terça-feira, 30 de junho de 2015

segunda-feira, 29 de junho de 2015

...a dor dos noticiários - Nara Rúbia Ribeiro

Da página 'Conti outra'

Por que as pessoas buscam a dor dos noticiários?  
Nara Rúbia Ribeiro


Arte naif: Eliete Tordin

Liguei a TV. Algo de medonho havia ocorrido. Dados alarmantes, números bizarros e depoimentos diversos davam notícia de que o futuro havia chegado de mãos dadas com o fim. Tudo pareceu-me desolado. A economia desconsolada, o Judiciário vendido, a democracia vilipendiada. E mortes e insegurança e indignação e desespero… Deus! Quem foi que violentou a alma do mundo para que tudo sangrasse assim,  com tanta força?


Mas eu tive a ousadia de desligar a TV. Eu tive a audácia de não ler jornais. Eu tive o despreparo de andar pela rua e de observar pessoas, coisas e tentar enxergar abstratos.


Uma mãe segurava a mão do filho pequenino e dizia:  – Não, Artur. Depois do “3” não vem já o “5”. Vem o “4”.


Uma senhora sorriu, escorada no umbral da entrada de uma casa, ao perceber a confusão numérica da criança. E prosseguiu observando mãe e filho a sumirem de vista, enquanto acariciava um gato vira-latas que parecia também observar a cena.


Havia flores nos canteiros das casas e crianças uniformizadas, ainda sonolentas, seguiam para a escola. 

Passarinhos povoavam os fios de alta tensão como se a delicadeza desafiasse a força, como se as penas blindassem as suas almas da violência do mundo.
Em meio ao barulho dos automóveis, quem tivesse o ouvido inclinado à beleza poderia ouvir o canto indecifrável desses pássaros.

Um jovem me viu parada a observar essas coisas e perguntou-me: – Você está bem?  A custo compreendi a pergunta, e respondi: – É um bom dia, não é? Ele acenou com a cabeça positivamente, e seguiu caminho.


E vi muitas pessoas sorrindo e contando anedotas. 

Vi um beija-flor meio perdido entre flores de vida e rosas de plástico, mas ele sobreviveu. 
Vi pedrinhas coloridas numa calçada. 
Ouvi o porteiro do prédio a relatar, a um amigo, o desfecho triunfal de sua noite de amor.

E percebi que a ausência da vida é resultante do distanciamento da sua essência. 

Percebi que as verdades poéticas e cotidianas não são notícia. 
Quem quer saber de beija-flores confusos ou de pequenos aprendizes matemáticos? 
Quem quer noticiar a glória de pássaros que desafiam a insensibilidade das almas? 
Quem quer saber de tudo isso se nem sabe que isso existe?

As pessoas necessitam da dor dos noticiários. Necessitam de ver o sangue, a violência, a podridão do mundo porque querem urgente e desesperadamente compreender o que lhes dói. 

Elas precisam saber o que fez do seu peito um oco, um vazio, um vão imensurável e doído. 
Elas precisam saber da origem do nada que as incomoda, o nascedouro do apego ao concreto, a gênese de sua indiferença, a origem do medo generalizado que arrebata o sentido. 
E é isso que o noticiário vende!

Estou farta de ver holofotes plenos à mediocridade dos homens. 

É preciso entender que o Homem é maior do que é. 
É preciso compreender e amar a beleza que germina  em todas as coisas e antever a árvore frondosa e a doçura do fruto. 
É preciso valorar as pequenas delicadezas, as imperceptíveis gentilezas. 
É preciso ver a beleza que existe, talvez ainda embrionária, em cada um. 
É preciso que a alma não se renda à morte vendida nos noticiários, e ainda se mostre rendilhada e rebordada na afeição de pequenos e reiterados gestos.

Por isso eu o convido, hoje, a ter a ousadia de desligar a TV, de desconectar-se das redes sociais que tantas vezes destilam ódio, de não ler jornais. 

Convido a fazer uso do seu wi-fi interior. Da sua antena superior. E conectar-se às belezas que o circundam. Sintonizar-se com o encantamento que paira sobre o inusitado das existências anônimas, das pessoas anônimas, dos objetos e seres desimportantes. Afinal, se essa beleza nos preenche, porque haveríamos de justificar os vazios?

Goiânia, 13 de março de 2015.



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sexta-feira, 12 de junho de 2015

ANDRÉ J. GOMES - Para as almas amorosas...


PARA AS ALMAS AMOROSAS, QUALQUER LUGAR LONGE DO SER AMADO É TERRA ESTRANGEIRA

André J. Gomes - em 'Revista Bula'


Não olhe agora. Mas nós estamos cercados de estrangeiros. O mundo, esse lugar tão grande quanto a sala da nossa casa, anda povoado de forasteiros. 
É gente nascida em todo canto, rumando para todo lado, mas que em algum instante, de alguma sorte, seguiu para longe de seu amor. Uns há horas, outros há dias, semanas, meses, anos, todos se encontram distantes do ser amado.

O jeito não engana. Essa gente enamorada de alguém que vai longe tem um jeito aplicado de trabalhar direito, como quem quer logo voltar para casa. 
Tem distância geográfica, lonjura do coração ou os dois. Não importa. Tudo é longe para quem não caminha junto de seu amor.

Alguns sequer o encontraram. Outros o acharam e o deixaram partir. 
Há os que têm saudade simplesmente porque não podem estar o tempo todo agarrados a seu bem. 
Todos são andarilhos em terra estrangeira, vagando em busca de amor. 
As almas enamoradas são assim. Longe a qualquer distância de quem amam, sentem no coração um banzo, uma saudade, um não-sei-quê de nostalgia.

Assim como os imigrantes que partem para um país distante, levando escondidos na bagagem um saquinho do feijão de sua terra, um punhado do café de sua cidade, uma muda do hortelã dos avós para o chá das noites de insônia e tristeza, há também os que só resistem à saudade porque carregam consigo lembranças de seus dias de amor e de paz.

Não há remédio que dê jeito na falta do amor distante. Nada senão rumar para onde o coração ficou cativo. Depois seguir de alma leve, remoçada. 
Almas enamoradas funcionam assim. Se vão, carecem de voltar. Para elas, qualquer lugar fora de seu amor é terra estrangeira. Do outro lado do mundo ou ali na esquina.

Eu entendo as almas enamoradas de todo canto. Eu aqui, em minha solidão de bicho, compreendo sua disposição para a vida, sua lida convicta de honestos trabalhadores, seu jeito firme e manso que só têm as pessoas boas. Entendo, respeito, admiro e agradeço.

Porque as almas enamoradas, mesmo aquelas que caminham sós em busca do amor que talvez nunca venha, carregam e levam adiante nossa primeira e maior vocação: a de dar e receber amor por aí.

Em sua labuta, as almas enamoradas assumiram a tarefa de entregar, umas às outras e a quem mais estiver perto, palavras de tão profundo carinho, embrulhadas em gestos tão simples, que desarmariam as caras mais feias e desmontariam as intenções mais odiosas.

A cada novo encontro amoroso, conspiram os enamorados por um mundo de pessoas livres, ativas e gentis. Gente que acredita no trabalho e pratica seu ofício com honestidade e gratidão. Almas que valorizam o tempo e não o perdem com besteira. Que apontam o barco para a frente e não o dedo a ninguém. Que ouvem o que lhes dizem, guardam o que desejam e respondem o que precisam. 
Criaturas imperfeitas que vivem sua vida e deixam em paz a dos outros. Que preferem a crença no esforço próprio e dispensam a crítica ao empenho alheio.

Assim são as almas enamoradas. Boas quando longe de seu amor. Melhores ainda quando perto. 
Para elas, qualquer lugar fora de seu amor é uma fria, distante e aborrecida terra estrangeira.


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quarta-feira, 10 de junho de 2015

Nicole Ayres Luz - sobre Contos de Fadas

Por trás dos Contos de Fadas
Nicole Ayres Luz - em 'Homo Literatus


Em sua origem, os contos de fadas eram bem sombrios, nada muito semelhante aos contos de fadas atuais, como vemos nas adaptações cinematográficas


Se pensamos em contos de fadas hoje em dia, lembramos basicamente das adaptações da Disney, mas as origens do gênero são bem mais sombrias. 
Se passar fome ou ser atacado por animais na floresta parecem ameaças distantes para nós, antigamente eram situações que faziam parte da realidade cotidiana. 

Na verdade, as histórias não eram voltadas para o público infantil. 
Apenas no século XVII, com a coletânea de Charles Perrault, estabeleceu-se o gênero literário, baseado em lendas da tradição europeia. 
No século XIX, os irmãos Grimm e Hans Christian Andersen fizeram novas versões. Essas são as fontes mais conhecidas. 
Já havia então o conceito de família burguesa, em que as crianças seriam mais protegidas, teriam seu espaço na sociedade.

O contexto social muda gradativamente, e com isso certas versões prevalecem ou se modificam. 
Cada vez mais houve uma amenização da crueldade dominante nas lendas originais. 
Na atualidade, também é muito comum que se trabalhem sátiras, como Shrek, que desmistificam o próprio gênero.

Normalmente, o primeiro contato com a ficção se faz através dos contos de fadas. 
Numa fase da vida em que a imaginação é guia para a compreensão da realidade, eles ajudam, por metáforas, a lidar com os conflitos latentes. 
Vários estudos psicológicos foram desenvolvidos nesse sentido. 
O mais famoso é Psicanálise dos Contos de Fadas, de Bruno Bettelhein. 
Uma versão mais atualizada é Fadas no Divã, do casal de brasileiros Mário e Diana Corso, em que são comentadas desde narrativas clássicas, como Cinderela, Rapunzel, João e Maria, até tramas contemporâneas, como Ursinho Pooh, A Turma da Mônica e Harry Potter.

É muito comum que, nos contos de fadas, haja um protagonista criança e vilões encantados, como bruxas e ogros. 
Essas criaturas representariam outra faceta dos próprios pais, seu lado controlador e punitivo. 
A situação do abandono é bastante comum, como em João e Maria e O Pequeno Polegar
Isso acaba trabalhando a questão da autonomia da criança, que deve saber como agir sozinha em determinadas situações. 
Já quando são adolescentes ou jovens adultos, o desenlace passa a ser amoroso. 
Príncipes e princesas devem vencer obstáculos para alcançar seu final feliz, como em Branca de Neve, A Bela e a Fera, Rapunzel. 
Esse é o momento em que o jovem deixa a casa dos pais para se casar e formar sua própria família, não sem passar por conflitos diversos.

Enquanto Bruno Bettelhein defende a leitura dos contos originais, o casal Corso acredita que, além de ser difícil de recuperar as verdadeiras fontes, toda forma de ficção é válida como alimento para a imaginação infantil. 
As histórias se transformam conforme a época. 
Hoje, o maniqueísmo clássico está sendo quebrado com personagens dúbios, híbridos, humanos. 
No filme Malévola, o drama da vilã torna-se o mote central, mudando a perspectiva. 
Na série Once Upon a Time, os heróis também erram e certos vilões se redimem. 
Os caminhos são tortuosos, as escolhas difíceis, por isso os personagens hesitam em determinados momentos. Seu caráter pode ser íntegro, porém não é impecável.

Em um tempo dinâmico, ágil, de informação disponível por vários meios, a criança é estimulada cada vez mais cedo a lidar com as questões complexas da vida. 
O importante é que ela não perca sua capacidade criativa, seu jeito diferenciado, fantasioso, poético, de apreender a realidade. 
Com isso, os contos de fada continuam cumprindo seu papel.
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Referências:

CORSO, Diana Lichtenstein; CORSO, Mário. Fadas no Divã – Psicanálise nas Histórias Infantis. Porto Alegre: Artmed, 2006.

FRANCO, Maria Dorothea Barone. Malévola: um outro espaço, uma nova imagem. In: Revista Conhecimento Prático Literatura nº 60. São Paulo: Escala, 2015.


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sábado, 6 de junho de 2015

ADRIANO DIAS - "Enquanto chorou..."

Arte de Voider Sun
Enquanto chorou gotas iluminadas,
mínimas entre as lágrimas,
despertou apenas certa curiosidade,
nenhum cientista levou a sério,
relegando a pesquisa do mistério
para outro dia, quem sabe.
Mas a moça insistisse serem estrelas
vindas do céu que sonhava o tempo todo
causou um crescente alvoroço,
pois, embora fossem pequenas, 
conforme o volume da emoção que tivesse
seu rosto encharcava em pontos brilhantes
de um modo como não fora visto nunca antes,
exceto quem olhasse o manto celeste.
E como acontece à nossa raça,
quando perante tal tipo de fenômeno,
sedentos por milagres que somos,
aguardando ansiosos por quem os faça,
cresceu no entorno da moça, como fumaça,
um absorvente incômodo,
inebriante, conjurando em todos 
o impulso que nos produz a fé,
como também o delírio e o desespero até.
Houve quem arvorasse orientar os ritos
lembrasse profecias,
batucassem ritmos esquisitos,
convencesse ter visões dos próximos dias,
outros diziam ter visto, 
com aqueles olhos maníacos,
na face estelar da moça,
a organização dos signos do zodíaco,
ou quem decidisse rasgar-lhe os globos,
alegando ouvir vozes mais acres, sons tenebrosos,
exigindo sangue, sacrifício, as carnes suas...
Foi quando ela chorou as luas,
para encanto da plateia circundante!
Não só uma, como duas,
a cheia e a minguante.
E a luz serena que emanou no mesmo instante,
contínua, cálida, envolvente,
tornou todo desespero caos culto de antes
em uma plenitude jamais experimentada.
E porque nessas horas não cabe mais nada,
ninguém reparou o sumiço da moça,
desfez-se em noite e lágrimas escuras,
restando ao chão apenas uma enorme poça,
espelhando um impossível céu de duas luas.

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Adriano Dias - na página 'Semema'

terça-feira, 2 de junho de 2015

Você está...- Cátia Rodrigues em 'Obvious'



Você está sozinho nessa e tudo bem...
Cátia Rodrigues - em 'Obvious - sociedade'
(...)
Acontece que nascer significa, quase que imediatamente, se desvincular da mãe, daquela unidade que com ela fomos desde o início da nossa formação fetal. Ao nascer, ficamos sozinhos. E isso se dá no plano mais concreto possível: o que nos liga ao outro é cortado e dispensado. E ainda por cima nos deixa um buraquinho na barriga.
(...)
Mas não tem jeito: a partir do dia em que nascemos, vamos sistematicamente nos desligando da única pessoa com quem realmente temos uma ligação palpável. 
E isso dá medo. Uma tremenda angústia. O escuro assusta. A ausência apavora. A solidão parece que nos mata. 
E choramos. E somos confortados pela mãe e outros amores que a vida vai nos apresentando. E claro que isso é bom. Aprendemos a ser amados e acolhidos.
(...)
Aprendemos também, sem querer, que estar bem é estar com os outros, é estar acompanhado, é ser aceito. E acabamos por fazer loucuras para nos sentir incluídos em grupos e meios que nem de longe servem à nossa singularidade. A qualquer preço, "alguém fica aqui, junto comigo, por favor": só para não lidarmos com a tal vilã do mal, a solidão. Acabamos por aprender, subjetivamente, que o amor vem do outro, e que estar só é sinônimo de abandono. E isso é uma ilusão que nos aterroriza vida afora, sem razão. Ficamos a sentir o mal estar no meio da multidão, sem saber o motivo ou a solução.
(...)
A necessidade de nos relacionar existe, mas como troca e aprendizado, reconhecimento existencial para manter o equilíbrio mental e, apesar de muitas vezes ser um delicioso prazer, a convivência humana não tem mais a função de nos assegurar segurança e sobrevivência.
A real é que na vida somos todos sozinhos, mas podemos estar acompanhados e acompanhando muitas pessoas nos diferentes momentos da vida. Por escolha, sem medo de estar bem só consigo mesmo. 
O “buraco” na barriga, que não é só o umbigo, se chama angústia. E ela é bonita na sua essência, e tem importância para nossa existência. 
A angústia nos mobiliza, nos indica que algumas acomodações feitas pelo caminho estão com o prazo de validade expirado. 
E, do mesmo lugar de onde ela pulsa de dentro de nós, emerge também a nossa criatividade, a intuição e a subjetividade que nos tornam únicos.
Não vale a pena tapar esse buraco na alma. 
Mas só podemos mergulhar e desfrutar da sua beleza quando aprendemos a nadar na imensidão do amor – não o amor do outro, mas aquele amor que temos dentro de nós para nós mesmos, no prazer da própria companhia. 
Descobrir que ser sozinho não é sinônimo de estar sozinho, e que na solitude da própria existência somos plenos, transcendemos em direção ao Sagrado. 
É nessa hora que percebemos um dos grandes tesouros da vida: podemos estar com os outros, mas sempre somos só "eu mesmo" - e isso é o suficiente para se viver.


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