na Frei Leandro. 
Poderiam ter me posto ali onde está o Otto Lara Rezende, na esquina com a Pacheco Leão. Mas seria pior – fica na frente do supermercado, cercado da barulheira infernal dos ônibus. 
No outro dia, o Otto me escreveu. Um sujeito aproveitou a mesa do escritório – é quase um carro alegórico a estátua dele – e ficou ali tomando uma cervejota. Lambuzou tudo.

Enfim, Tomzinho, se está difícil para os que andam de um lado para o outro – a seca! a Dilma! – imagina para nós, que não temos saída. 
Estou bem. Olho as moças, vejo as novidades na praia e, esticando a vista, alcanço até o Arpoador, onde consigo perceber o seu vulto, meu amigo compositor, no meio da calçada, cercado pela multidão.

Quando a gente se encontrava na Cobal, você falava de ter passado 30 anos construindo uma reputação, músicas geniais etc, e que estava na hora de vender tudo, chutar o balde. 
Vamos reivindicar ao prefeito. Já imaginou se cada selfie abraçado com nossas empostadas figuras de bronze fizesse pingar uma moeda aos nossos pés? 
Com a chegada do metrô aqui ao Leblon, a multidão tomando o bairro, eu posso ficar rico, algo que não consegui depois de ralar 33 anos e escrever 150 mil notinhas no Globo e no Jornal do Brasil.

No outro dia quem passou por aqui foi o Boechat, todo pimpão dentro do seu inevitável sungão vermelho. Vai dar uma estátua ótima. 
Eu narrei a tua odisseia aí, meu bom Tomzinho, e falei da tua camisa branca desbotada no ombro de tanto o pessoal se apoiar para a selfie. 
O Boechat, então, repetiu o bordão que usava para fechar a coluna quando faltava só uma linha: “É dura a vida da bailarina!”. Conversamos ao nosso jeito. 
Eu reclamei que a cidade anda violenta (da mesma maneira que tiraram os óculos do Drummond, andaram me grafitando o paletó) e lancei a desconfiança de que essas estátuas, em meio à corrupção generalizada, devem servir para alguém ganhar algum por fora na licitação da obra.

É isso aí, Tomzinho, qualquer dia chega a polícia e nós vamos continuar firmes, bronzeadíssimos, olhando na direção de sempre. Quem não deve, não treme. 
Nada a declarar, a não ser, e com essa divulgação de princípios me despeço, de que enquanto houver champanhe, há esperança. Abraço firme.

PS. O Vinícius diz que quando lhe fizerem a estátua, ele precisa estar sentado. Quer que as moças façam selfies sentadinhas em seu colo calorosamente poético.


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quarta-feira, 18 de março de 2015

Machado e a loucura - Adlla Rijo em 'Obvious'


A genialidade de Machado de Assis na abordagem sobre a loucura
Adlla Rijo - 'Obvious Literatura'


Um dos contos de feitura mais admirável de Machado de Assis, O alienista é uma sátira magistral acerca da inviabilidade de se definir a esfera da loucura, sob pena de incorrer numa generalização abominável. 
Afinal, como diz o ditado popular: “de médico e louco todo mundo tem um pouco”.

A estória se passa na vila de Itaguaí, onde um médico, o Dr. Simão Bacamarte, obcecado por detectar enfermidades psíquicas, passa a recolher os supostos enfermos num asilo por ele criado, a chamada “Casa Verde”, com o propósito de tratá-los, assim como de desenvolver suas teorias científicas. 
Já desde o início de sua obra-prima, Machado dá dicas da insolência da missão abraçada pelo personagem. 
Não é à toa que o apresenta, na primeira página, como o “filho da nobreza da terra e o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das Espanhas". 
A ironia machadiana resplandece fosforescente nesse texto.

No decorrer da narrativa, é apresentado ao leitor um fato inusitado: “[…] quatro quintos da população da vila estavam aposentados naquele estabelecimento […]”, ou seja, na Casa Verde. E disso decorre o mais curioso, que é a conclusão do Dr. Bacamarte: “[…] que desse exame e do fato estatístico resultara para ele a convicção de que a verdadeira doutrina não era aquela, mas a oposta, e portanto que se devia admitir como normal e exemplar o desequilíbrio das faculdades, e como hipóteses patológicas todos os casos em que aquele equilíbrio fosse ininterrupto; […]”. 

Com isso, o protagonista resolve dar liberdade aos reclusos da Casa Verde, que já representavam a esmagadora maioria da população local, e agasalhar nela as pessoas que se achassem na condição acima exposta, qual seja: equilíbrio ininterrupto das faculdades mentais.

Tendo em vista que a anomalia é tida como exceção e não como regra, o excêntrico personagem de Machado deduz que a loucura seria, então, o oposto daquilo que a maioria vem manifestando, ainda que o comportamento dessa maioria tenha sido, outrora, para ele, o indicativo de desajuste.

Salta aos olhos, também no conto, o perigo de se atribuir a um único homem um poder dessa natureza: o de classificar indivíduos segundo o seu critério e tolher a liberdade das pessoas, mesmo que em nome da ciência.

Secionar a humanidade em categorias, seja qual for o objetivo, é algo no mínimo temerário e pode levar, em casos extremos, a situações dramáticas como o holocausto. Os seres humanos tem suas particularidades e cada indivíduo é um mundo.

Não há como deixar escapar a intenção do autor de criticar de maneira sarcástica a psicologia sanitarista que dominava a época, bem como a postura pretensiosa de alguns no sentido de considerar que encontraram a chave para as mazelas da humanidade; como se tal chave existisse!

Convém notar que Simão Bacamarte não era um homem desprezível. Ao contrário; desfrutava de intensa credibilidade junto aos cidadãos da vila e à própria Câmara de Vereadores, e suas intenções foram expostas como sendo as melhores. 
Tanto é assim que na narrativa ele enclausura na Casa Verde a mulher que ama, sua própria esposa, D. Evarista da Costa e Mascarenhas, ao constatar a sua suposta patologia.

Nenhum desvio se subtraía aos olhos daquele homem que, paradoxalmente, acaba se apresentando, na trama, como o mais anormal de todos. 
Afinal, como fica evidente no texto de Machado, a totalidade dos hóspedes da Casa Verde conseguira, senão obter a cura, retornar às suas vidas fora desse estabelecimento, exceto Simão Bacamarte. 
É que, achando em si os característicos do perfeito equilíbrio mental e moral, decide fechar-se na Casa Verde, apesar dos apelos contrários da mulher e dos amigos, entregando-se ao estudo e à cura de si mesmo até sua morte, que não teria tardado, segundo se depreende da narrativa.

Aliás, cabem aqui parênteses para reforçar o quanto uma obra está intrincada com as vivências de seu autor. 
Em seu livro Machado de Assis - Um gênio brasileiro, Daniel Piza destaca: “[….] Ele enfrentou muitos preconceitos de sua época: o preconceito racial, como um mulato escuro que viveu 49 dos 69 anos num Brasil escravocrata; o preconceito social, como um epiléptico de origem muito pobre que tinha grandes ambições literárias; e o preconceito intelectual, como escritor que adotou linguagem concisa e cristalina, rejeitou o otimismo e a religião e jamais aderiu a modas estéticas.”
E acrescenta, referindo-se à epilepsia de que era portador o nosso gênio: “[…] 
Depois da morte da amada, ressurgiu sem dó o mal que, para muitos, naqueles tempos, era sinal de insanidade.”

Com sua genialidade, Machado nos apresenta uma forma brilhante de fazer o grande público enxergar o risco na atitude indesejada de rotular pessoas, de secionar populações, de superestimar indivíduos e teorias, sejam elas filosóficas, religiosas ou científicas; e por fim, de “nunca sair dos trilhos”.

O ser humano é um misto de alegria e tristeza, de amor e ódio, de inquietude e paz, de loucura e sanidade. Carregamos o bom e o mau dentro de nós. 
Temos, cada qual, um pouco de Deus e do diabo em nossas entranhas. 
Negar isso significa negar a nossa própria essência, o que resulta não só em tolice, mas na maior e mais destrutiva loucura; que o diga Simão Bacamarte!


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terça-feira, 17 de março de 2015

Não podemos ter a certeza de nada - José Luís Peixoto

Da página "Conti outra Artes e Afins"


Não podemos ter a certeza de nada
José Luís Peixoto - escritor português

Somos todos iguais na fragilidade com que percebemos que temos um corpo e ilusões. 
As ambições que demorámos anos a acreditar que alcançávamos, a pouco e pouco, a pouco e pouco, não são nada quando vistas de uma perspectiva apenas ligeiramente diferente. 
Daqui, de onde estou, tudo me parece muito diferente da maneira como esse tudo é visto daí, de onde estás. 
Depois, há os olhos que estão ainda mais longe dos teus e dos meus. 
Para esses olhos, esse tudo é nada. Ou esse tudo é ainda mais tudo. Ou esse tudo é mil coisas vezes mil coisas que nos são impossíveis de compreender, apreender, porque só temos uma única vida.

— Por quê, pai?

— Não sei. Mas creio que é assim.

Só temos uma única vida. E foi-nos dado um corpo sem respostas. E, para nos defendermos dessa indefinição, transformámos as certezas que construímos na nossa própria biologia. 
Fomos e somos capazes de acreditar que a nossa existência dependia delas e que não seríamos capazes de continuar sem elas. 
Aquilo em que queremos acreditar corre no nosso sangue, é o nosso sangue. 
Mas, em consciência absoluta, não podemos ter a certeza de nada. Nem de nada de nada, nem de nada de nada de nada. Assim, repetido até nos sentirmos ridículos. 
E sentimo-nos ridículos muitas vezes e, em cada uma delas, a única razão desse ridículo é não conseguirmos expulsar da nossa biologia, do nosso sangue, dos nossos órgãos, essas certezas injustificadas, ou justificadas por palavras sempre incompletas. 
Mas é bom que seja assim. Porque podemos continuar e, enquanto continuamos, continuamos. Estamos vivos. Ou acreditamos que estamos vivos, o que é, talvez, a mesma coisa.

— Por quê, pai?

— Porque o amor, filho.
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No livro ‘Abraço’

segunda-feira, 16 de março de 2015

"Morte e vida severina" - João Cabral de Melo Neto

"Retirantes" - Cândido Portinari

JOÃO CABRAL DE MELO NETO – A ATEMPORALIDADE DA VIDA SEVERINA
Angelo Rafael - em "Obvious - Literatura"

O auto de natal pernambucano – Morte e Vida Severina - obra do escritor João Cabral de Melo Neto (1920-1999), escrito numa conjuntura política e social de um passado marcado pela migração de retirantes, diáspora nacional de proporções bíblicas, em busca de trabalho, pouso, água, víveres, pode ser vista hoje, na aldeia sem fronteiras e demarcações, como uma tentativa de cicatrizar a chaga na veia aberta de um país desigual, em meio à dignidade ou na absoluta falta dela. 

Sair dos confins da Serra da Costela em direção ao litoral, desfiando as cinquenta e três Ave Marias de um terço, desgastado e enegrecido pelo pretume da fumaça das velas de oratório, foi a única saída para Severino retirante. Partir! 
Não sabia ele, apenas desconfiava, que o curso do rio, ora trilha de barro rachado, ora fio lamacento de um Capibaribe que desemboca nos mangues populosos e no mar, que seu nome se tornaria adjetivo e timbre para uma vida miserável, sem outro alvorecer que não o sofrimento e o sempre caminhar e sobreviver.

No “desfiar do rosário”, de povoado em povoado, a vida severina encontra sua cumplicidade nas personagens da estrada: a rezadeira, que “vive de mortos a enterrar”; carpideiras e suas incelenças pranteando à beira de um minifúndio de sete palmos de terra; degredados filhos de Eva que entoam músicas evocativas às atividades pastoris ibérico medievais, numa região digna de um dos círculos de Dante, mas querida enquanto torrão nascedouro de esperanças e milagres. 
A obra, encenada e estudada em todo o Brasil e alhures, é um ato dramático na sua composição literária, enquanto métrica arcaica, cuja entonação do grito se iguala ao desespero, sem aquele que desafia em recitá-la o perceba.

Quando o Rio Capibaribe se apresenta como fio caudaloso e lamacento, esta esperança vem a brotar como as folhas verdes de cana fina da Zona da Mata, ou como canto mavioso de um mês mariano.
Mas como Caronte, os espíritos que mantiveram Severino firme até seu último passo, oferecem o golpe mortal do desânimo e apatia, no fim de uma jornada quase inútil e desesperadamente irremediável, até que o Mestre Carpina lhe mostra, numa simplicidade invejável que não vale a pena saltar fora da ponte e da vida. 


A “explosão de uma vida severina”, mesmo com todo o peso e fatalidade do adjetivo, é suficiente para que a vida se renove e vingue. 
O nascimento de uma criança em tal cenário de palafitas assombradas se sobrepõe a todas as vicissitudes de miséria e desengano. 
Acorre ao neonato toda a sorte de presentes natalícios, vindo de quem não tem quase nada para oferecer, mas cujo ato de doar o que possui é a quintessência do que melhor e ainda tem o ser humano.

“- Minha pobreza tal é que coisa não posso ofertar somente o leite que tenho para meu filho amamentar aqui são todos irmãos, de leite, de lama, de ar. -
- Minha pobreza tal é que não tenho presente melhor trago papel de jornal para lhe servir de cobertor, cobrindo-se assim de letras, vai um dia ser doutor.
- Minha pobreza tal é Que não tenho presente caro Como não posso trazer Um olho d’água de Lagoa do Carro, Trago aqui água de Olinda, Água da bica do Rosário.”

Não falta na obra o componente místico e messiânico, por meio dos oráculos e adivinhações, ora com nuances premonitórios da fatalidade da sina do retirante, ora no decretar o advir para a criança, que nasce nas palavras do embate entre as duas ciganas saídas da casa lamacenta dos caranguejos.

“-Atenção peço, senhores, para esta breve leitura: somos ciganas do Egito, lemos a sorte futura. vou dizer todas as coisas que desde já posso ver na vida deste menino acabado de nascer: aprenderá a engatinhar por aí, com aratus, aprenderá a caminhar, na lama, como goiamuns, e a correr o ensinarão os anfíbios caranguejos, pelo que será anfíbio como a gente daqui mesmo."

O contraponto abissal das leituras ciganas fala mais alto: o simples fato de uma vida vir à luz. 
Anos 1950, emblemático momento social, encontramos nas entrelinhas desta obra a verve do acreditar e esperar, como estigma sangrento de todo aquele que nasce sob a linha do Equador, numa terra a nordeste do continente.

“- E belo porque com o novo Todo o velho contagia... - Belo porque corrompe Com sangue novo a anemia. - Infecciona a miséria Com vida nova e sadia -Com oásis, o deserto, Com ventos, a calmaria."

Nas palavras do Mestre Carpina ancoramos toda a esperança do povo nordestino, brasileiro, construtor de cidades e vilas, de pontes e ferrovias, arautos da crença que desafia o nefasto pessimismo, protagonista da construção de uma identidade forjada a suor, sangue e lágrimas.

“— Severino retirante, deixe agora que lhe diga: eu não sei bem a resposta da pergunta que fazia, se não vale mais saltar fora da ponte e da vida; nem conheço essa resposta, se quer mesmo que lhe diga; é difícil defender, só com palavras, a vida, ainda mais quando ela é esta que vê, severina; mas se responder não pude à pergunta que fazia, ela, a vida, a respondeu com sua presença viva. E não há melhor resposta que o espetáculo da vida: vê-la desfiar seu fio, que também se chama vida, ver a fábrica que ela mesma, teimosamente, se fabrica, vê-la brotar como há pouco em nova vida explodida; mesmo quando é assim pequena a explosão, como a ocorrida; mesmo quando é uma explosão como a de há pouco, franzina; mesmo quando é a explosão de uma vida severina.”

E assim, esta vida, conduzida conta a conta como o debulhar do rosário em noite de novena, está presente de forma clara ou velada, em todos os lugares, estradas, famílias, aldeias, populações, porque ser severino é uma sina, ou mais, um estado de espírito.


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