A genialidade de Machado de Assis na abordagem sobre a loucura
Adlla Rijo - 'Obvious Literatura'
Um dos contos de feitura mais admirável de Machado de Assis, O alienista é uma sátira magistral acerca da inviabilidade de se definir a esfera da loucura, sob pena de incorrer numa generalização abominável.
Afinal, como diz o ditado popular: “de médico e louco todo mundo tem um pouco”.
A estória se passa na vila de Itaguaí, onde um médico, o Dr. Simão Bacamarte, obcecado por detectar enfermidades psíquicas, passa a recolher os supostos enfermos num asilo por ele criado, a chamada “Casa Verde”, com o propósito de tratá-los, assim como de desenvolver suas teorias científicas.
Já desde o início de sua obra-prima, Machado dá dicas da insolência da missão abraçada pelo personagem.
Não é à toa que o apresenta, na primeira página, como o “filho da nobreza da terra e o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das Espanhas".
A ironia machadiana resplandece fosforescente nesse texto.
No decorrer da narrativa, é apresentado ao leitor um fato inusitado: “[…] quatro quintos da população da vila estavam aposentados naquele estabelecimento […]”, ou seja, na Casa Verde. E disso decorre o mais curioso, que é a conclusão do Dr. Bacamarte: “[…] que desse exame e do fato estatístico resultara para ele a convicção de que a verdadeira doutrina não era aquela, mas a oposta, e portanto que se devia admitir como normal e exemplar o desequilíbrio das faculdades, e como hipóteses patológicas todos os casos em que aquele equilíbrio fosse ininterrupto; […]”.
Com isso, o protagonista resolve dar liberdade aos reclusos da Casa Verde, que já representavam a esmagadora maioria da população local, e agasalhar nela as pessoas que se achassem na condição acima exposta, qual seja: equilíbrio ininterrupto das faculdades mentais.
Tendo em vista que a anomalia é tida como exceção e não como regra, o excêntrico personagem de Machado deduz que a loucura seria, então, o oposto daquilo que a maioria vem manifestando, ainda que o comportamento dessa maioria tenha sido, outrora, para ele, o indicativo de desajuste.
Salta aos olhos, também no conto, o perigo de se atribuir a um único homem um poder dessa natureza: o de classificar indivíduos segundo o seu critério e tolher a liberdade das pessoas, mesmo que em nome da ciência.
Secionar a humanidade em categorias, seja qual for o objetivo, é algo no mínimo temerário e pode levar, em casos extremos, a situações dramáticas como o holocausto. Os seres humanos tem suas particularidades e cada indivíduo é um mundo.
Não há como deixar escapar a intenção do autor de criticar de maneira sarcástica a psicologia sanitarista que dominava a época, bem como a postura pretensiosa de alguns no sentido de considerar que encontraram a chave para as mazelas da humanidade; como se tal chave existisse!
Convém notar que Simão Bacamarte não era um homem desprezível. Ao contrário; desfrutava de intensa credibilidade junto aos cidadãos da vila e à própria Câmara de Vereadores, e suas intenções foram expostas como sendo as melhores.
Tanto é assim que na narrativa ele enclausura na Casa Verde a mulher que ama, sua própria esposa, D. Evarista da Costa e Mascarenhas, ao constatar a sua suposta patologia.
Nenhum desvio se subtraía aos olhos daquele homem que, paradoxalmente, acaba se apresentando, na trama, como o mais anormal de todos.
Afinal, como fica evidente no texto de Machado, a totalidade dos hóspedes da Casa Verde conseguira, senão obter a cura, retornar às suas vidas fora desse estabelecimento, exceto Simão Bacamarte.
É que, achando em si os característicos do perfeito equilíbrio mental e moral, decide fechar-se na Casa Verde, apesar dos apelos contrários da mulher e dos amigos, entregando-se ao estudo e à cura de si mesmo até sua morte, que não teria tardado, segundo se depreende da narrativa.
Aliás, cabem aqui parênteses para reforçar o quanto uma obra está intrincada com as vivências de seu autor.
Em seu livro Machado de Assis - Um gênio brasileiro, Daniel Piza destaca: “[….] Ele enfrentou muitos preconceitos de sua época: o preconceito racial, como um mulato escuro que viveu 49 dos 69 anos num Brasil escravocrata; o preconceito social, como um epiléptico de origem muito pobre que tinha grandes ambições literárias; e o preconceito intelectual, como escritor que adotou linguagem concisa e cristalina, rejeitou o otimismo e a religião e jamais aderiu a modas estéticas.”
E acrescenta, referindo-se à epilepsia de que era portador o nosso gênio: “[…]
Depois da morte da amada, ressurgiu sem dó o mal que, para muitos, naqueles tempos, era sinal de insanidade.”
Com sua genialidade, Machado nos apresenta uma forma brilhante de fazer o grande público enxergar o risco na atitude indesejada de rotular pessoas, de secionar populações, de superestimar indivíduos e teorias, sejam elas filosóficas, religiosas ou científicas; e por fim, de “nunca sair dos trilhos”.
O ser humano é um misto de alegria e tristeza, de amor e ódio, de inquietude e paz, de loucura e sanidade. Carregamos o bom e o mau dentro de nós.
Temos, cada qual, um pouco de Deus e do diabo em nossas entranhas.
Negar isso significa negar a nossa própria essência, o que resulta não só em tolice, mas na maior e mais destrutiva loucura; que o diga Simão Bacamarte!
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