sábado, 13 de setembro de 2014

CLARICE LISPECTOR - Pertencer

Arte: Hallice
Pertencer
Clarice Lispector 

Um amigo meu, médico, assegurou-me que desde o berço a criança sente o ambiente, a criança quer: nela o ser humano no berço mesmo já começou.
Tenho certeza de que no berço a minha primeira vontade foi a de pertencer. Por motivos que aqui não importam, eu de algum modo devia estar sentindo que não pertencia a nada e a ninguém. 
Nasci de graça.

Se no berço experimentei esta fome humana, ela continua a me acompanhar pela vida afora, como se fosse um destino. A ponto de meu coração se contrair de inveja e desejo quando vejo uma freira: ela pertence a Deus.
Exatamente porque é tão forte em mim a fome de me dar a algo ou a alguém, é que me tornei bastante arisca: tenho medo de revelar de quanto preciso e de como sou pobre. 
Sou, sim. Muito pobre. Só tenho um corpo e uma alma. E preciso de mais do que isso. 
Quem sabe se comecei a escrever tão cedo na vida porque, escrevendo, pele menos eu pertencia um pouco a mim mesma. O que é um fac-símile triste.

Com o tempo, sobretudo os últimos anos, perdi o jeito de ser gente. Não sei mais como se é. 
E uma espécie toda nova de ‘solidão de não pertencer’ começou a me invadir como heras num muro.
Se meu desejo mais antigo é o de pertencer, por que então nunca fiz parte de clubes ou de associações? Porque não é isso o que eu chamo de pertencer. 
O que eu queria, e não posso, é por exemplo que tudo o que me viesse de bom de dentro de mim eu pudesse dar àquilo que eu pertencesse. 
Mesmo minhas alegrias, como são solitárias às vezes. E uma alegria solitária pode se tornar patética. É como ficar com um presente todo embrulhado com papel enfeitado de presente nas mãos ― e não ter a quem dizer: tome, é seu, abra-o! não querendo me ver em situações patéticas e, por uma espécie de contenção, evitando o tom de tragédia, então raramente embrulho com papel de presente os meus sentimentos.

Pertencer não vem apenas de ser fraca e precisar unir-se a algo ou a alguém mais forte. Muitas vezes a vontade intensa de pertencer vem em mim de minha própria força ― eu quero pertencer para que minha força não seja inútil e fortifique uma pessoa ou uma coisa.

Embora eu tenha uma alegria: pertenço, por exemplo, a meu país, e como milhões de outras pessoas sou a ele tão pertencente a ponto de ser brasileira. 
E eu que, muito sinceramente, jamais desejei ou desejaria a popularidade ― sou individualista demais para que eu pudesse suportar a invasão de que uma pessoa popular é vítima ―, eu, que não quero a popularidade, sinto-me no entanto feliz de pertencer à literatura brasileira. Não, não é por orgulho, nem por ambição. Sou feliz de pertencer à literatura brasileira por motivos que não têm a ver com literatura, pois nem ao menos sou uma literata ou uma intelectual. Feliz apenas por ‘fazer parte’.

Quase consigo me visualizar no berço, quase consigo reproduzir em mim a vaga e no entanto premente sensação de precisar pertencer. Por motivos que nem minha mãe nem meu pai podiam controlar, eu nasci e fiquei apenas: nascida.
No entanto fui preparada para ser dada à luz de um modo tão bonito. Minha mãe já estava doente, e, por uma superstição bastante espalhada, acreditava-se que ter um filho curava uma mulher de uma doença. 
Então fui deliberadamente criada: com amor e esperança. Só que não curei minha mãe. E sinto até hoje essa carga de culpa: fizeram-me para uma missão determinada e eu falhei. Como se contassem comigo nas trincheiras de uma guerra e eu tivesse desertado. 
Sei que meus pais me perdoaram por eu ter nascido em vão e tê-los traído na grande esperança. Mas eu, eu não me perdoo. Quereria que simplesmente se tivesse feito um milagre: eu nascer e curar minha mãe. Então, sim: eu teria pertencido a meu pai e a minha mãe. 
Eu nem podia confiar a alguém essa espécie de solidão de não pertencer porque, como desertor, eu tinha o segredo da fuga que por vergonha não podia ser conhecido.

A vida me fez de vez em quando pertencer, como se fosse para me dar a medida do que eu perco não pertencendo. E então eu soube: pertencer é viver. 
Experimentei-o com a sede de quem está no deserto e bebe sôfrego os últimos goles de água de um cantil. E depois a sede volta e é no deserto mesmo que caminho.


*            *            *
Em 'A descoberta do mundo', p.110-111

Nenhum comentário:

Postar um comentário