A gratidão é uma flor sentida,
delicada e bela
André J. Gomes - "Revista Bula", outubro 2014
Numa cidade do interior, dessas que existem para além do tempo, para dentro de uma lembrança, uma cidadela entre o nada e o lugar nenhum, recanto de meia dúzia de vidas onde a beleza mora nas coisas minúsculas e nos gestos simples, uma vila onde a vida se passa no chão, sob as árvores, junto aos bichos e às plantas, ali vive um homem agradecido.
É bom você não esperar muito dele. Não é pessoa de tantas habilidades, não foi capaz de grandes feitos, não realizou amplas obras agrícolas, não construiu famílias centenárias nem inventou mecanismos revolucionários de aproveitamento da água da chuva. É só um homem comum, mas guarda no peito uma rara gratidão.
Todos os dias, de manhã, mas de manhã mesmo, antes do sol chegar, quando as aves cochilam no escuro e o amor se forma em silêncio no sono dos amantes, esse homem pula da cama e caminha até um canteiro simples. Ali, reza uma prece curta e bela, os pés descalços no chão chuviscado de orvalho, e toma emprestadas da terra as rosas de tantas cores que lá esperam cumprir seu destino de flor.
Ele nunca saiu de sua aldeia. Tratou dos pais até o último dia de suas vidas e agora cuida da casa de sua infância e da roseira de sua mãe. Concluiu os estudos primários ali mesmo, em sua cidade que é o mundo, no grupo escolar plantado ao centro da praça, entre árvores e pipoqueiros e bancos de pedra. Aprendeu português, matemática, ciências. Nunca estudou outra língua, não conhece as teorias modernas da administração, não fez carreira em nenhuma empresa importante.
Mas no armazém que tem o nome de sua família, o mesmo em que começou a vida ao lado do pai, entre secos e molhados, trata seus clientes pelo nome e agradece honestamente ao final de cada compra. Sabe os gostos de seus vizinhos, a quem agrada com as alfaces e os almeirões que brotam de sua horta em escandalosa fartura. E com as rosas que nascem insistentes no pequeno jardim de sua mãe, faz um afago às moças que passam na rua. Estranho como só ele, o homem sempre agradece a quem aceita seus regalos.
Todos os dias depois da lida, ele volta para casa caminhando entre o trânsito de velhas bicicletas e carroças à tardinha. Assiste à noite de sua janela, alimenta seus cachorros e, antes de dormir, reza por todas as almas do mundo que ele só sabe de longe, mas a quem sente de perto.
E então, no coração de cada ser humano brota um inalcançável sentimento de gratidão. E é como se cada um de nós, do mais pobre ao mais rico, do mais doente ao mais saudável, do mais humilde ao mais pedante sentisse nascer em seu lá dentro uma flor modesta, de pétalas frágeis e cores simples, esperando ser cuidada. É o nosso sentimento de gratidão à procura do que agradecer, rebelando-se, nos fazendo dizer “obrigado”. É pena, mas estamos desaprendendo a lidar com ele. E lançamos a flor pela janela.
O homem simples da cidade perdida e distante toma em suas mãos as flores que jogamos fora. E em sua bondade simples, cuida de cada uma delas como quem adota uma criança, lhes dá água, limpa-lhes as pequeninas folhas, sopra-lhes o pó. E guarda em seu peito um sentimento que floresce em calma e paz.
No ritmo quieto do crescimento silencioso das plantas, o homem cultiva em sua horta de ternuras a gratidão pela vida e o privilégio de ser dela uma pequena parte, um canto simples de beleza e alegria.
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