sexta-feira, 27 de maio de 2016

Romances Distópicos


5 GRANDES ROMANCES DISTÓPICOS
André Benjamim (*) - em "Homo Literatus"

Origem da palavra «distopia» e uma definição de romance distópico



A palavra distopia e suas derivadas, no sentido aqui utilizado para definir um conjunto diverso de romances, não se encontra na maioria dos dicionários, tanto da língua inglesa (onde foi utilizada primeiramente) como das línguas latinas. 
Em português distopia é um substantivo feminino, da área da medicina, que significa localização anómala de um órgão. 
O prefixo dis - quando derivado do latim, dis é um elemento de composição que exprime a ideia de separação, dispersão etc. (por exemplo, dissolver, distribuir). 
Pode também exprimir a ideia de dois (dissílabo, dístico). 
Quando derivado do grego antigo dys, o prefixo dis é um elemento de composição que exprime a ideia de dificuldade (dispneia) ou de falta, privação, mau estado (dissimetria, disenteria).

Muitos autores continuam a recusar o uso desta palavra que, entretanto, se generalizou. 
Ela é simultaneamente sinônima e antônima de outra palavra: utopia, sendo portanto uma espécie de palavra anômala. 
Para entendermos o verdadeiro sentido, atentemos no significado de utopia, palavra fabricada com recurso ao grego antigo que literalmente que dizer «não lugar» (ou, não + tópos, lugar): lugar ideal em que tudo estaria organizado da melhor forma para felicidade completa do povo, sendo portanto um sonho, uma quimera,  uma fantasia, uma concepção irrealizável. 
A palavra distopia, ganhando o sentido de anti-utopia, contra-utopia, utopia negativa, ou utopia negra, está para a utopia como o sonho está para o pesadelo, e só através desta última acepção se entende a disseminação da palavra distopia, e a aceitação do seu sentido íntimo.

Um romance distópico é, assim,  aquele que descreve, por antecipação, engenharias sociais que, apoiadas em mecanismos de controlo dos pensamentos, comportamentos, e atitudes, dos seus membros, e em mecanismos de repressão da dissidência, garantem a unanimidade totalitária. 

A ação dos romances distópicos decorre frequentemente em tempos futuros e locais inexistentes, embora possam ter ligação a territórios presentes. 
São criados na maioria das vezes como avisos ou sátiras, tentando demonstrar como as atuais convenções sociais, e a exploração de conhecimentos científicos, extrapolada aos limites, pode conduzir a sociedades castradoras dos indivíduos e da sua humanidade.
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1 – A Máquina do Tempo (1895), de H. G. Wells
A Máquina do Tempo é um livro mais conhecido enquanto obra de ficção científica, mas é também aquilo a que se convencionou chamar romance distópico. 
Publicado em 1895, reflete o pensamento de uma época dominada por profundas transformações científicas, políticas, econômicas e sociais que entre si se potencializavam. 
Era uma época em que as grandes descobertas científicas faziam com que o Homem sonhasse com uma nova sociedade, mais justa, mais igual, mais fraterna, mais confortável. 
Tudo se cria possível, e grandes sonhos nunca concretizados tomaram conta do pensamento daqueles tempos. 
Na literatura e na arte, apareceu depois o movimento denominado Modernismo (pai de todos os -ismos, período fecundo de grandes obras, mas também de imensas catástrofes, pai entre outros de um -ismo que tanta crueldade e mortandade trouxe ao mundo, o fascismo, e outros -ismos não menos mortais). Eram tempos em que se anteviam todas as possibilidades e todos os perigos.



Herbert George Wells, conhecido como H. G. Wells, nasceu em Bromley, localidade do condado de Kent, na Inglaterra, a 21 de Setembro de 1866, no seio de uma família de origens modestas. 
Para conseguir prosseguir os seus estudos, começou a trabalhar cedo, o que mais tarde lhe provocou uma doença pulmonar que o obrigava a uma vida sedentária. 
Para conseguir se sustentar começou a lecionar e a produzir trabalhos didáticos e só depois iniciou a escrita de romances e contos. 
Entre 1895 e 1900 escreveu uma série de romances de ficção científica que lhe trouxeram consagração quase imediata, e que são ainda hoje bem conhecidos, nomeadamente por causa de diversas adaptações cinematográficas: A Máquina do Tempo, A Guerra dos Mundos, O Homem Invisível, e A Ilha do Dr. Moreau
Após obter sucesso com estas obras, passou a dedicar-se a obras com um cunho social e político mais profundo, sobretudo obras de cariz ensaístico, na área da filosofia, história e política, onde defendia as suas teses socialistas e pacifistas, o amor livre, e a união de toda a humanidade, sem critérios de nacionalidade, credo, ou outras.

No âmbito aqui em análise, a parte distópica da obra A Máquina do Tempo, importa-nos a sociedade que o Viajante do Tempo (nunca é dito o seu nome) vai encontrar no ano 802701. 
Ao “estacionar” nesse longínquo ano no futuro, o Viajante do Tempo, vai encontrar uma sociedade que o obrigará a confrontar as suas ideias utópicas com a realidade. 
A sociedade não evoluíra da maneira por si imaginada. 
Após longos séculos a espécie humana encontra-se agora dividida em duas sub-espécies: os Elois e os Morlocks; os primeiros são belas criaturas que andam pela face da terra, despreocupadamente, vivendo o dia-a-dia num estado idealizado de inocência primitiva, vegetarianos, alimentados e vestidos pelos segundos, criaturas horríveis que vivem nas profundezas da terra, num sistema de túneis e indústrias, que saem somente durante o período de lua nova (não suportam qualquer tipo de luz) para caçar os Elois, que são o seu alimento.
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2 – Nós (1924), de Evgueni Zamiatine
Desconhecido durante muitos anos da maioria do público leitor, e até da maior parte dos círculos literários, o romance Nós, do autor russo Evegueni Zamiatine, nascido em Lebedian, a 1 de Fevereiro de 1884, foi escrito em Petrogrado, em 1920, mas o original russo apenas seria publicado na sua língua em 1952, não na então União Soviética, mas em Nova York. 
Na Rússia só seria publicado após a perestroica. 



A primeira edição do livro foi uma tradução inglesa, publicada em Nova York, em 1924; quatro anos depois foi publicada em França um tradução a partir do inglês – e durante muitos anos praticamente desapareceria de circulação e do conhecimento público. 
Evegueni Zamiatine faleceu a 17 de Março de 1931 em Paris, França.

Em Nós não existem indivíduos (Eu), existe apenas a comunidade (Nós); não existem pessoas, não existem cidadãos, existem números. 
D-503, o protagonista e narrador (os capítulos do romance são as entradas do seu diário) é um engenheiro responsável pela construção de uma nave que levará aos habitantes de outros planetas a mensagem da «felicidade matemática e exata». 
Estamos no século XXX, mil anos passaram desde que os «heroicos antepassados submeteram todo o globo terrestre ao domínio do Estado Único». 
Se os hipotéticos habitantes de outros planetas ainda viverem «no estado selvagem de liberdade», e não aceitarem a mensagem, o Estado Único, governado pelo Benfeitor, terá que recorrer às armas, pois considera que «é nosso dever forçá-los a ser felizes

Não há individualidade, portanto também não há privacidade: as casas são feitas de vidro, todos os habitantes são polícias uns dos outros e também não há exclusividade sexual. «O Estado Único levou a cabo uma ofensiva contra o outro dominador do Universo, ou seja, o Amor». 
Trezentos anos após a instauração do Estado Único, o Amor tinha sido «derrotado, isto é, foi organizado, matematizado». E a «Lex Sexualis» foi proclamada: «Qualquer número tem o direito de utilizar qualquer outro número como produto sexual.» 
Ficamos a saber tudo isto nas primeiras páginas do romance, pelo que estas revelações nada revelam da história, do enredo, da forma como tudo isto é operacionalizado. 
Como inspiração para toda a organização social Evegueni Zamiatine utiliza a figura de Frederick Winslow Taylor (Filadélfia, Estados Unidos, 1856-1915, operário e engenheiro que concebeu métodos científicos de estudo e organização do trabalho).

Quem tenha lido Admirável Mundo Novo e Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, não deixará de notar certas semelhanças com Nós, motivo porque se crê que tanto uma obra como a outra terão sofrido a influência desta. Embora ambos fossem anglófonos, crê-se que tanto Aldous Huxley como George Orwell terão tido conhecimento da obra Nós através da tradução francesa, a primeira edição do livro publicada na Europa. Eram ambos conhecedores da língua francesa, como lerão a seguir.
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3 – Admirável Mundo Novo (1931), de Aldous Huxley
Aldous Leonard Huxley nasceu a 26 de Julho de 1894, em Godalming, Inglaterra, no seio de uma família com vários nomes conhecidos na Literatura e na Ciência, acabando por os destronar a todos, sendo hoje o mais conhecido dos Huxley’s; cresceu rodeado de figuras da elite intelectual britânica da época. 
O pai, Leonard Huxley, foi biógrafo e poeta; o avô, Thomas Henry Huxley, o professor que mais influenciou H. G. Wells, foi também um dos cientistas que ajudaram a desenvolver a teoria da evolução. 
Julian Huxley, irmão de Aldous, foi igualmente um escritor (e cientista, e administrador) famoso. Nos primeiros anos da sua carreira de escritor fez amizade com alguns dos mais proeminentes membros do Bloomsbury Group, entre os quais Virginia Woolf, E. M. Forster, e D. H. Lawrence. 
Vive dos pequenos rendimentos, e durante um breve período dá aulas de Francês em Eton, onde já havia sido aluno, e onde foi professor de Eric Arthur Blair, mais tarde mundialmente conhecido pelo seu pseudônimo George Orwell.


Entre 1919, ano em que casa com a belga Maria Nys, e 1931, ano em que publica Admirável Mundo Novo, vai publicando diversas obras menores, pelo menos em termos de sucesso;  tem um filho, o único, Matthew Huxley, viaja por França e Itália, na companhia de D. H. Lawrence, dedica-se à escrita de contos, ensaios, poemas, e peças de teatro. 
Em 1937 muda-se para os Estados Unidos, onde passa a década seguinte vivendo da escrita de roteiros para cinema – adaptou, entre outros, a obra Orgulho e Preconceito, de Jane Austen, em 1940. 

No final dos anos 40 e anos 50 inicia um novo período da sua vida, em que experimenta diversas drogas da moda naqueles anos, como LSD e mescalina; sob influência destas escreve três livros: As Portas da Percepção (1954, romance a que a banda The Doors deve o seu nome – o título do livro foi retirado de um verso de William Blake: "Se as portas da percepção fossem purificadas, tudo surgiria aos olhos do homem tal como é, infinito."), Céu e Inferno (1956), e Ilha (1962). 
Abandona as drogas e dedica os últimos anos da sua vida ao pacifismo e misticismo, vindo a morrer a 22 de Novembro de 1963, em Los Angeles, Estados Unidos.

A sociedade descrita em Admirável Mundo Novo (Huxley inspirou-se na peça A Tempestade, acto V, cena I, de William Shakespeare: O, wonder! / How namy goodly creatures are there here! / How beauteous mankind is! O brave new world, / That hath such people in’t!). 
Hoje,  o romance huxleyano que melhor sobreviveu à passagem do tempo, está organizado num Estado Mundial, assente em três divisas: Comunidade, Identidade, e Estabilidade. 
Aquilo que aparentemente é um paraíso, é na verdade um inferno onde o Homem foi desumanizado. A ciência, a tecnologia, e a organização social ao invés de estarem ao serviço do ser humano, escravizaram-no, sem que o Homem tenha consciência disso.

Vive-se o ano 632 A. F. (After Ford, Depois de Ford, depois do lançamento do primeiro modelo do Ford T, a 1 de Outubro de 1908, do industrial, pensador, e empresário Americano Henry Ford, 1863-1947, produzido em série, o primeiro empresário a aplicar as teorias de Taylor em grande escala), que corresponde ao ano 2540 da nossa era. 
O Homem é produzido em série, consoante as necessidades, dividido em cinco castas: alfas, betas, gamas, deltas, e ipsilões. 
O Homem é produzido numa escala que vai daqueles destinados aos mais importantes cargos e trabalhos de índole intelectual (alfas) até àqueles destinados a trabalhos estritamente braçais (ipsilões). 
Nesta produção industrial em massa do novo ser humano, este é selecionado e condicionado de maneira a «fazer amar às pessoas o destino social a que não podem escapar
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4 – 1984 (1949), de George Orwell
George Orwell (pseudônimo de Eric Arthur Blair) nasceu em 1903 em Bengala, Índia, no seio de uma família indo-britânica, estudou em Eton e, depois de concluídos os estudos, ingressou na polícia indiana imperial, na Birmânia, mas demitiu-se após seis anos, num momento em que havia adoecido. Desde então viveu dos seus trabalho jornalísticos e literários.


 
Os seus primeiros trabalhos literários, e diversas obras e ensaios posteriores, refletem as suas experiências biográficas: Os Dias da Birmânia, sobre os seus anos enquanto ao serviço da polícia colonial; Na Pior em Paris e Londres, sobre períodos de miséria que terá vivido nestas cidades, após o regresso à Europa; Homenagem à Catalunha, sobre a guerra civil espanhola, em que lutou ao lado dos Republicanos, e de que saiu gravemente ferido.

Em 1984, a sua última obra, publicada em 1949, um ano antes da sua morte precoce, vítima de tuberculose, vive-se num estado totalitário, onipresente e onipotente, controlado pelos princípios do Socing (socialismo inglês) pelos quais se rege o Partido; ninguém nem nenhuma atividade escapa ao controle do Grande Irmão (Big Brother): O Grande Irmão está a ver-te, através de um aparelho semelhante a uma televisão, que permite fazer a propaganda do partido e controlar as atividades dos cidadãos. 
O mundo encontra-se dividido em três blocos, ou super-estados: a Oceânia (cuja capital é Londres, onde decorre a ação), Eurásia, e Lestásia
A Oceânia está sempre em guerra, ora com a Lestásia, ora com a Eurásia; se está em guerra com um, está aliada a outro.

Sempre que o “parceiro” de guerra muda, todos os registros passados e presentes mudam, os jornais são reescritos, os livros são reescritos, a História é reescrita; se, por exemplo, estiver em guerra com a Lestásia, então sempre esteve em guerra com a Lestásia. 
A História é, assim, um eterno presente, que retira ao Homem a capacidade de reflexão sobre o mundo. 
Outro mecanismo para diminuir e controlar a capacidade de reflexão do Homem é a chamada Novilíngua – uma língua falada por todos, derivada do Inglês, ao qual vão sendo tirado todos os dias centenas ou milhares de palavras, com o objectivo de diminuir a capacidade de pensar. 
É responsável por estas atividades o Ministério da Verdade (Minivero, em Novilíngua)
Além do Ministério da Verdade, existem outros três Ministérios, que abaixo do Grande Irmão, na hierarquia desta sociedade, a controlam totalmente: «O Ministério da Paz, que se ocupava da guerra. O Ministério do Amor, que garantia a lei e a ordem. E o Ministério da Riqueza, responsável pelos assuntos econômicos». Minipax, Minamor, Minirico, em Novilíngua.

1984 - Toda a sociedade é regida pelos três slogans, ou lemas, do Partido: Guerra é Paz; Liberdade é Escravidão; Ignorância é Força
As atividades de todos os cidadãos são controladas pelos mecanismos de vigilância do Grande Irmão, pelos próprios cidadãos, que se controlam uns aos outros, individualmente ou organizados em patrulhas; porém, a mais importante das forças de vigilância é a Polícia do Pensamento
Controlando o pensamento, controla-se quase tudo. Além destas divisões, a sociedade encontra-se ainda dividida entre aqueles que pertencem ao Partido e os Proles
Dentro do Partido há ainda aqueles que pertencem ao Partido Interno (os que têm funções de maiores poderes e responsabilidades).

É nesta sociedade que Winston Smith começa a escrever um diário, à semelhança de D-503 em Nós, embora em 1984 Winston não seja o narrador. 
O diário é aqui mais simbólico, mostra o poder do objeto-livro, enquanto receptor e transmissor de ideias, enquanto objeto que dialoga com os outros e com o próprio autor, permitindo alargar o campo do pensamento. 
Qual o real significado desta obra? Um aviso contra as ameaças do Stalinismo, um aviso contra as ameaças que vinham do caminho que a política britânica estava a seguir? O Grande Irmão é uma projeção de Winston Churchill? O Socing (socialismo inglês) é uma crítica às políticas socialistas de Churchill? 
Muitos livros e muitas teorias já foram escritas e defendidas, desde a publicação da obra até aos nossos dias. 
Orwell, que morreu pouco tempo depois de a ter publicado, agastado com tão diversas interpretações, ao gosto das ideias, ideais, e quadrante político dos autores, veio a público defender que 1984 era uma sátira, e não uma profecia. 
A sua preocupação seria falar sobre a o confronto latente entre a Rússia e o Ocidente, que estava a tornar estas duas sociedades totalitárias e autistas uma em relação à outra. 
Profecia, ou não, muito do que escreveu Orwell mantém-se perigosamente atual, como aviso.
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5 – Farenheit 451 (1953), de Ray Bradbury
Ray Bradbury é mundialmente conhecido como autor de ficção científica, rótulo que inicialmente começou por desdenhar e recusar, pois queria que as suas obras fossem entendidas no mesmo sentido que eram as de Aldous Huxley ou George Orwell. 
Queixava-se ao seu editor que também as obras destes autores eram de ficção científica e ninguém lhes colocava este rótulo; além demais, considerava que assim entendidas, as suas obras teriam menos possibilidade de sucesso comercial e de serem tomadas a sério no plano da qualidade literária. Nasceu a 22 de Agosto de 1920 em Waukehan, Illinois, Estados Unidos, e faleceu a 6 de Junho de 2012, em Los Angeles, Califórnia.



As suas obras mais conhecidas, além de Farenheit 451, são, entre outras, As Crónicas Marcianas, Uma Sombra Passou Por Aqui, O Homem Ilustrado, ou A Cidade Inteira Dorme
Na sua atividade de escritor, Bradbury escreveu romances, contos, peças de teatro, peças para rádio e televisão, poesia, literatura infantil e também roteiros para cinema, atividade que lhe valeu o Óscar em 1956, pela adaptação da obra Moby Dick, de Hermann Melville. 
Tentou também, embora sem grande sucesso, tanto junto da crítica, como dos seus habituais leitores e dos leitores do gênero, o romance policial, com A Morte é Um Negócio Solitário.

Fahrenheit 451 apresenta-nos uma sociedade futura em que todos os livros serão queimados, atividade pela qual são responsáveis os “bombeiros” que não são mais chamados para apagar fogos mas para os atear. 
Guy Montag, o personagem principal, é um desses bombeiros; ao longo do tempo vai guardando exemplares para si, mas nunca ganha coragem para os ler, o que o poderia denunciar. 

Escrito nos primeiros anos da Guerra Fria, a obra é uma crítica à sociedade americana, que Ray Bradbury entendia que estava cada vez mais disfuncional. Nesta sociedade onde os livros são proibidos, as opiniões próprias são consideradas anti-sociais e hedonistas. Acabar com os livros é uma forma de suprimir o pensamento crítico. 
O título, Fahrenheit 451, refere-se à temperatura a que o papel (os livros) incendeiam.

Como todas as obras do gênero, Fahrenheit 451 foi submetido a diversas interpretações ao longo dos anos, porém focadas na ideia que a queima (proibição) de livros conduz à supressão de ideias dissidentes. Esta foi, aliás, ao longo da história da humanidade uma das formas pela qual as classes dominantes tentaram submeter as dominadas aos seus valores. 
Pense-se, por exemplo, no Santo Ofício (Inquisição) que além de queimar pessoas!, queimava livros (e os proibia, através do Index Librorum Prohibitorum), nas queimas de livros levadas a público por Hitler e os seus seguidores durante o período do Nazismo, na Alemanha e nos territórios ocupados, na censura que existe e existiu ao longo da história em diversos locais, e sob diversos regimes, ou na proibição da impressão de livros, por parte de Portugal, no Brasil, ou por parte de Inglaterra, nas colônias americanas. 
Sobre a obra, Bradbury declarou que foi escrita como uma declaração de amor aos livros e às bibliotecas, e que não era sua intenção tratar da censura, mas da forma como a televisão destruía o interesse na leitura. 
Não sendo um livro extenso, não direi mais sobre o enredo em si, pois incorria no risco de dizer tudo.
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Outras obras distópicas
Quem tenha interesse na leitura de obras distópicas (e utópicas) encontra diversos títulos, muitos no âmbito da ficção científica, mas não só. 
Entre as muitas existentes, destaco O Presidente Negro, de Monteiro Lobato, A Revolução dos Bichos, também de George Orwell, O Zero e o Infinito, de Arthur Koestler, Laranja Mecânica, de Anthony Burguess, O Almoço Nu, de William Burroughs, O Planeta dos Macacos, de Pierre Boulle, as obras de Philip K. Dick, J.G. Ballard, William Gibson, ou Neal Stephenson, por exemplo. 

Aldous Huxley e H. G. Wells, escreveram outras obras, que não sendo negativas, ou tão negativas, são consideradas utopias, mas ainda assim tão ou mais interessantes.


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(*) André Benjamim
Escritor, Poeta, Blogger, Sonhador. Licenciado em Psicologia das Organizações (Coimbra, Portugal). Tem vagueado pelo mundo, à procura de um cais, ou uma casa, ou qualquer coisa, que um dia talvez encontre - ou descubra - por sorte, azar, ou ironia do destino. Apenas sabe que ainda não chegou. «Sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam.»

terça-feira, 24 de maio de 2016

60 anos de "Grande Sertão: Veredas"

2016: 60 anos de Grande Sertão: Veredas, 
de João Guimarães Rosa



1956-2016: 60 anos da obra Grande Sertão:Veredas, lançado em maio de 1956, é o único romance escrito por João Guimarães Rosa, publicado no mesmo ano da obra "Corpo de Baile".

E nele há de tudo como afirma o professor e crítico literário Antônio Cândido: "Grande sertão: veredas é desses livros inesgotáveis, que podem ser lidos como se fossem uma porção de coisas: romance de aventuras, análise da paixão amorosa, retrato original do sertão brasileiro, invenção de um espaço quase mítico, chamada à realidade, fuga da realidade, reflexão sobre o destino do homem, expressão de angústia metafísica, movimento imponderável de carretilha entre real e fantástico e assim por diante."

Grande Sertão: Veredas obra-prima, traduzida para muitas línguas, é uma narrativa em que a experiência de vida e de texto fundem-se numa obra fascinante, permanentemente desafiadora. 
O romance constrói-se como uma longa narrativa oral. 

Riobaldo, um velho fazendeiro, ex-jagunço, conta sua experiência de vida a um interlocutor, que jamais tem a palavra e cuja fala é apenas sugerida. 
Conta histórias de vingança, seus amores, perseguições, lutas pelos sertão de Minas, Goiás, e sul da Bahia, tudo isso entremeado de reflexões. 

 “Conhecê-lo assim como ler e reler suas obras, foi um dos grandes privilégios de minha vida. Quem tem hábito de leitura e ainda não leu Guimarães Rosa não sabe o que está perdendo.
- José Mindlin – Bibliófilo, in: Revista da Cultura nº 12 - julho 2008.
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ALGUNS AFORISMOS EM "GRANDE SERTÃO: VEREDAS"

"O senhor vê: o remôo do vento nas palmas dos buritis todos, quando é ameaço de tempestade. Alguém esquece isso? O vento é verde. Aí, no intervalo, o senhor pega o silêncio põe no colo." 


"De qualquer pano de mato, de de-entre quase cada encostar de duas folhas, saíam em giro as todas as cores de borboletas. Como não se viu, aqui se vê. Porque, nos gerais, a mesma raça de borboletas, que em outras partes é trivial regular – cá cresce, vira muito maior, e com mais brilho, se sabe; acho que é do seco do ar, do limpo, desta luz enorme. Beiras nascentes do Urucuia, ali o povi canta altinho."


"Calados. Me alembro, ah. Os sapos. Sapo tirava saco de sua voz, vozes de osga, idosas. Eu olhava para a beira do rego. A ramagem toda do agrião – o senhor conhece – às horas dá de si uma luz, nessas escuridões: folha a folha, um fosforém – agrião acende de si, feito eletricidade. E eu tinha medo. Medo em alma."


"E nisto, que conto ao senhor, se vê o sertão do mundo. Que Deus existe, sim, devagarinho, depressa. Ele existe – mas quase só por intermédio da ação das pessoas: de bons e maus. Coisas imensas no mundo. O grande-sertão é a forte arma. Deus é um gatilho?" 


“Noite é p’ra surpresas de estratagemas, noite é de bicho no usável...”


“Vender sua própria alma... Invencionice falsa! E, alma, o que é? Alma tem de ser coisa inteira supremada, muito mais do de dentro, e é só, do que um se pensa: ah, alma absoluta! Decisão de vender alma é afoitez vadia, fantasiado de momento, não tem a obediência legal."


“Só outro silêncio. O senhor sabe o que o silêncio é? É a gente mesmo, demais.”


João Guimarães Rosa entre os Vaqueiros em Expedição pelo
Sertão das Gerais - foto Eugênio Silva - Revista 'O Cruzeiro'  1952.

RELEMBRANDO ALGUMAS CRÍTICAS A OBRA

"A experiência documentária de Guimarães Rosa, a observação da vida sertaneja, a paixão pela coisa e o nome da coisa, a capacidade de entrar na psicologia do rústico - tudo se transformou em significado universal graças à invenção, que subtrai o livro da matriz regional, para fazê-lo exprimir os grandes lugares-comuns, sem os quais a arte não sobrevive: dor, júbilo, ódio, amor, morte, para cuja órbita nos arrasta a cada instante, mostrando que o pitoresco é acessório, e na verdade, o Sertão é o Mundo.”
- Antônio Cândido

"A raridade com que se entremostra nas seiscentas páginas de Grande Sertão: Veredas valoriza a presença do mar como símbolo cujo sentido não se revela claramente, mas que roça com um largo sopro de poesia trechos de grande intensidade emocional.Romance de rios, romance de afluentes espraiados no sertão, sem saída para o oceano, o mar nele aparece como o grande desconhecido, mistério que se associa à morte, à eternidade, ao fim de tudo, quando a vida deságua no infinito."
- Manoel Cavalcante Proença

"Tenho medo de tentar comparações. Não direi, por isso, que a obra de Guimarães Rosa é a maior da literatura brasileira de todos os tempos. Direi porém que nenhuma outra, de nenhum escritor, me deu até hoje, entre brasileiros, a mesma ideia de tratar-se de criação absolutamente genial."
- Sérgio Buarque de Hollanda

"Guimarães Rosa é épico, em tom maior, caudaloso rio como o São Francisco, amplo painel que trata de temas míticos, místicos e metafísicos que atravessam a literatura desde sempre."
- Affonso Romano de Sant’Anna em entrevista ao IHU On-Line/Unisinos.

"A aliteração é um dos recursos poéticos mais importantes empregados por Guimarães Rosa [...] Ela se estende desde a simples reduplicação de um fonema ou uma sílaba até a repetição de vocábulos ou expressões inteiros (qual e qual) e serve geralmente ao propósito de reforçar o conteúdo expressional através da criação de uma atmosfera sugestiva."
- Eduardo Faria Coutinho, 1968.
Guimarães Rosa, por Felipe Stetani 
(desenho de 2016)
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quarta-feira, 4 de maio de 2016

Sagarana - 70 anos

Carta de G.Rosa conta segredos de Sagarana

A obra 'Sagarana', de João Guimarães Rosa completa,  em 2016, 70 anos.

Carta enviada por Guimarães Rosa ao amigo e também autor João Condé, onde faz relatos inéditos sobre a obra.
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"Prezado João Condé,

Exigiu você que eu escrevesse, manu propria, nos espaços brancos deste seu exemplar de Sagarana, uma explicação, uma confissão, uma conversa, a mais extensa, possível — o imposto João Condé para escritores, enfim. Ora, nem o assunto é simples, nem sei eu bem o que contar. Mirrado pé de couve, seja, o livro fica sendo, no chão do seu autor, uma árvore velha, capaz de transviá-lo e de o fazer andar errado, se tenta alcançar-lhe os fios extremos, no labirinto das raízes. Graças a Deus, tudo é mistério.

Algo, porém, tem de ser dito. Ao autor o que é do autor, mas a João Condé o que é de João Condé.

Assim, pois, em 1937 — um dia, outro dia, outro dia... — quando chegou a hora de o Sagarana ter de ser escrito, pensei muito. Num barquinho, que viria descendo o rio e passaria ao alcance das minhas mãos, eu ia poder colocar o que quisesse. Principalmente, nele poderia embarcar, inteira, no momento, a minha concepção-do-mundo.

Tinha de pensar, igualmente, na palavra “arte”, em tudo o que ela para mim representava, como corpo e como alma; como um daqueles variados caminhos que levam do temporal ao eterno, principalmente.

Já pressentira que o livro, não podendo ser de poemas, teria de ser de novelas. E — sendo meu — uma série de Histórias adultas da Carochinha, portanto.

Rezei, de verdade, para que pudesse esquecer-me, por completo, de que algum dia já tivessem existido septos, limitações, tabiques, preconceitos, a respeito de normas, modas, tendências, escolas literárias, doutrinas, conceitos, atualidades e tradições — no tempo e no espaço. Isso, porque: na panela do pobre, tudo é tempero. E, conforme aquele sábio salmão grego de André Maurois: um rio sem margens é o ideal do peixe. 

Aí, experimentei o meu estilo, como é que estaria. Me agradou. De certo que eu amava a língua. Apenas, não a amo como a mãe severa, mas como a bela amante e companheira. O que eu gostaria de poder fazer (não o que fiz, João Condé!) seria aplicar, no caso, a minha interpretação de uns versos de Paul Éluard: ...“o peixe avança nágua, como um dedo numa luva”... Um ideal: precisão, micromilimétrica.

E riqueza, oh! riqueza... Pelo menos, impiedoso, horror ao lugar-comum; que as chapas são pedaços de carne corrompida, são pecados contra o Espírito Santo, são taperas no território do idioma.

Mas, ainda haveria mais, se possível (sonhar é fácil, João Condé, realizar é que são elas...): além dos estados líquidos e sólidos, por que não tentar trabalhar a língua também em estado gasoso?!

Àquela altura, porém, eu tinha de escolher o terreno onde localizar as minhas histórias. Podia ser Barbacena, Belo Horizonte, o Rio, a China, o arquipélago de Neo-Baratária, o espaço astral, ou, mesmo, o pedaço de Minas Gerais que era mais meu. E foi o que preferi. Porque tinha muitas saudades de lá. Porque conhecia um pouco melhor a terra, a gente, bichos, árvores.

Porque o povo do interior — sem convenções, “poses” — dá melhores personagens de parábolas: lá se veem bem as reações humanas e a ação do destino: lá se vê bem um rio cair na cachoeira ou contornar a montanha, e as grandes árvores estalarem sob o raio, e cada talo do capim humano rebrotar com a chuva ou se estorricar com a seca.

Bem, resumindo: ficou resolvido que o livro se passaria no interior de Minas Gerais. E compor-se-ia de 12 novelas. Aqui, caro Condé, findava a fase de premeditação. Restava agir.

Então, passei horas de dias, fechado no quarto, cantando cantigas sertanejas, dialogando com vaqueiros de velha lembrança, “revendo” paisagens da minha terra, e aboiando para um gado imenso. Quando a máquina esteve pronta, parti. Lembro-me de que foi num domingo, de manhã.

O livro foi escrito — quase todo na cama, a lápis, em cadernos de 100 folhas — em sete meses; sete meses de exaltação, de deslumbramento.

(Depois, repousou durante sete anos; e, em 1945, foi “retrabalhado”, em cinco meses, cinco meses de reflexão e de lucidez).

Lá por novembro, contratei com uma datilógrafa a passagem a limpo. E, a 31 de dezembro de 1937, entreguei o original, às 5 e meia da tarde, na Livraria José Olympio. O título escolhido era “Sezão”; mas, para melhor resguardar o anonimato, pespeguei no cartapácio, à última hora, este rótulo simples: “Contos” (título provisório, a ser substituído) por Viator. Porque eu ia ter de começar longas viagens, logo após.



Como já disse, as histórias eram doze: 

I) — O burrinho pedrês — Peça não profana, mas sugerida por um acontecimento real, passado em minha terra, há muitos anos: o afogamento de um grupo de vaqueiros, num córrego cheio.

II) — A volta do marido pródigo — A menos “pensada” das novelas do Sagarana, a única que foi pensada velozmente, na ponta do lápis. Também, quase não foi manipulada, em 1945.

III) — Duelo — Aqui, tudo aconteceu ao contrário do que ficou dito para a anterior: a história foi meditada e “vivida”, durante um mês, para ser escrita em uma semana, aproximadamente. Contudo, também quase não sofreu retoques em 1945.

IV) — Sarapalha — Desta, da história desta história, pouco me lembro. No livro, será ela, talvez, a de que menos gosto.

V) — Questões de família — História fraca, sincera demais, meio autobiográfica, malrealizada. Foi expelida do livro e definitivamente destruída.

VI) — (Uma história de amor — Um belo tema, que não consegui desenvolver razoavelmente. Teve o mesmo destino da novela anterior).

VII) — Minha gente — Por causa de uma gripe, talvez, foi escrita molemente, com uma pachorra e um descansado de espírito, que o autor não poderia ter, ao escrever as demais.

VIII) — Conversa de bois — Aqui, houve fenômeno interessante, o único caso, neste livro, de mediunismo puro. Eu planejara escrever um conto de carro-de-bois com o carro, os bois, o guia e o carreiro. Penosamente, urdi o enredo, e, um sábado, fui dormir, contente, disposto a pôr em caderno, no domingo, a história (n. 1). Mas, no domingo caiu-me do ou no crânio, prontinha, espécie de Minerva, outra história (n. 2) — também com carro, bois, carreiro e guia — totalmente diferente da da véspera. Não hesitei: escrevi-a, logo, e me esqueci da outra, da anterior. Em 1945, sofreu grandes retoques, mas nada recebeu da versão pré-histórica, que fora definitivamente sacrificada.

IX) — Bicho mau — Deixou de figurar no Sagarana, porque não tem parentesco profundo com as nove histórias deste, com as quais se amadrinhara, apenas, por pertencer à mesma época e à mesma zona. Seu sentido é outro. Ficou guardada para outro livro de novelas, já concebido, e que, daqui a alguns anos, talvez seja escrito.

X) — Corpo fechado — Talvez seja a minha predileta. Manuel Fulô foi o personagem que mais conviveu “Humanamente” comigo, e cheguei a desconfiar de que ele pudesse ter uma qualquer espécie de existência. Assim, viveu ele para mim mais umas 3 ou 4 histórias, que não aproveitei no papel, porque não tinham valor de parábolas, não “transcendiam”.

XI) — São Marcos — Demorada para escrever, pois exigia grandes esforços de memória, para a reconstituição de paisagens já muito afundadas. Foi a peça mais trabalhada do livro.

XII) — A hora e vez de Augusto Matraga — História mais séria, de certo modo síntese e chave de todas as outras, não falarei sobre o seu conteúdo. Quanto à forma, representa para mim vitória íntima, pois, desde o começo do livro, o seu estilo era o que eu procurava descobrir.

Por ora, Condé, aqui está o que eu pude relembrar, acerca do Sagarana. Se você quiser, eu poderei contar, mais tarde —, num exemplar da 2ª edição — algumas passagens históricas, ocorridas entre o dia 31 de dezembro de 1937 e a data em que o livro foi entregue à Editora Universal. Serve?

Com o cordial abraço do
Guimarães Rosa"
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Fonte: 'Caderno Prosa, Poesia e Arte' -  Portal vermelho

segunda-feira, 2 de maio de 2016

Das coisas que se vão... - Marcel Camargo

DAS COISAS QUE SE VÃO
 ENQUANTO A GENTE FICA
 Marcel Camargo - em 'Obvious - recortes'


O tempo corre, a vida passa e tudo vai tomando seu rumo, às vezes perto, outras vezes bem longe de nós. Às vezes com duração longa, outras vezes rápido demais.
 E então o próximo vai se tornando distante, o certo fica duvidoso, o que foi intenso se transforma em raridade e o hoje se perde em meio à saudade do ontem e às expectativas do amanhã.

A infância, a adolescência e a juventude vão embora, levando os amigos imaginários, a inocência e a ingenuidade, os sonhos impossíveis, o cheiro de grama molhada.
 Vão-se as paixões, o primeiro beijo, as espinhas, os cabelos nos ombros.
 Os ideais, o espírito rebelde da liberdade a qualquer preço, as contestações frente ao mundo em que não nos encaixamos.
As pessoas vão embora, enquanto amargamos as decepções amorosas, as traições de quem colocamos na frente de todos, o fim de várias certezas que achávamos inabaláveis.
 E se vão os empregos, a estabilidade, o equilíbrio emocional, a paciência, a vontade de mudar o mundo, o desejo das coisas para ontem, o desfrute descompromissado do aqui e agora.

Os avós, os pais, familiares, muitas pessoas especiais se vão, aos poucos ou repentinamente, colocando-nos frente a frente com a inevitabilidade da morte, trazendo a dor diante da conscientização acerca da finitude das coisas e das pessoas. E acabam levando junto o porto-seguro, nosso lar, para onde podíamos voltar, mesmo que em pensamento, para que nos sentíssemos mais seguros quando dos tombos que a vida dá.

Os filhos partem, criam asas, viram gente e saem de casa, às vezes de uma maneira nada amigável, outras vezes com relutância e medo, mas têm de ir; não existe outro jeito.
 Junto com eles, vão-se as presenças constantes, o controle que já nem se tinha de verdade, o bom dia mal-humorado, as esperas ansiosas da maçaneta da porta se abrindo, ao final das madrugadas no fim de semana.

Cabe-nos, portanto, reter em nós o melhor de tudo o que já fez parte de nossas vidas, usando as lembranças em nosso favor, como bálsamo e combustível motivador de nosso seguir em frente.
 Muito se vai enquanto a gente fica.
 Sim, a gente fica menos acompanhado, a gente fica doído, porém bem mais forte, mais vivido, mais experiente, mais humano. Fica à mercê o curso do tempo, das idas e vindas do que fez, faz e sempre fará parte de nós.

É dessa forma, afinal, que nossa vida se torna mais rica, mais mágica, mais digna de ter sido vivida, sofrida e aproveitada em toda dor e alegria que é tão humana, tão nossa, tão doída, tão bela.

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