Correspondência inédita de Guimarães Rosa mostra a influência do pai em sua obra
Obra recebeu influência de seu pai, Florduardo, matuto e contador de casos
MARCELO BORTOLOTI - Revista "Época", 25/09/2015 - 08h00
No princípio do século passado, Florduardo Pinto Rosa era o dono de um armazém em Cordisburgo, interior de Minas Gerais. Vendia de arroz e feijão a aguardente e querosene.
O comércio abastecia os tropeiros que passavam pela região.
Atrás do balcão, Seu Fulô, como era conhecido, colecionava as histórias dos viajantes.
Além de comerciante, foi vereador e juiz de paz, celebrou casamentos e mediou conflitos.
Dono de uma coleção de espingardas, regularmente saía para caçadas.
Conhecia muito bem a região e seus tipos humanos.
Teve seis filhos e pretendia que o armazém ficasse sob os cuidados do primogênito, João Guimarães Rosa.
Logo cedo, no entanto, o garoto mostrou aptidão para o estudo.
Aos 9 anos mudou-se para Belo Horizonte, onde foi estudar e morar com o avô, Luis Guimarães, médico e escritor. Abandonou de vez Cordisburgo e o sonho do pai em torná-lo comerciante.
O jovem João passou a mirar a figura erudita do avô e se afastou da trajetória do pai, matuto e contador de histórias.
Formou-se em medicina, aprendeu línguas e tornou-se diplomata.
Morou no Rio de Janeiro, depois na Alemanha e na França.
Tornou-se extremamente culto. Falava francês, inglês, alemão, espanhol, italiano, esperanto e russo.
Guimarães Rosa, escritor, diplomata e poliglota. Ele atribuiu ao pai a “bossa” de sua literatura (Foto: Folhapress) |
Aos 38 anos, João publicou seu primeiro livro de contos, Sagarana.
A obra era uma reaproximação com o universo do pai, o interior que o diplomata deixara para trás.
A partir daí, consagrou-se produzindo uma literatura intimamente conectada ao ambiente que o velho Florduardo conhecia tão bem. E passou a se corresponder intensamente com o pai.
Guimarães Rosa escrevia de longe e tinha pouca intimidade com o sertão que aparece o tempo todo em sua obra. Fez apenas duas viagens pela região e precisava de informantes como Seu Fulô.
A correspondência dos dois, arquivada no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (USP), mostra a bonita relação de um escritor erudito com o pai comerciante que ajudou a construir uma das mais importantes obras da literatura brasileira.
As cartas do escritor para o pai foram publicadas no livro Relembramentos, de Vilma Guimarães Rosa, filha do autor.
Os textos de Florduardo permanecem inéditos no arquivo do instituto. É um interessante passeio por histórias do interior mineiro.
Apesar dos problemas de pontuação e erros de português, Florduardo tinha um estilo muito próprio, engraçado e atraente de escrever.
Encaixava uma história dentro da outra, numa técnica que foi recuperada por seu filho.
Em 1962, Guimarães Rosa escreveu para a mãe: “Gosto muito do jeito dele escrever, de dar notícia de todos. Fico pensando que a minha ‘bossa’ de escritor eu herdei dele, que maneja a pena com tanta facilidade, personalidade, vivacidade e graça”.
Florduardo enviava com receio os textos para o filho já consagrado.
Em 1947, um ano após a publicação de Sagarana, escreveu: “Fico com vergonha de te mandar estas tolices que eu escrevo sempre à noite quando me falta o sono, e que talvez você nem compreenda a minha letra e o mal escrito”.
Mas, diante da insistência do filho, mandava regularmente novas histórias. “Tenho que escrever, não conferir o que escrevi e te mandar logo, pois do contrário eu desanimo e rasgo tudo como já tenho feito muitas vezes”, disse, em 1954.
Guimarães Rosa entre a mãe, Chiquitinha, e o pai, Florduardo. O futuro escritor foi estudar em Belo Horizonte aos 9 anos (Foto: acervo pessoal/livro “Relembramentos”, editora Nova Fronteira) |
Guimarães Rosa lhe pedia histórias de crimes, de personagens curiosos de Cordisburgo, detalhes do trabalho na roça, da fala do povo, do comércio na cidade, das caçadas, dos hábitos dos animais e dos tipos de planta.
Embora sua obra fosse ficcional, os informes ajudavam a compor o cenário.
Os pedidos se intensificaram no começo dos anos 1950, quando Guimarães Rosa escrevia simultaneamente seus dois livros mais importantes: Corpo de baile e o romance Grande sertão: veredas. “Preciso de explorar mais o senhor, que a mina é ótima”, afirmou para o pai.
Para seus livros, Guimarães Rosa trabalhava como um escritor-pesquisador.
Reuniu milhares de páginas com anotações das duas viagens que fez pelo sertão, trechos de livros de filósofos e escritores clássicos, recortes de jornal, guias de botânica e agricultura.
Num caderno específico, transcreveu trechos inteiros das cartas de Florduardo.
“Ele reunia tudo e fazia uma reelaboração da realidade em sua ficção, a marca de todo grande artista”, diz a professora Sandra Vasconcelos, curadora do acervo do escritor na USP.
Todas as cartas enviadas por Florduardo têm anotações e grifos do filho. “Aos poucos, serão, todas elas, aproveitadas nos meus livros”, escreveu o escritor ao pai.
Em julho de 1956, ele enviou a Florduardo um volume do recém-lançado Corpo de baile, com uma carta. Nela, refere-se às contribuições do velho: “Como o senhor não deixará de ter notado, ele está cheio de coisas que o senhor me forneceu naquelas cartas e notas, extremamente valiosas para mim”.
Encontrar a mão de Florduardo nos livros do filho não é um trabalho simples.
Como João reelaborava os textos e unia mais de uma referência na mesma passagem, a relação não é óbvia.
Vilma Guimarães Rosa diz que partiu de uma história do avô, de uma pessoa real que viveu perto de Cordisburgo, a inspiração para a personagem Diadorim, de Grande sertão: veredas.
Mas nos estudos de Guimarães Rosa também aparecem anotações sobre o mito da donzela guerreira, a mulher que se veste de homem para guerrear, recorrente em várias culturas.
O “causo” de Florduardo pode ter se somado à referência clássica. “Meu avô era um grande contador de história. Quando meu pai recebia uma carta dele em Paris era uma festa. Líamos em voz alta e comentávamos”, diz Vilma.
O uso mais direto das informações de Florduardo aparece nas descrições de lugares, plantas e tipos humanos.
O pai forneceu o nome da folha-miúda, planta cujo galho é usado em Grande sertão: veredas para os jagunços assarem carne no espeto.
Da correspondência surgiram nomes de personagens como Sia Cota, do conto “Buriti”, e Juca Saturnino, do conto “O recado do morro” – que inclui também um frade chamado Florduardo.
Tipos reais de Cordisburgo ajudaram na composição dos personagens fictícios de Guimarães Rosa.
A contadora de histórias Dona Geromina, que o pai descreve numa das cartas, parece muito Joana Xaviel, de Uma estória de amor, também de Corpo de baile.
A professora da PUC-Rio Marília Rothier, especialista no autor, identifica ainda a relação entre a descrição do Tio Inocêncio e o comportamento do personagem Catraz, do conto “O recado do morro”.
A maioria dos causos que Florduardo contou nas cartas, no entanto, permaneceu inédita.
Num deles, o pai descreve um costume de famílias pobres da zona rural de Cordisburgo, ao transportar seus mortos para o cemitério.
Os corpos eram colocados em redes suspensas por uma vara que duas pessoas carregavam. O cortejo até a cidade era regado a cachaça. Mas, se o fardo parecesse pesado demais, dizia-se que o morto estava com “pesar de caminhar para a sepultura”.
Colocava-se o cadáver no chão e todos davam nele uma surra de vara. Depois da catarse, a família prosseguia, acreditando ter deixado o cadáver mais leve.
Por vezes, Florduardo era incumbido de organizar um enterro para alguma família que morava longe. Providenciava velas, caixão, padre e atestado de óbito. Como, na época, muitos passavam a vida descalços, Seu Fulô também arrumava sapatos. Buscava em seus estoques calçados encalhados ou fora de moda. Cunhou-se um jargão na região para designar os sapatos fora de uso, o “sapato de defunto”.
Apesar do desejo de aproveitar as anotações do pai em livros futuros, Guimarães Rosa morreu de forma súbita aos 59 anos.
Florduardo vinha lutando contra um câncer na laringe. Morreu três meses depois de perder o filho.
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