quarta-feira, 31 de julho de 2013

ROBSON MARTINS FONTES - O homem sem palavras II

O homem sem palavras - II
Robson Martins Fontes - (no blog 'Caminho Poético')

Caminhou durante horas a ponto de se confundir com a poeira. 
O vento estapeava o seu rosto com a delicada luva do inverno. 
Apenas voltou a si quando sentou no chão e sentiu o peso do mundo nas suas costas. 
Ele era forte, mas sabia que naquele dia nublado a tempestade surgiria depois de suas lágrimas. Olhou ao seu redor e não viu. 
Seus olhos pareciam uma janela de ônibus que foi embaçada com uma chuva momentânea, inesperada. 
Nesse dia ele entardeceu de junto com a noite. 
O fluxo de pessoas que procuram entretenimento noturno tinha aumentado. 
Muitos olhares chegavam até ele, porém ignorou todos, assim como tinha ignorado sua existência até agora. 
Aquele silêncio o colocava em contato consigo. E quanto mais se afundava no silenciar, emergia com voracidade o entendimento sobre si. 
Ele chegou a espantar-se com a própria sombra. Ele era uma projeção de si mesmo. 
Gostava de manipular a imagem que imprimiam sobre ele. Contudo, estava se sentindo muito cansado para continuar, apesar de estar mais leve agora. 
Ele não era poeira. Não mesmo. Poeira costuma impregnar as coisas. Ele não. Era uma nuvem que vivia se desvanecendo. 
Seu único medo era o que ele se convencia de ser depois de deixar de ser. Essa constância o arrepiava. 
Não se importava com as modificações do corpo. Era mais interessado nas mudanças da alma. Esta o inquietava. Sua alma estava tão estreita.


Avistou um bar. As pessoas pareciam felizes. Não. Estavam bêbadas mesmo. 
Não queria se sentir covarde e beber. Porém, logo arrumou uma justificativa: estava frio e ele sentia que precisava se aquecer. Por que não um casaco? 
Ele sentia que naquela noite ele não precisava aquecer o corpo, mas sim a alma.


*            *            *

terça-feira, 30 de julho de 2013

TEL MONT -

De "A louca da biblioteca" - facebook





"Onde está o meu sinônimo na vida?" (CLARICE LISPECTOR) - ouço alguém bradar da cobertura de um prédio da cidade. Uma dúvida me vem à tona: serei eu? serei eu? Mas
meu coração, melindroso, logo me põe no meu devido lugar: serás sempre um atônito antônimo.
Ah, indelicado coração que sempre se esquece de colocar um pouco de mel na ponta de suas flechas...

(Tel Mont)


*            *            *

sexta-feira, 26 de julho de 2013

RACHEL DE QUEIROZ - A arte de ser avó

A arte de ser avó
Rachel de Queiroz

Quarenta anos, quarenta e cinco. Você sente, obscuramente, nos seus ossos, que o tempo passou mais depressa do que esperava. Não lhe incomoda envelhecer, é claro. A velhice tem suas alegrias, as suas compensações - todos dizem isso, embora você pessoalmente, ainda não as tenha descoberto - mas acredita.

Todavia, também obscuramente, também sentida nos seus ossos, às vezes lhe dá aquela nostalgia da mocidade.
Não de amores nem de paixão; a doçura da meia-idade não lhe exige essas efervescências. 
A saudade é de alguma coisa que você tinha e lhe fugiu sutilmente junto com a mocidade. Bracinhos de criança no seu pescoço. Choro de criança. O tumulto da presença infantil ao seu redor. 
Meu Deus, para onde foram as suas crianças? 
Naqueles adultos cheios de problemas, que hoje são seus filhos, que têm sogro e sogra, cônjuge, emprego, apartamento e prestações, você não encontra de modo algum as suas crianças perdidas. São homens e mulheres - não são mais aqueles que você recorda.

E então, um belo dia, sem que lhe fosse imposta nenhuma das agonias da gestação ou do parto, o doutor lhe põe nos braços um menino. Completamente grátis - nisso é que está a maravilha. Sem dores, sem choro, aquela criancinha da sua raça, da qual você morria de saudades, símbolo ou penhor da mocidade perdida. 
Pois aquela criancinha, longe de ser um estranho, é um menino que se lhe é "devolvido". 
E o espantoso é que todos lhe reconhecem o seu direito sobre ele, ou pelo menos o seu direito de o amar com extravagância; ao contrário, causaria escândalo ou decepção, se você não o acolhesse imediatamente com todo aquele amor que há anos se acumulava, desdenhado, no seu coração.

Sim, tenho a certeza de que a vida nos dá os netos para nos compensar de todas as mutilações trazidas pela velhice. 
São amores novos, profundos e felizes, que vêm ocupar aquele lugar vazio, nostálgico, deixado pelos arroubos juvenis.
Aliás, desconfio muito de que netos são melhores que namorados, pois que as violências da mocidade produzem mais lágrimas do que enlevos. 
Se o Doutor Fausto fosse avô, trocaria calmamente dez Margaridas por um neto...

No entanto! Nem tudo são flores no caminho da avó. 
Há, acima de tudo, o entrave maior, a grande rival: a mãe. 
Não importa que ela, em si, seja sua filha. Não deixa por isso de ser a mãe do neto. 
Não importa que ela hipocritamente, ensine a criança a lhe dar beijos e a lhe chamar de "vovozinha" e lhe conte que de noite, às vezes, ele de repente acorda e pergunta por você. 
São lisonjas, nada mais. No fundo ela é rival mesmo. 
Rigorosamente, nas suas posições respectivas, a mãe e a avó representam, em relação ao neto, papéis muito semelhantes ao da esposa e da amante nos triângulos conjugais. 
A mãe tem todas as vantagens da domesticidade e da presença constante. Dorme com ele, dá-lhe banho, veste-o, embala-o de noite. 
Contra si tem a fadiga da rotina, a obrigação de educar e o ônus de castigar.
Já a avó não tem direitos legais, mas oferece a sedução do romance e do imprevisto. 
Mora em outra casa. Traz presentes. Faz coisas não programadas. Leva a passear, "não ralha nunca". Deixa lambuzar de pirulito. Não tem a menor pretensão pedagógica. 
É a confidente das horas de ressentimento, o último recurso dos momentos de opressão, a secreta aliada nas crises de rebeldia. 
Uma noite passada em sua casa é uma deliciosa fuga à rotina, tem todos os encantos de uma aventura. 
Lá não há linha divisória entre o proibido e o permitido, antes uma maravilhosa subversão da disciplina. Dormir sem lavar as mãos, recusar a sopa e comer croquetes, tomar café, mexer na louça, fazer trem com as cadeiras na sala, destruir revistas, derramar água no gato, acender e apagar a luz elétrica mil vezes se quiser - e até fingir que está discando o telefone. Riscar a parede com lápis dizendo que foi sem querer - e ser acreditado!
Fazer má-criação aos gritos e em vez de apanhar ir para os braços do avô, e lá escutar os debates sobre os perigos e os erros da educação moderna...

Sabe-se que, no reino dos céus, o cristão defunto desfruta os mais requintados prazeres da alma. 
Porém não estarão muito acima da alegria de sair de mãos dadas com o seu neto, numa manhã de sol. E olhe que aqui embaixo você ainda tem o direito de sentir orgulho, que aos bem-aventurados será defeso. 
Meu Deus, o olhar das outras avós com seus filhotes magricelas ou obesos, a morrerem de inveja do seu maravilhoso neto!

E quando você vai embalar o neto e ele, tonto de sono, abre um olho, lhe reconhece, sorri e diz "Vó", seu coração estala de felicidade, como pão ao forno.

E o misterioso entendimento que há entre avó e neto, na hora em que a mãe castiga, e ele olha para você, sabendo que, se você não ousa intervir abertamente, pelo menos lhe dá sua incondicional cumplicidade.

Até as coisas negativas se viram em alegrias quando se intrometem entre avó e neto: o bibelô de estimação que se quebrou porque o menino - involuntariamente! - bateu com a bola nele. Está quebrado e remendado, mas enriquecido com preciosas recordações: os cacos na mãozinha, os olhos arregalados, o beicinho pronto para o choro; e depois o sorriso malandro e aliviado porque "ninguém" se zangou, o culpado foi a bola mesma, não foi, vó? 
Era um simples boneco que custou caro. Hoje é relíquia: não tem dinheiro que pague.


*            *            *

quarta-feira, 24 de julho de 2013

FERNANDO PESSOA


Foto: ah...chuva deliciosa!





MIGUEL TORGA - Chove



Chove
Miguel Torga - Coimbra, 1943

Chove uma grossa chuva inesperada
que a tarde não pediu mas agradece.
Chove na rua, já de si molhada
duma vida que é chuva e não parece.

Chove, grossa e constante,
uma paz que há-de ser.
Uma gota invisível e distante
na janela, a escorrer.

*            *            *

segunda-feira, 22 de julho de 2013

MIA COUTO - 'Antes de nascer o mundo' (trechos)

"Antes de Nascer o mundo" (trechos)
Mia Couto

Antônio Emílio Leite Couto nasceu em 5 de Julho de 1955 na cidade da Beira em Moçambique.
Prêmio 'Camões' 2013




(...) A família, a escola, os outros, todos elegem em nós uma centelha promissora, um território em que poderemos brilhar. Uns nasceram para cantar, outros para dançar, outros nasceram simplesmente para serem outros. Eu nasci para estar calado.Minha única vocação é o silêncio. Foi meu pai que me explicou: tenho inclinação para não falar,um talento para apurar silêncios.Escrevo bem, silêncios, no plural. Sim, porque não há um único silêncio. E todo o silêncio é música em estado de gravidez.
Quando me viam, parado e recatado, no meu invisível recanto, eu não estava pasmado. Estava desempenhado, de alma e corpo ocupados: tecia os delicados fios com que se fabrica a quietude. Eu era um afinador de silêncios.
(...)

Ficar devidamente calado requer anos de prática. Em mim, era um dom natural, herança de algum antepassado.Talvez fosse legado de minha mãe, Dona Dordalma, quem podia ter a certeza? De tão calada, ela deixara de existir e nem se notara que já não vivia entre nós, os vigentes viventes.
(...)

Meu pai. A voz dele era tão discreta que parecia apenas uma outra variedade de silêncio.Tossicava e a tosse rouca dele, essa, era uma oculta fala, sem palavras nem gramática.
Ao longe, se entrevia, na janela da casa anexa, uma bruxuleante lamparina. Por certo, meu irmão nos espreitava. Uma culpa me raspava o peito: eu era o escolhido, o único a partilhar proximidades com o nosso eterno progenitor.
(...)

O sonho é uma conversa com os mortos, uma viagem ao país das almas. Mas já não havia nem falecidos nem território das almas.O mundo tinha terminado e o seu final era um desfecho absoluto: a morte sem mortos.O país dos defuntos estava anulado, o reino dos deuses cancelado. Foi assim que, de uma assentada, meu pai falou.
(...)

E ele se ergueu, rangente, para esquentar o café.Os passos eram de embondeiro que vai arrancando as próprias raízes. Olhou o fogo, fez de conta que se mirava num espelho, fechou os olhos e aspirou os perfumosos vapores.
(...)

Uns têm filhos para ficarem mais perto de Deus. Ele se convertera em Deus desde que era meu pai. Assim falou Silvestre Vitalício. E prosseguiu: os falsos tristes, os maus solitários acreditam que os lamentos sobem às alturas.

*          *           *

domingo, 21 de julho de 2013

GRAÇA TAGUTI - 'Revista Bula'

Tristeza é vírus. Tome uma vacina
Graça Taguti -  'Revista Bula', 20 de julho de 2013

Piolho pega, bocejo pega, conjuntivite idem e euforia às vezes nos contagia (sobretudo durante o carnaval). A tristeza também não foge à regra. Ela manda seu recado, em sussurros, dirigido aos desatentos indivíduos deste século. Mas pega mal ficar triste. “Maior caô”, “pagação de mico” entoa a galera lá do alto da exuberância dos seus vinte e poucos anos. Ficar xoxo, amuado, macambúzio, lamuriento não combina com a alegria prozac, nem com a metáfora da cocaína atitudinal, refletida nos tempos modernos.

Sai pra lá urubu, te esconjuro, coisa cinza. Engraçado, né, quando paramos para analisar certas regras e ditames contemporâneos, relativos às sugestões de bom comportamento.

Hoje é proibido ser criança demais. Chegou aos seis anos, foi promovida de garotinha à mocinha. Especialmente se a criança já tiver incorporado o hábito de fazer as unhas aos sábados na manicure. Mãozinhas afoitas, rechonchudas e vaidosas, pertencem à compenetrada mocinha no salão, que muitas vezes troca a boneca pelo tablet ganho recentemente de presente do pai.

Hoje também é proibido envelhecer. Dá a maior deprê, confirma a gíria. Então, se apresse e separe uma grana aí para tratamentos estéticos intermináveis e cirurgias plásticas pagas a perder de vista no crediário das ilusões teimosas.

Aliás, a gente tem que vestir uma espécie de verbo no gerúndio durante nossa existência, de modo a entrar de cabeça neste processo contínuo de “estar sendo” sempre. É exatamente deste jeito: com o passado, o presente e o futuro embutidos neste tempo verbal, no qual deslizamos nossa vida-móvel pelo cotidiano — e tentamos, desesperadamente, congelar as rugas. Condenar a flacidez ao exílio. Uma questão de higiene se manter jovem, vale esclarecer.

As pessoas acham que talvez assim enganem os relógios. Consigam empurrar os desalentos pra bem longe. Os homens também, na atualidade, não escapam a estas crenças, tão assentadas em clínicas de estética afinadas com as demandas viris. Mascaras para peles oleosas, secas, inseguras e até desacreditadas pela ala feminina.

A tristeza, se a gente não ficar de olho, pode virar epidemia (claro que camuflada, debaixo dos tapetes da cordialidade, sociabilidade e comedimentos — posturas sempre exigidas de nós).

Gustave Flaubert, escritor francês do século 19, já advertia sabiamente: “Cuidado com a tristeza. Ela é um vício”.  Jean-Jacques Rousseau, filósofo e escritor suíço do século 18 sublinhou certa vez: “A alma resiste muito mais facilmente às mais vivas dores do que à tristeza prolongada”.

Alguns médicos acreditam na somatização. Afirmam que a tristeza, quando é muito grande, não cabe dentro do corpo e aí vira insônia, depressão, apatia e câncer.

Haverá algum antídoto contra este decadente sentimento? Dizem que o governo começará a distribuir em breve, assim como faz com a vacinação contra a gripe, vacinas contra os soturnos crepúsculos que às vezes atravessam nosso peito.

Os políticos, por sinal, já estão fartos de ver o povo rodeado de #mimimi, fazendo beiço diante das falcatruas em série (de antemão já absolvidas — importa esclarecer — na pia batismal do próprio congresso). Pau que nasce ruim fica torto. O antigo ditado prega mais ou menos isso. Aproveitamos, então, para acrescentar: roubalheira que nasce faceira só se enfeita mais, à custa, por exemplo, dos impostos que nos corroem como ratazanas frente a um gorduroso queijo amarelo.

Mas o povo nem se toca. Engrossa o coro atrás do pobre gigante que, dormindo há séculos em berço esplêndido, tem sido, ultimamente, acordado às sacudidelas. Tudo pelo social.  Deixa te depenar, o gigante resmunga. Entretanto, parece que o povo sozinho já decidiu se despedir da fantasia de palhaço e sair de cara limpa nas ruas. Ou, então, mascarado, quando quer competir com o visual robótico das tropas de choque. Sai pra lá Zé Mané, que os ladrões te pegam no pé.

Vinícius e Tom Jobim, saudosos poetas, também suplicavam em uma de suas canções: “Tristeza, por favor vá embora, minha alma que chora está vendo o meu fim” . A música virou até marchinha de carnaval, amuleto para a alegria e comemoração de novos amores, salpicados de confete e lança-perfume nas noites regadas a folia.

Em 1954, aos 19 anos, a jovem Françoise Sagan, lançava seu primeiro livro: “Bonjour Tristesse” (Bom Dia Tristeza), em Paris, percorrendo as vielas do romance psicológico francês. Inspirada no existencialismo de Sartre e em Simone de Beauvoir, a jovem escritora aderia ao modismo de cultivar uma prosa seca, quase austera, na qual os personagens se deixavam envolver pela solidão.

Mas, voltando à nossa rotina, imagine se, logo ao acordar, você decide oferecer seu abraço à tristeza, com um ensolarado bom dia. Receita quase infalível contra a angústia e outras perebas que ameacem se alojar na sua pele ou invadir seu coração. Uma recepção destas, garantimos, é tiro certeiro contra as sombras. E, melhor que tudo, deixam qualquer vacina no chinelo.


*            *            *

BOM  DIA!

sexta-feira, 19 de julho de 2013

QUINTANA - O último viandante


O Último Viandante
Mário Quintana

Era um caminho que de tão velho, minha filha,
já nem sabia mais aonde ia...
Era um caminho
velhinho,
perdido...
Não havia traços
de passos no dia
em que por acaso o descobri:
pedras e urzes iam cobrindo tudo.
O caminho agonizava, morria
sozinho...
Eu vi...
Porque são os passos que fazem os caminhos!

*            *            *

In: 'A cor do invisível'

segunda-feira, 15 de julho de 2013

"A louca da biblioteca" - linda página no Facebook



SEGUINDO CLARICE, A LISPECTOR

"Escuta: eu te deixo ser, deixa-me ser então." 

Deixo-te estilhaçar o encanto com um sorriso amoroso para a taça de vinho; e tu, deixa-me vadiar pelo teu ser, noturna e fugidia mas em ebulição. 
Deixo-te cobiçar outras peles e perfumes, anonimamente; e tu, deixa-me seguir pelas horas, consciente do perigo mas enfeitiçada, não só pela lua cobrindo o jardim de um prateado suavemente azulado. 
Deixo-te despir-se, mostrar-se, alma tântrica e insuspeita leviandade; e tu, deixa-me apenas saber-te figura clássica sob uma árvore, saboreando felicidades clandestinas, cantata em latim sob a chuva, enquanto eu, desajeitado miosótis, indecifrável sentimento aquecendo-me, alimentando-me e morrendo-me viscontinianamente numa praia italiana, ao pôr-do-sol. 
Eu te deixo ser realidade pura e imperfeita e imprevista e desejada. 
Deixa-me apenas com a flor pagã do meu segredo. 
"O silêncio perfeito de uma flor. Macio como quando se fecha a luz para dormir. E faz o botão da luz um barulhinho que quer dizer: boa noite, meu amor." 
Perdoe-me pelo caos no meu planeta. 

(TEL MONT)


*            *            *

quarta-feira, 10 de julho de 2013

CHICO E VINÍCIUS

Uma preciosidade, um 'achado' da página "A louca da biblioteca", no Facebook.


DE VINÍCIUS DE MORAES PARA CHICO BUARQUE

Chiquérrimo,

Dei uma apertada linda na sua letra, depois que você partiu, porque achei que valia a pena trabalhar mais um pouquinho sobre ela, sobre aqueles hiatos que havia, adicionando duas ou três idéias que tive. Mandei-a em carta a você, mas Toquinho, com a cara mais séria do mundo, me disse que Sérgio [Buarque de Holanda] morava em Buri, 11, e lá se foi a carta para Buri, 11.

Mas, como você me disse no telefone que não tinha recebido, estou mandando outra para ver se você concorda com as modificações feitas.

Claro que a letra é sua, e eu nada mais fiz que dar uma aparafusada geral. Às vezes, o cara de fora vê melhor essas coisas.
Enfim, porra, aí vai ela. Dei-lhe o nome de “Valsa hippie”, porque parece-me que tua letra tem esse elemento hippie que dá um encanto todo moderno à valsa, brasileira e antigona. Que é que você acha? O pessoal aqui, no princípio, estranhou um pouco, mas depois se amarrou na idéia. Escreva logo, dizendo o que você achou.

Um dia ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar
Olhou-a dum jeito mais quente do que comumente costumava olhar
E não falou mal da poesia como mania sua de falar
E nem deixou-a só num canto; pra seu grande espanto disse: vamos nos amar…
Aí ela se recordou do tempo em que saíam para namorar
E pôs seu vestido dourado cheirando a guardado de tanto esperar
Depois os dois deram-se os braços como a gente antiga costumava dar
E cheios de ternura e graça foram para a praça e começaram a bailar…
E logo toda a vizinhança ao som daquela dança foi e despertou
E veio para a praça escura, e muita gente jura que se iluminou
E foram tantos beijos loucos, tantos gritos roucos como não se ouviam mais
Que o mundo compreendeu
E o dia amanheceu em paz.





DE CHICO BUARQUE PARA VINÍCIUS DE MORAES

Caro poeta,

Recebi as duas cartas e fiquei meio embananado. É que eu já estava cantando aquela letra, com hiato e tudo, gostando e me acostumando a ela. Também porque, como você já sabe, o público tem recebido a valsinha com o maior entusiasmo, pedindo bis e tudo. Sem exagero, ela é o ponto alto do show, junto com o “Apesar de você”. Então dá um certo medo de mudar demais. Enfim, a música é sua e a discussão continua aberta. Vou tentar defender, por pontos, a minha opinião. Estude o meu caso, exponha-o a Toquinho e Gesse, e se não gostar foda-se, ou fodo-me eu.

“Valsa hippie” é um título forte. É bonito, mas pode parecer forçação de barra, com tudo que há de hippie por aí. “Valsa hippie” ligado à filosofia hippie como você a ligou, é um título perfeito. Mas hippie, para o grande público, já deixou de ser filosofia para ser a moda pra frente de se usar roupa e cabelo. Aí já não tem nada a ver. 
Pela mesma razão eu prefiro que o nosso personagem xingue ou, mais delicado, maldiga a vida, em vez de falar mal da poesia. 
A sua solução é mais bonita e completa, mas eu acho que ela diminui o efeito do que se segue. Esse homem da primeira estrofe é o anti-hippie”. Acho mesmo que ele nunca soube o que é poesia. É bancário e está com o saco cheio e está sempre mandando sua mulher à merda. Quer dizer, neste dia ele chegou diferente, não maldisse (ou “xingou” mesmo) a vida tanto e convidou-a pra rodar.

“Convidou-a pra rodar” eu gosto muito, poeta, deixa ficar. Rodar que é dar um passeio e é dançar. Depois eu acho que, se ele já for convidando a coitada para amar, perde-se o suspense do vestido no armário e a tesão da trepada final. “Pra seu grande espanto”, você tem razão, é melhor que “para seu espanto”. Só que eu esqueci que ia por itens.

Vamos lá:

Apesar do Orestes (vestido de dourado é lindo) (*), eu gosto muito do som do vestido decotado. É gostoso de cantar vestido decotado. E para ficar dourado, o vestido fica com o acento tendendo para a primeira sílaba. Não chega a ser um acento, mas é quase. Esse verso é, aliás, o que mais agrada, em geral. E eu também gosto do decotado ligado ao “ousar” que ela não queria por causa do marido chato e quadrado. 
Escuta, ô poeta, não leva a mal a minha impertinência, mas você precisava estar aqui para ver como a turma gosta, e o jeito dela gostar dessa valsa, assim à primeira vista. É por isso que estou puxando a sardinha mais para o lado da minha letra, que é mais simplória, do que pelas suas modificações que, enriquecendo os versos, talvez dificultem um pouco a compreensão imediata. 
E essa valsinha tem um apelo popular que nós não suspeitávamos.

Ainda baseado no argumento acima, prefiro o “abraçar” ao “bailar”. Em suma, eu não mexeria na segunda estrofe.

A terceira é a que mais me preocupa. Você está certo quanto ao “o mundo” em vez de “a gente”. Ah, voltando à estrofe anterior, gostei do último verso onde você diz “e cheios de ternura e graça” em vez de “e foram-se cheios de graça”. 
Agora, estou pensando em retomar uma ideia anterior, quando eu pensava em colocá-los em estado de graça. Aproveitando a sua ternura, poderíamos fazer “Em estado de ternura e graça foram para a praça e começaram a se abraçar”. Só tem o probleminha da junção “em-estado”, o “em-e” numa sílaba só. Que é o mesmo problema do “começaram-a”. Mas você mesmo disse que o probleminha desaparece dependendo da maneira de se cantar. E eu tenho cantado “começaram a se abraçar” sem maiores danos. 
Enfim, veja aí o que você acha de tudo isso, desculpe a encheção de saco e responda urgente.

Há um outro problema: o pessoal do MPB-4 está querendo gravar essa valsa na marra. Eu disse que depende de sua autorização e eles estão aqui esperando.

Eu também gostaria de gravar, se o senhor me permitisse, por que deu bolo com o “Apesar de você”, tenho sido perturbado e o disco deixou de ser prensado. Mas deu para tirar um sarro. É claro que não vendeu tanto quanto a “Tonga”, mas a “Banda” vendeu mais que o disco do Toquinho solando “Primavera”. 
Dê um abraço na Gesse, um beijo no Toquinho e peça à Silvana para mandar notícias sobre shows etc. Vou escrever a letra como me parece melhor. 
Veja aí e, se for o caso, enfie-a no ralo da banheira ou noutro buraco que você tiver à mão.




(*) Referência aos versos de Orestes Barbosa em "minha vida era um palco iluminado / eu vivia vestido de dourado..."
*               *               *

segunda-feira, 8 de julho de 2013

BERTOLD BRECHT - Recordação de Marie A.

Recordação de Marie A.
Bertold Brecht

Naquele dia, num mês azul de setembro
Em silêncio, à sombra da ameixeira
Eu a tomei nos braços, amor pálido e
Quieto, como um sonho formoso.

E acima de nós, no belo céu do verão
Havia uma nuvem, que olhei longamente
Era bem alva, estava bem no alto
Ao olhar novamente, desapareceu.

Desde então muitas luas passaram
Mostrando no céu seu alvor
As ameixeiras foram talvez cortadas
E se me perguntas para onde foi o amor
Respondo: Não consigo lembrar.

Mas sim, sei o que queres dizer
Suas feições, porém, para sempre se foram
Sei apenas que naquele dia a beijei.
E mesmo o beijo, já o teria esquecido
Não fosse aquela nuvem no céu

Dela sei e sempre saberei:
Era bem alva, estava bem no alto.
As ameixeiras talvez ainda cresçam
E ela agora deve ter muitos filhos

Mas aquela nuvem cresceu alguns minutos
Ao olhar novamente, desapareceu.

*            *            *

quinta-feira, 4 de julho de 2013

ROBERTO CARLOS - (em francês) - A DISTÂNCIA



C'est fini il fault se dire adieu (A Distância...) - 1982
Roberto Carlos - Erasmo Carlos (versão: P. Saisse)

Quand l'amour n'est déjà plus qu'un feu qui meurt
rien qu'un soleil éteint dans notre coeur
pourquoi chercher des mots
pourquoi mentir
rien ne doit nous retenir
on a plus qu'à partir

C'est fini, il faut se dire adieu
il faut oublier tout ce qui fut nous deux
Une vague est venue effacer
les traces qu'on avait laissé
sur cette plage abandonnée.

Le vent du soir sans rime ni raison
aura demain pour nous d'autres chansons
il va falloir apprendre à oublier
faire comme si jamais, rien n'était arrivé.

C'est fini, il faut se dire adieu
il faut oublier tout ce qui fut nous deux
Une vague est venue effacer
les traces qu'on avait laissé
sur cette plage abandonnée.

Tous ces chemins qui mènent loin de toi
je les prendrais sans trop savoir pourquoi
j'irai chercher ailleurs d'autres refrains
chercher d'autres lendemains
pour cacher mon chagrin.

C'est fini, il faut se dire adieu
il faut oublier tout ce qui fut nous deux
Une vague est venue effacer
les traces qu'on avait laissé
sur cette plage abandonnée.

C'est fini, il faut se dire adieu
il faut oublier tout ce qui fut nous deux
Une vague est venue effacer
les traces qu'on avait laissé
sur cette plage abandonnée.

*        *        *