segunda-feira, 29 de junho de 2015

...a dor dos noticiários - Nara Rúbia Ribeiro

Da página 'Conti outra'

Por que as pessoas buscam a dor dos noticiários?  
Nara Rúbia Ribeiro


Arte naif: Eliete Tordin

Liguei a TV. Algo de medonho havia ocorrido. Dados alarmantes, números bizarros e depoimentos diversos davam notícia de que o futuro havia chegado de mãos dadas com o fim. Tudo pareceu-me desolado. A economia desconsolada, o Judiciário vendido, a democracia vilipendiada. E mortes e insegurança e indignação e desespero… Deus! Quem foi que violentou a alma do mundo para que tudo sangrasse assim,  com tanta força?


Mas eu tive a ousadia de desligar a TV. Eu tive a audácia de não ler jornais. Eu tive o despreparo de andar pela rua e de observar pessoas, coisas e tentar enxergar abstratos.


Uma mãe segurava a mão do filho pequenino e dizia:  – Não, Artur. Depois do “3” não vem já o “5”. Vem o “4”.


Uma senhora sorriu, escorada no umbral da entrada de uma casa, ao perceber a confusão numérica da criança. E prosseguiu observando mãe e filho a sumirem de vista, enquanto acariciava um gato vira-latas que parecia também observar a cena.


Havia flores nos canteiros das casas e crianças uniformizadas, ainda sonolentas, seguiam para a escola. 

Passarinhos povoavam os fios de alta tensão como se a delicadeza desafiasse a força, como se as penas blindassem as suas almas da violência do mundo.
Em meio ao barulho dos automóveis, quem tivesse o ouvido inclinado à beleza poderia ouvir o canto indecifrável desses pássaros.

Um jovem me viu parada a observar essas coisas e perguntou-me: – Você está bem?  A custo compreendi a pergunta, e respondi: – É um bom dia, não é? Ele acenou com a cabeça positivamente, e seguiu caminho.


E vi muitas pessoas sorrindo e contando anedotas. 

Vi um beija-flor meio perdido entre flores de vida e rosas de plástico, mas ele sobreviveu. 
Vi pedrinhas coloridas numa calçada. 
Ouvi o porteiro do prédio a relatar, a um amigo, o desfecho triunfal de sua noite de amor.

E percebi que a ausência da vida é resultante do distanciamento da sua essência. 

Percebi que as verdades poéticas e cotidianas não são notícia. 
Quem quer saber de beija-flores confusos ou de pequenos aprendizes matemáticos? 
Quem quer noticiar a glória de pássaros que desafiam a insensibilidade das almas? 
Quem quer saber de tudo isso se nem sabe que isso existe?

As pessoas necessitam da dor dos noticiários. Necessitam de ver o sangue, a violência, a podridão do mundo porque querem urgente e desesperadamente compreender o que lhes dói. 

Elas precisam saber o que fez do seu peito um oco, um vazio, um vão imensurável e doído. 
Elas precisam saber da origem do nada que as incomoda, o nascedouro do apego ao concreto, a gênese de sua indiferença, a origem do medo generalizado que arrebata o sentido. 
E é isso que o noticiário vende!

Estou farta de ver holofotes plenos à mediocridade dos homens. 

É preciso entender que o Homem é maior do que é. 
É preciso compreender e amar a beleza que germina  em todas as coisas e antever a árvore frondosa e a doçura do fruto. 
É preciso valorar as pequenas delicadezas, as imperceptíveis gentilezas. 
É preciso ver a beleza que existe, talvez ainda embrionária, em cada um. 
É preciso que a alma não se renda à morte vendida nos noticiários, e ainda se mostre rendilhada e rebordada na afeição de pequenos e reiterados gestos.

Por isso eu o convido, hoje, a ter a ousadia de desligar a TV, de desconectar-se das redes sociais que tantas vezes destilam ódio, de não ler jornais. 

Convido a fazer uso do seu wi-fi interior. Da sua antena superior. E conectar-se às belezas que o circundam. Sintonizar-se com o encantamento que paira sobre o inusitado das existências anônimas, das pessoas anônimas, dos objetos e seres desimportantes. Afinal, se essa beleza nos preenche, porque haveríamos de justificar os vazios?

Goiânia, 13 de março de 2015.



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