quinta-feira, 2 de agosto de 2012

BRANCA DE NEVE E O CAÇADOR - filme

A rainha má e o terror de envelhecer
Neste conto de fadas para mulheres adultas, uma ruga vale uma alma


Eliane Brum, Revista “Época” 16/06/2012

"Branca de Neve e o Caçador"(Rupert Sanders, 2012), em cartaz nos cinemas, deveria se chamar “Ravenna, a rainha má”. Interpretada pela maravilhosa Charlize Theron, a mãe-madrasta-bruxa da princesa é o mais interessante do filme, assim como as questões tão atuais que ela nos traz.
E a bela Charlize faz uma rainha inesquecível. Para não envelhecer, essa vilã dos contos de fadas ultrapassa todos os limites e quebra todos os interditos.
Uma mulher da era a.CP (antes da cirurgia plástica), Ravenna suga a alma, a juventude e a beleza das adolescentes e devora corações puros, que arranca com suas unhas, enquanto chafurda na amargura.
 (...)

No filme, a rainha má assim é por ter sofrido no passado o abuso de homens que, nas suas palavras, sugaram tudo dela e, quando ela começou a envelhecer e a perder a beleza, a trocaram por uma mais jovem.
Roteiro prosaico de nossos dias, mas tanto na vida real como na ficção soa inconsistente.
Uma desculpa meio esfarrapada para justificar tanta destruição – e autodestruição.
Nestes momentos, em que evoca a suposta sina das mulheres e a suposta voracidade dos homens, a rainha nos constrange com sua superficialidade de almanaque.
Mas não deixa de ser interessante observar que supostamente também seria para o desejo dos homens que as mulheres do nosso tempo se submetem ao inimaginável na tentativa de permanecerem jovens e belas. Será?

Um dos momentos mais interessantes do filme se dá no encontro de Branca de Neve com uma comunidade de mulheres que, para se manterem a salvo da sanha da rainha, fazem marcas no próprio rosto.
Até as crianças têm a face assinalada por cicatrizes sem história.
Numa concepção de beleza em que as marcas da vida estragam o rosto, essas mulheres só podiam sobreviver se arruinassem a beleza – e, com ela, o interesse da rainha.
É, portanto, no olhar da rainha que está o desprezo pelo corpo assinalado pela passagem do tempo – e não (apenas) no olhar dos homens.
É só ao incorporar a recusa em envelhecer que a rainha se torna de fato um objeto.

Alguma semelhança com nossa época? Me parece que toda.
O terror só é terror se houver estranhamento. Estranha-se aquilo que, no fundo, é familiar.
O terror é o conhecido que fingimos desconhecido, é nosso estranho íntimo. Se fosse totalmente estranho, não captaria nossa atenção.
É preciso ser um estranho que ecoa no que estranhamos em nós. Ou um estranho que reconhecemos em nós, mesmo sem jamais admitirmos conscientemente.
Para isso serviram desde sempre os contos de fadas, ao nos dar a possibilidade de lidar com nossos fantasmas e medos através dos personagens, nossos outros arquetípicos.
Nesse sentido, a rainha má é um conto de fadas para mulheres adultas.

É fácil escandalizar-se com a louca obcecada pela juventude que persegue as mais jovens, prontas a desbancá-la em beleza, como uma serial killer gótica.
Mas é menos fácil escandalizar-se com o número cada vez maior de mulheres sem nenhum problema de saúde ou deformação que se submetem a uma cirurgia na tentativa, ao final sempre ilusória, de eliminar as marcas da passagem do tempo.

Para nós tornou-se corriqueiro, mas para alguém de outra cultura ou de outro tempo, soaria como um filme de terror ser apagada por uma anestesia e ser cortada por um bisturi.
Sangue, gordura, fluidos. Tira um naco de um lugar para botar em outro, implanta um corpo estranho em formato de bola no peito, estica a pele do rosto com fio de ouro.
Arrisca-se a morrer, apenas para submeter-se ao padrão estético do momento ou apagar rugas que voltarão mais cedo do que tarde.
Conforme o lugar de onde se olha para essas cenas, hoje banalizadas, é um filme dos mais aterrorizantes.

A diferença, com a rainha má, é que ela deu um jeito de que as outras paguem o preço de sua incapacidade de suportar o envelhecer. Mas só até certo ponto.
Porque nem mesmo a sua mágica é suficiente para eliminar as marcas dentro dela, não há feitiço capaz de apagar o vivido.
E, povoada por memórias que sangram sem a chance de virar cicatrizes, ela naufraga em desgosto, a tal ponto que se torna difícil compreender por que, afinal, ela quer tanto ser jovem e ser bela, se continua tão desgraçadamente infeliz com sua existência.

Como o belo corpo e o belo rosto da rainha má, parece-me que os corpos e os rostos flagelados de hoje são mais para serem olhados do que tocados.
Cortados, manipulados e emendados pelo bisturi do cirurgião, em geral um homem, este corpo não é feito para se fundir com nenhum outro.
É mais um objeto que se oferece como imagem, apenas. Porque o toque sempre deixará uma marca. O toque é sempre um risco.
E, como para a rainha má, para muitas mulheres é melhor não se arriscar a ser alcançada por um outro que verá além do que é dado para ver, verá também as marcas que não podem ser apagadas. E fará outras marcas, que também não poderão ser eliminadas.
Viver, afinal, é ser marcado e marcar.

O corpo e o rosto da rainha má não são para ninguém – nem para si mesma, como ela parece se iludir.
O espelho mágico, aquele que olha e olha para além do que está na sua frente, é um dos grandes achados dessa versão.
Ao ser invocado, ele desprega-se da parede e materializa-se como uma entidade masculina.
Em vez de refletir a imagem externa da rainha, porém, ou lhe mostrar o mundo além do castelo, o espelho dá voz à sua imagem interior, ao avesso da rainha, ao lado de dentro. Vocaliza seus medos mais profundos e, de certo modo, a autoriza a praticar seus crimes, mas é apenas um eco.

É um diálogo consigo mesma – e não com um outro o que acontece nesse momento.
A rainha má, desesperada por beleza e juventude, movida por um desejo que ela diz ser do mundo masculino e não dela, não é refletida nem mesmo pelo espelho. E, sem o olhar de um outro que nos reconheça, não há como se saber.
É assim que ela se perde, porque não há quem a encontre.

É no medo de se perder no outro que a rainha se perde de fato. E, ao tentar matar Branca de Neve, na cena clássica da maçã envenenada, a mãe-madrasta vai desferindo conselhos à filha-enteada. “Você sempre se perde quando se deixa levar pelo amor”.
E então, totalmente perdida, grita como uma louca que não se escuta: “Você tem sorte de morrer antes de envelhecer”.

E fracassa. É claro que fracassa. Nós todos conhecemos o final.


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Um comentário:

  1. Olá, José Maria
    Seu blogue é encantador, honesto, inteligente e agradabilíssimo de se ler. Infelizmente, por problemas de ordem técnica não consegui comentar sua página "Analfabeto Funcional - Tempos e Modos", com a qual concordo inteiramente. Você escreve lindamente e gostaria de adquirir seus livros. Com faço? Obrigada, tamém, por prestigiar este meu bloguinho despretensioso, apesar do título.
    Um grande abraço.
    Sueli

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