Esse texto surge a partir da constatação de que as jovens sobrinhas da autora jamais haviam lido Machado de Assis.
Jornal 'O Globo' - seção Prosa & Verso - 17-07-2004
"Corações em fogo e pássaros feridos que sempre renascerão"
Cecília Costa
(...)
É claro que podemos viver sem jamais virar o rosto para o sol, molhar os pés no mar, deixar a chuva escorrer por nossos cabelos, fingir que somos Gene Kelly e chapinhar nas poças, ouvir rouxinóis ou borboletear de asas de beija flores, brincar de carniça ou de roda com as crianças, saber o que é a rouquidão de um Tom Waits, a voz sofrida de Lady Blue, um poema de W.B.Yeats sobre os mortos na Páscoa, os óculos de John Lennon, os olhos hipnóticos de Blavatsky, Diadorim, Riobaldo.
Sim, podemos. Com também podemos morar num buraco e esperar que nossos corpos virem pasto para vermes, deixar de ver as estrelas, os eclipses; as marés a beijarem a areia, as gaivotas a cruzarem o azul, assim como o pássaro de aço criado pelos homens com seu nariz enterrado nas nuvens.
Mas que a vida é muito mais completa e profunda se acompanharmos as descrições feitas pelos grandes escritores das almas em choque, dos amores não correspondidos, das dores de cotovelo, de batalhas incompreensíveis em sua violência e outros acontecimentos bizarros que escapam ao controle da razão, ah, é claro que é.
Muito mais maravilhosa, incomum.
É preciso ler 'Crime e Castigo', 'Os possessos', 'Os irmãos Karamazov', 'O idiota', 'Memória da casa dos mortos', 'Guerra e Paz', e 'Anna Karenina' para entender a condição humana.
E como são complementares as obras do surreal Dostoiewski e do racional Tolstoi. O embate entre o fogo de Dostoiewski e a técnica de Tolstoi é mera aparência. É impossível ler 'Karenina' sem chorar ao final do livro, quando a mãe de Sergio e amante de Vronski se joga nos trilhos de um trem. A fonte de lágrimas que jorra de nosso coração estupidificado pela perda da forte, apaixonada e frágil Anna desce pelo rosto em líquida compaixão. Chorar por Anna lava a alma. É chorar por todas as mulheres torturadas por seus burgueses maridos preocupados apenas com "o que os outros vão falar de nós".
E 'Guerra e paz'... que riqueza de personagens! Que painel da Rússia invadida por Napoleão! Que quadro do orgulhoso corso em sua derrota, causada pela imprevidência diante dos 50 graus abaixo de zero que costumam devastar as estepes russas em todos os invernos.
Existe alguém, por outro lado, maior do que Dostoiewski? Até Thomas Mann tinha medo do epilético vidente. Sua grandeza, numa medida não literária, talvez só se emparelhasse com a de sua mulher, que o ajudou com sua praticidade. Para pagar as dívidas do marido, Anna Grigorievna se fez editora, o que levaria a condessa Tolstoi a pedir sua ajuda. Também Tolstoi era explorado pelos editores.
Dostoiewski, o homem que via o que ninguém via e que carregava o coração nas mãos, tinha a alma viva, queimando em desejos. Mas Tolstoi não foi menor.
Almas mortas na Rússia só as do clássico Gogol. O russo é um pássaro de fogo que ainda voltará a queimar o céu do planeta.
Compre os livros. Leia-os. Empreste-os. Torne a ler...
Só não faça pacto com o diabo.
Nosso gênios russos tinham fé no sangue de Cristo.
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Foi muito prazeroso trazer para cá esse texto - guardado há tanto tempo em folha de papel mesmo - depois da releitura de algumas das obras citadas.