Por trás dos Contos de Fadas
Nicole Ayres Luz - em 'Homo Literatus
Em sua origem, os contos de fadas eram bem sombrios, nada muito semelhante aos contos de fadas atuais, como vemos nas adaptações cinematográficas
Se pensamos em contos de fadas hoje em dia, lembramos basicamente das adaptações da Disney, mas as origens do gênero são bem mais sombrias.
Se passar fome ou ser atacado por animais na floresta parecem ameaças distantes para nós, antigamente eram situações que faziam parte da realidade cotidiana.
Na verdade, as histórias não eram voltadas para o público infantil.
Apenas no século XVII, com a coletânea de Charles Perrault, estabeleceu-se o gênero literário, baseado em lendas da tradição europeia.
No século XIX, os irmãos Grimm e Hans Christian Andersen fizeram novas versões. Essas são as fontes mais conhecidas.
Já havia então o conceito de família burguesa, em que as crianças seriam mais protegidas, teriam seu espaço na sociedade.
O contexto social muda gradativamente, e com isso certas versões prevalecem ou se modificam.
Cada vez mais houve uma amenização da crueldade dominante nas lendas originais.
Na atualidade, também é muito comum que se trabalhem sátiras, como Shrek, que desmistificam o próprio gênero.
Normalmente, o primeiro contato com a ficção se faz através dos contos de fadas.
Numa fase da vida em que a imaginação é guia para a compreensão da realidade, eles ajudam, por metáforas, a lidar com os conflitos latentes.
Vários estudos psicológicos foram desenvolvidos nesse sentido.
O mais famoso é Psicanálise dos Contos de Fadas, de Bruno Bettelhein.
Uma versão mais atualizada é Fadas no Divã, do casal de brasileiros Mário e Diana Corso, em que são comentadas desde narrativas clássicas, como Cinderela, Rapunzel, João e Maria, até tramas contemporâneas, como Ursinho Pooh, A Turma da Mônica e Harry Potter.
É muito comum que, nos contos de fadas, haja um protagonista criança e vilões encantados, como bruxas e ogros.
Essas criaturas representariam outra faceta dos próprios pais, seu lado controlador e punitivo.
A situação do abandono é bastante comum, como em João e Maria e O Pequeno Polegar.
Isso acaba trabalhando a questão da autonomia da criança, que deve saber como agir sozinha em determinadas situações.
Já quando são adolescentes ou jovens adultos, o desenlace passa a ser amoroso.
Príncipes e princesas devem vencer obstáculos para alcançar seu final feliz, como em Branca de Neve, A Bela e a Fera, Rapunzel.
Esse é o momento em que o jovem deixa a casa dos pais para se casar e formar sua própria família, não sem passar por conflitos diversos.
Enquanto Bruno Bettelhein defende a leitura dos contos originais, o casal Corso acredita que, além de ser difícil de recuperar as verdadeiras fontes, toda forma de ficção é válida como alimento para a imaginação infantil.
As histórias se transformam conforme a época.
Hoje, o maniqueísmo clássico está sendo quebrado com personagens dúbios, híbridos, humanos.
No filme Malévola, o drama da vilã torna-se o mote central, mudando a perspectiva.
Na série Once Upon a Time, os heróis também erram e certos vilões se redimem.
Os caminhos são tortuosos, as escolhas difíceis, por isso os personagens hesitam em determinados momentos. Seu caráter pode ser íntegro, porém não é impecável.
Em um tempo dinâmico, ágil, de informação disponível por vários meios, a criança é estimulada cada vez mais cedo a lidar com as questões complexas da vida.
O importante é que ela não perca sua capacidade criativa, seu jeito diferenciado, fantasioso, poético, de apreender a realidade.
Com isso, os contos de fada continuam cumprindo seu papel.
**
Referências:
CORSO, Diana Lichtenstein; CORSO, Mário. Fadas no Divã – Psicanálise nas Histórias Infantis. Porto Alegre: Artmed, 2006.
FRANCO, Maria Dorothea Barone. Malévola: um outro espaço, uma nova imagem. In: Revista Conhecimento Prático Literatura nº 60. São Paulo: Escala, 2015.
* * *
Nenhum comentário:
Postar um comentário