terça-feira, 17 de março de 2015

Não podemos ter a certeza de nada - José Luís Peixoto

Da página "Conti outra Artes e Afins"


Não podemos ter a certeza de nada
José Luís Peixoto - escritor português

Somos todos iguais na fragilidade com que percebemos que temos um corpo e ilusões. 
As ambições que demorámos anos a acreditar que alcançávamos, a pouco e pouco, a pouco e pouco, não são nada quando vistas de uma perspectiva apenas ligeiramente diferente. 
Daqui, de onde estou, tudo me parece muito diferente da maneira como esse tudo é visto daí, de onde estás. 
Depois, há os olhos que estão ainda mais longe dos teus e dos meus. 
Para esses olhos, esse tudo é nada. Ou esse tudo é ainda mais tudo. Ou esse tudo é mil coisas vezes mil coisas que nos são impossíveis de compreender, apreender, porque só temos uma única vida.

— Por quê, pai?

— Não sei. Mas creio que é assim.

Só temos uma única vida. E foi-nos dado um corpo sem respostas. E, para nos defendermos dessa indefinição, transformámos as certezas que construímos na nossa própria biologia. 
Fomos e somos capazes de acreditar que a nossa existência dependia delas e que não seríamos capazes de continuar sem elas. 
Aquilo em que queremos acreditar corre no nosso sangue, é o nosso sangue. 
Mas, em consciência absoluta, não podemos ter a certeza de nada. Nem de nada de nada, nem de nada de nada de nada. Assim, repetido até nos sentirmos ridículos. 
E sentimo-nos ridículos muitas vezes e, em cada uma delas, a única razão desse ridículo é não conseguirmos expulsar da nossa biologia, do nosso sangue, dos nossos órgãos, essas certezas injustificadas, ou justificadas por palavras sempre incompletas. 
Mas é bom que seja assim. Porque podemos continuar e, enquanto continuamos, continuamos. Estamos vivos. Ou acreditamos que estamos vivos, o que é, talvez, a mesma coisa.

— Por quê, pai?

— Porque o amor, filho.
*            *            *

No livro ‘Abraço’

Nenhum comentário:

Postar um comentário