Adriano Dias - página 'Semema'
Seja por conta do crescente distanciamento da vida rural, dos processos de produção de tudo que nos cerca e consumimos para sobrevivermos, seja pelo ciclo paranoico de proteção à vida via espetacularização da violência, seja pela onda pornográfica da publicidade das empresas ávidas em lucrar com mais um nicho de mercado (e a lista de forças a essas que se somam é bem mais vasta), estamos vendo brotar uma geração de crianças bajuladas como príncipes indefesos, que guardam a centelha da preciosidade em cada gesto, troféus de seus pais, muito amados em selfies dos aniversários mês a mês de suas vidas, book completo e meias sempre limpas.
E ai de quem ousar agredi-los, insultá-los, incapazes de reconhecer neles o milagre que carregam. Pobres crianças de porcelana…
Nos condomínios da vida urbana
cultivam-se crianças de porcelana
com chips subcutâneos
que quase brincam suas infâncias…
quase crianças
cujos pais correm aos seus encalços
antepondo aos passos
nuvens esterilizadas
e escondem as quinas, os rasgos,
as pontas mais finas,
num mundo de almofadas.
Gerenciada via satélite,
a geração de príncipes-cristais
cresce a sós,
ameaçada pela horda
do resto do mundo,
seus desiguais,
todos nós…
Fiz o poema acima após uma vivência social em que presenciei o desesperado zelo de algumas elegantes mães, com condição econômica para bancar o berço de ouro ao filho (raramente passa-se do primeiro) e o chão e as roupas e ouro salpicado ao seu redor, impedindo cada gesto que saísse o mínimo de sua zona de controle (cerca de 10 centímetros), e cujo pavor dos riscos que os pequenos corriam era legítimo, nada disfarçado. Cada toque na louça dos pequenos parece que produziria uma onda de calafrios na respectiva mãe.
A cena me escandalizou e soube por uma amiga que era comum, era a regra, é a forma como vêm sendo criadas muitas das crianças ricas que ela conhecia: príncipes.
Até porque houve o flagrante: ali estavam crianças crescendo com tapetes sendo colocados aos seus pés, espaguetes de espuma colados às quinas das mesas, assepsia extrema em um mundo alvíssimo. Senti pavor.
Mas vivencio o cotidiano de outras camadas sociais, inclusive da mais baixa (escola pública), onde presencio e ouço relatos de tantas mães que vêm à escola reivindicar a expulsão de um professor por ter cobrado seu filho, dado uma lição de moral por uma conduta indesejada, indisciplinada, por exemplo.
Há poucos dias flagrei o caso de um grupo de mães que se articulavam para tentar exonerar uma professora que chamou seus filhos de “orelhudos”, termo usado sem a intenção de designar “burros” com raiva, mas uma bronca “faceira” para uma turma pela qual a docente tem muito carinho.
Pode-se até questionar a bronca, mas a inversão é grotesca, comprova o paradoxo educacional que estamos vivendo (sem encontrar saída): os pais não têm tempo para educar, ou força moral, tamanho medo em traumatizar os pequenos, pois trabalham e amam demais, portanto, precisam e cobram da escola uma ação formadora que capacite seus bebês, contanto que seus bebês não reclamem maus tratos em casa, o que passou (eles aprendem rápido) a ser qualquer ação do professor, diretor, instituição, que desagrade o pequeno acostumado ao principado.
Quem é que cuida da criança?
Não posso deixar de lado meus conclassistas médios, com nossas contas sempre apertadas que agora ganharam o incremento das necessárias parcelas do estúdio de fotografia e do buffet para a festa infantil, para não ficar de fora do bonde da história, sem falar da obrigatoriedade de seguirmos o crescimento, passo a passo, de cada príncipe pelas mídias sociais.
Parece mesmo que a sociedade está avançando no sentido de aperfeiçoar a forma como os indivíduos crescem em seu seio, como são capacitados, estimulados.
Questionar os modelos estabelecidos e identificar os abusos que vêm ocorrendo ao longo da história é a única forma de progredir na formação humana, que é o fim último da sociedade e suas instituições, mas ainda estamos testando os limites que podem ser mantidos, as balizas que serão usadas para determinar a mais sólida e eficiente educação e formação das crianças.
O custo, certamente, será de uma safra inteira de preciosidades frágeis, cujos corpos não estão podendo desenvolver as próprias defesas assim como suas personalidades.
De um lado, os Pedros, Joões, Marias (nomes que esbanjam uma simplicidade não espelhada na conta dos cartões de crédito), de outro, os Greycyellys Tassianys, Victórias, Sharlennys (nomes que guardam a expectativa do brilho que certamente terão), todos sem anticorpos nem para as bactérias das comidas que caem no chão, nem, pior, para lidar com seus próprios erros, incapacidades e broncas da vida…
* * *
Nenhum comentário:
Postar um comentário