terça-feira, 7 de junho de 2016

O fantástico realismo de Murilo Rubião


O centenário de Murilo Rubião
Escritor mineiro, nascido há um século, foi precursor do realismo mágico na literatura brasileira

Alexandre Rosa (*)  Revista 'Cult'


Murilo_site

O homem
Nasceu Murilo Eugênio Rubião a 1º de junho de 1916, na cidade de Silvestre Ferraz (atualmente Carmo de Minas).
Filho de pais também escritores, graduou-se em Direito, na Faculdade de Direito de Minas Gerais, onde se forma em 1942.
 Figura importante entre o círculo de escritores, presidiu por três vezes a Associação Brasileira dos Escritores (secção de Minas Gerais) e foi o vice-presidente do I Congresso Brasileiro de Escritores, pensado para se contrapor à falta de liberdade imposta pelas diretrizes do Estado Novo.

O escritor fez carreira no serviço público, ocupando cargos como o de diretor da rádio Inconfidência Mineira, oficial de gabinete do interventor João Beraldo, e depois do governador Juscelino Kubitschek.
 Organizou o importante suplemento literário do jornal Minas Gerais, onde atuou como diretor, até assumir a direção de publicações da Imprensa Oficial do Estado, último cargo exercido antes da aposentadoria.
Murilo Rubião aparece nas reminiscências de alguns amigos como homem reservado, tímido, de poucas palavras.

O Murilo era um homem tímido, discreto, muito reservado e sempre escondido atrás dos óculos e do bigode, parecia até o homem do poema do Drummond, que ficava atrás da piteira. Murilo fumava muito e usava uma pequena piteira. Gaguejava um pouco, ele baixava um pouco os óculos e olhava, tinha os olhos grandes, era um homem tímido e reservado, falava pouco, mas sempre o que ele dizia era inteligente, irônico, ele gostava de rir, de satirizar as situações.
(depoimento do amigo Ângelo Oswaldo)

O próprio autor traça um Autorretrato, no qual salienta a importância do pai, de quem herdou a intelectualidade, “a timidez e um certo ar cerimonioso, que tem me privado da simpatia de inúmeras pessoas. Algumas delas mulheres, o que é lamentável”; declara seu apego por Belo Horizonte, onde desejou morrer “No cemitério do Bonfim, se não for incômodo para os que me sobreviverem”.

Celibatário e sem crença religiosa. Duas graves lacunas de meu caráter. Alimento, contudo, sólida esperança de me converter ao catolicismo antes que a morte chegue. Muito poderia contar das minhas preferências, da minha solidão, do meu sincero apreço pela espécie humana, da minha persistência em usar pouco cabelo e excessivos bigodes. Mas, o meu maior tédio é ainda falar sobre minha própria pessoa.  (Murilo Rubião. Autorretrato.)

Ao lermos alguns depoimentos sobre o homem Murilo Rubião, ou relatos dele próprio sobre si e sua obra, acabamos reforçando certa impressão melancólica e triste que marca suas narrativas.
 Mas esta é apenas uma das vias de acesso às quais os leitores têm que lançar mão para adentrar nas várias camadas de significação de seus contos, muitos deles quase indevassáveis, como “A casa do girassol vermelho”, “O homem do boné cinzento” e “A noiva da casa azul”.
Faleceu no dia 16 de setembro de 1991.
Hoje, Murilo Rubião ocupa o lugar de precursor de um gênero literário até então sem precedentes em nossa literatura – o realismo mágico, ou fantástico – e há estudiosos que defendem a tese de ter sido ele quem inaugura o gênero na América Latina, antes de Borges, Cortázar e Gabriel García Márquez.

A obra
Algo que impressiona na obra de Murilo Rubião é o seu reduzido tamanho e o trabalho quase obsessivo de reescrever seus textos até a exaustão.
Sua obra completa não chega ao número de quarenta contos.
 Demorou sete anos para conseguir publicar seu primeiro livro, O ex-mágico, em 1947. Antes disso, já era conhecido por escrever “contos estranhos” em jornais e revistas.
 Numa crítica publicada no jornal Folha de Minas, em 1944, Wilson Castelo Branco já chamava atenção para prosa inovadora do escritor mineiro:

            Murilo Rubião já se firmou como contista da moderna literatura nacional. Dispõe de técnica própria, estilo pessoal e temas originais. Está sujeito a estudos de toda a natureza, pois sua obra esparsa e o livro de contos “O dono do arco-íris”, em via de publicação, constituem inegavelmente valores bem sólidos no cenário das Letras Brasileiras.

Não só o livro não saiu como jamais houve publicação de um conto com aquele título.
 Só mesmo em 1947, depois de ser recusado por muitas editoras, conseguiu lançar O ex-mágico, reunindo quinze contos.
Os contos de Murilo Rubião encantaram Mário de Andrade, com quem passou a manter uma relação por cartas.
O autor de Macunaíma se viu maravilhado com as estórias do escritor mineiro – principalmente O ex-mágico – ao mesmo tempo em que sentiu certa dificuldade para caracterizar aquele tipo de escrita, optando por chamar as narrativas de “fantasias”.
Foi Mário de Andrade quem primeiro associou os textos de Rubião com a literatura do escritor tcheco Franz Kafka.

O ex-mágico logo despertou atenção da crítica e de outros escritores.
No mesmo ano de seu lançamento, Sérgio Milliet escreve (com um pé atrás) uma resenha para 'O Estado de S. Paulo' sobre o “livro desigual de Murilo Rubião, hesitante na realização técnica e lembrando por demais as experiências de 22”, dando destaque para o conto que nomeia a obra, uma das melhores realizações do escritor.
            
Um dia dei com os meus cabelos ligeiramente grisalhos, no espelho da Taberna Minhota. A descoberta não me espantou e tampouco me surpreendi ao retirar do bolso o dono do restaurante. Ele sim, perplexo, me perguntou como podia ter feito aquilo.
Murilo Rubião. “O ex-mágico da Taberna Minhota”. In: Obra Completa.
(Companhia das Letras, 2013)

Via de regra é assim que o insólito surge nos contos de Rubião e passa a tomar conta da narrativa, causando no leitor um sentimento no mínimo desconfortável. 
Como assim, retirar do bolso o dono do restaurante?

E o que dizer quando em uma pequena cidade começam a chegar alguns dragões, que rapidamente são absorvidos pelo corpo social e dele começam a participar como se fosse a coisa mais natural desse mundo.

Os primeiros dragões que chegaram na cidade muito sofreram com o atraso dos nossos costumes. Receberam precários ensinamentos e a sua formação moral ficou irremediavelmente comprometida com as absurdas discussões surgidas com a chegada deles no lugar. Apenas as crianças, que brincavam furtivamente com os hóspedes, sabiam que os novos companheiros eram simples dragões. Entretanto, elas não foram ouvidas.
Murilo Rubião. “Os dragões”. In: Obra Completa. (Companhia das Letras, 2013)

Muitos leitores tentaram compreender o tipo de literatura que surgia da pena deste escritor. Novamente surge o nome de Kafka, como no artigo de Álvaro Lins, escrito para o jornal Correio da Manhã, em 1948.

"Não vamos cometer o exagero de proclamar que o sr. Murilo Rubião é o nosso Kafka, mas indicar que esse tipo de ficção, dentro do qual ele se colocou, está representado no plano universal, e de maneira mais perfeita, pela obra de Kafka."

O próprio autor diz que não conhecia Kafka até o momento em que Mário de Andrade o apresentou, além de já ter escrito a maioria dos contos que publicou em 1947, antes de ter lido o escritor tcheco. Confessa que se sentiu deslumbrado com a leitura de 'O processo', e reconheceu em Kafka como que um irmão, “E por acaso!”.

A crítica teve que recorrer a Kafka, como mostrou Davi Arrigucci Jr., principalmente em função de uma completa falta de parâmetros nacionais e latino-americanos para que os estudiosos brasileiros pudessem fundamentar suas observações. 
Até então, nada do que havia sido escrito aqui fornecia subsídios para entender os contos de O ex-mágico
Foi preciso o próprio escritor apresentar suas fontes: as histórias que sua babá lhe contava na infância, a Bíblia e Machado de Assis.

Murilo Rubião diz que em alguns contos, como “Os dragões”, por exemplo, o motivo já existia em sua memória desde a infância, guardado nas reminiscências, das histórias contadas pela babá. 
Os textos bíblicos – o Velho e o Novo Testamento – foram lidos pelo escritor desde a infância, e por toda a vida. 
Todos os seus contos são antecedidos por epígrafes retiradas da Bíblia e tem uma função orgânica junto às estórias narradas, como se fossem as próprias narrativas em miniatura. As relações entre epígrafe e conto foram analisadas por Jorge Schwartz, principal estudioso do autor, no livro Murilo Rubião: a estética do uroboro.

Quanto a Machado de Assis, considerado sua maior e mais direta influência, Murilo Rubião parece ter herdado algumas características, como a sandice existente no universo machadiano – “O delírio” de Brás Cubas e a psicopatologia generalizada da novela O alienista, por exemplo. 
Também uma espécie de ceticismo radical emanado das páginas de Rubião que, aliado a um humor meio sorumbático, meio penumbrista, o narrador muriliano envolve seus personagens. 
No plano da técnica, os dois autores apresentam uma linguagem extremamente policiada, exata, a palavra precisa, onde nada sobra ou falta. 
Existe ainda um espectro melancólico que atravessa a obra de Murilo Rubião do começo ao fim, algo presente em boa parte da obra de Machado. 
Não é demais lembrar que as Memórias Póstumas de Brás Cubas foram escritas “com a pena da galhofa e a tinta da melancolia”.
Alguns personagens de Murilo Rubião são também Narradores Defuntos, como sugere o final do conto “Bárbara”, e na forma através da qual se apresenta o próprio narrador-personagem de seu conto mais famoso, “O pirotécnico Zacarias”:

Em verdade morri, o que vem ao encontro da versão dos que crêem na minha morte. Por outro lado, também não estou morto, pois faço tudo o que antes fazia e, devo dizer, com mais agrado do que anteriormente.
Murilo Rubião. “O pirotécnico Zacarias”. In: Obra Completa.
(Companhia das Letras, 2013)

Depois de O ex-mágico, o autor só volta a lançar outro livro em 1953, A estrela vermelha, mas com apenas três contos inéditos e outros doze “violentamente” reescritos. 
Em 1965, outro livro de Rubião vem a público, Os dragões e outros contos, com apenas cinco contos inéditos e o mesmo procedimento de reescrita dos contos presentes nos dois livros precedentes. 
E o mesmo procedimento volta a acontecer em O pirotécnico Zacarias, O convidado e A casa do girassol vermelho, todos lançados em 1974, reunindo contos reescritos nas coletâneas anteriores.

Este trabalho incessante de reescrever seus textos chamou atenção da crítica e se constitui como fator importante para o entendimento da obra de Rubião, especialmente de alguns contos como “A armadilha”, “A fila” e o “O edifício”, espécie de recriação moderna do mito de Sísifo.
            
Mais de cem anos foram necessários para se terminar as fundações do edifício que, segundo o manifesto da incorporação, teria ilimitado número de andares. […] Batida a última estaca e concluídos os alicerces, o Conselho Superior da Fundação, a quem incumbia a direção-geral do empreendimento, dispensou os técnicos e operários, para, em seguida, recrutar nova equipe de profissionais e artífices.
            Murilo Rubião. “O edifício”. In: Obra Completa. (Companhia das Letras, 2013)

São contos extremamente aflitivos, em que a ideia de finitude da vida parece suspensa, ficando os personagens submetidos ao funcionamento opressivo de uma engrenagem social que despersonaliza o humano. 
O conto termina, mas a sensação é de que os personagens continuarão encerrados num eterno presente, movendo-se em falso dentro de uma infinita condenação à vida.

            A fúria de Alexandre chegara ao auge:
            – Arrombarei a porta. Jamais me prenderão aqui!
– Inútil. Se tivesse reparado nela, saberia que também é de aço. Troquei a antiga por essa.
            – Gritarei, berrarei!
– Não lhe acudirão. Ninguém mais vem a este prédio. Despedi os empregados, despejei os inquilinos.
            E concluiu, a voz baixa, como se falasse apenas para si mesmo:
            – Aqui ficaremos: um ano, dez, cem ou mil anos.
Murilo Rubião. “A armadilha”. In: Obra Completa. (Companhia das Letras, 2013)

Somente após o lançamento de O pirotécnico Zacarias que Murilo Rubião começa a receber o devido reconhecimento, inclusive internacional, com traduções para o alemão, espanhol e inglês. 
Tal projeção inevitavelmente remeteu seus contos ao realismo fantástico dos autores hispano-americanos, cujo boom ocorreu nas décadas de 1960 e 1970. 
O que deixou de ser levado em consideração foi o fato de Rubião já escrever este gênero narrativo no início da década de 40, inclusive publicando o conto “O ex-mágico” numa coletânea de autores brasileiros na Argentina, em 1946.
Rubião declarou em algumas entrevistas que só veio conhecer a literatura de Borges na década de 1960 e que o autor argentino não lhe agradou tanto, “muito preso às ciências ocultas, à numerologia, à cabalística”. 
Também disse não concordar quando compararam seus contos com a narrativa dos demais autores hispano-americanos. 
Para o escritor, seus contos só guardam parentesco com a obra de Kafka, de quem reconheceu a maestria, e uma certa influência posterior na maneira de construir situações insólitas, como forma de denunciar o absurdo que é a própria realidade.

O desencantado mundo mágico
Qual a graça de conhecermos um mundo mágico desencantado? E além que desencantado; triste, melancólico. 
A melancolia e a tristeza já foram pensadas como características constitutivas do povo brasileiro. Tal ideia parece coisa absurda por aqui, após termos virado a terra do carnaval, do futebol e da alegria.
Mas esta foi uma das primeiras “interpretações do Brasil”, que Paulo Prado sugeriu em seu Retratos do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira”, escrito em 1928. Evidente que na época em que foi escrito, o poder desta autoimagem de um povo alegre e festivo não imperava de maneira tão hegemônica como em nossos dias.
            “Numa terra radiosa vive um povo triste. Legaram-lhe essa melancolia os descobridores que a revelaram ao mundo e a povoaram.”
Paulo Prado. Retratos do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira.
(Companhia das Letras, 2012)

Moacyr Scliar volta a este assunto que mobilizou Paulo Prado, em Saturno nos trópicos: a melancolia europeia chega ao Brasil, de 2003. Livro incrível dentro do qual beleza, erudição e clareza caminham juntos do começo ao fim, além de atualizar e superar os pressupostos dos quais partiu o autor de Retratos do Brasil, sem, no entanto, caracterizar o brasileiro como um povo triste.
            
Havia motivos para a tristeza. Não um motivo racial ou constitucional, como pretendia Prado, mas um motivo social, histórico: o genocídio indígena, a escravidão negra, as pestilências, a pobreza.
Moacyr Scliar. 'Saturno dos trópicos: a melancolia europeia chega ao Brasil.'
(Companhia das Letras, 2003)

Quando dirige seu olhar para a literatura, Scliar mira em Machado de Assis e Lima Barreto, além de Monteiro Lobato, Mário de Andrade e Clarice Lispector, exemplos de autora e autores que mobilizaram em suas obras toda essa herança melancólica subjacente em nós, brasileiros.
Peço licença para incluir entre os autores de Moacyr Scliar o nome de Murilo Rubião, cuja obra parece ter sido escrita sob o próprio signo da melancolia, a arrastar e arrasar os personagens por um labirinto de narrativas absurdas e fantásticas, que não são outra coisa senão nossa própria realidade, transfigurada e decantada poeticamente, sob a forma de contos.

Felizmente, a crítica conseguiu superar Kafka e a latino-hispano-dependência, passando a olhar para a obra de Murilo Rubião dentro de suas características sui generis. Tal o empreendimento de Jorge Schwartz e Davi Arrigucci Jr. 
Um truísmo elementar parece ter demorado a ser evocado: a obra de Rubião é essencialmente brasileira, caracteristicamente mineira, mas que toca em temas humanos fundamentais para a civilização ocidental.
            São, em geral, pequenas cidades perdidas entre morros, onde a vida vegeta, mas se encontram os mecanismos sociais e os comportamentos do mundo moderno dos grandes centros distantes, com seu peso de alienação e a reprodução das relações reificadas.
Davi Arrigucci Jr. 'O sequestro da surpresa'. (Folha de S. Paulo, 11 de abril de 1998)

Os contos de Murilo Rubião, normalmente ambientados em cidadezinhas mineiras, são extremamente modernos, quer pela técnica da linguagem, pelos temas tratados e pelo recurso ao absurdo construído logicamente. 
A linguagem do absurdo, ou do fantástico, foi a forma escolhida pelo autor para denunciar a opressão do cotidiano, sobretudo com a chegada das instituições modernizantes.
Linguagem duma transparência jornalística onde o irreal surge espontaneamente, causando um estranhamento imediato. 
Este mundo mágico criado por Murilo Rubião é povoado de animais e metamorfoses, que nos remetem às fábulas e à mitologia grega, mas que acabam sendo ressignificadas pela técnica do escritor para desvendar a perversidade do real.

            – Moço, oh! moço! Moço, me dá um cigarro?
            Ainda com os olhos fixos na praia, resmunguei:
            – Vá embora, moleque, senão chamo a polícia.
            – Está bem, moço. Não se zangue. E, por favor, saia da minha frente, que eu também gosto de ver o mar.
            Exasperou-me a insolência de quem assim me tratava e virei-me, disposto a escorraçá-lo com um pontapé. Fui desarmado, entretanto. Diante de mim estava um coelhinho cinzento, a me interpelar delicadamente:
            – Você não dá é porque não tem, não é, moço?
            O seu jeito polido de dizer as coisas comoveu-me. Dei-lhe o cigarro e afastei-me para o lado, a fim de que melhor ele visse o oceano. […] Ao fim da tarde, indaguei onde ele morava. Disse não ter morada certa. A rua era seu pouso habitual. Foi nesse momento que reparei nos seus olhos. Olhos mansos e tristes. Deles me apiedei e convidei-o a residir comigo.
Murilo Rubião. “Teleco, o coelhinho”. In: Obra completa.
(Companhia das Letras, 2013)

A expansão da imaginação, aparentemente ilimitada no universo da narrativa fantástica, encontra nos contos de Murilo Rubião alguns bloqueios que funcionam, conforme escreveu Fábio Lucas, como “cláusulas restritivas”. 
Não há nenhum tipo de gratuidade nos devaneios murilianos, e seu mundo mágico surge despido de qualquer surpresa por parte dos personagens e do narrador, como a denunciar o contingente da vida e seu lado terrivelmente real.
A impressão é de que em muitos de seus contos existe a fundação de um mundo onírico, que surge dentro deste nosso mundo real terrivelmente administrado e burocratizado, construído pela racionalidade moderna.
Mas este outro mundo mágico que de repente surge nos contos, para dentro do qual os personagens são arrastados, é também um local sem saída, onde os pobres-diabos passam a girar em falso. 
São poucos os contos em que os personagens morrem no final, sendo mais corriqueiro, na obra de Rubião, a eterna presentificação da agonia. 
O mundo mágico, então, que poderia ser uma porta encantada para os personagens se verem livres do tédio existencial, acaba se convertendo num eterno desencanto.

            Sou visto muitas vezes procurando retirar com o dedo, do interior da roupa, qualquer coisa que ninguém enxerga, por mais que atente a vista.
            Pensam que estou louco, principalmente quando atiro ao ar essas pequenas coisas.
            Tenho a impressão de que é uma andorinha a se desvencilhar das minhas mãos. Suspiro alto e fundo.
            Não me conforta a ilusão. Serve somente para aumentar o arrependimento de não ter criado todo um mundo mágico.
Murilo Rubião. “O ex-mágico da Taberna Minhota”. In: Obra Completa.
(Companhia das Letras, 2013)

Existe uma completa falta de esperanças nos contos de Rubião, o que ele considera sintoma da perda de Deus e da crença num mundo eterno para além da vida terrena. “Essa perda da eternidade na minha literatura é uma das causas dessa falta de esperança”.

Lançados no turbilhão de um mundo onírico, mas também regulamentado e regrado, os personagens, inclusive os animais, tornam-se agentes passivos das instituições desencantadoras, num processo que remete ao fenômeno descrito por Max Weber como o “desencantamento do mundo”, oriundo da racionalidade radical que se desenvolveu nas modernas cidades ocidentais. 
As sucessivas metamorfoses pelas quais passam os personagens são vãs tentativas de fugir ao fardo da existência desencantada. 
Eis o final de “Teleco, o coelhinho”:

            Alguns dias transcorridos, perdurava o mesmo caos. Pelos cantos a tremer, Teleco se lamuriava, transformando-se seguidamente em animais os mais variados. Dos seus olhos, então, escorriam lágrimas que, pequenas nos olhos miúdos de um rato, ficavam enormes na face de um hipopótamo. […] Na última noite, apenas estremecia de leve e, aos poucos, se aquietou. Cansado da longa vigília, cerrei os olhos e adormeci. Ao acordar, percebi que uma coisa se transformara nos meus braços. No meu colo estava uma criança encardida, sem dentes. Morta.

Talvez seja esta uma das denúncias que Murilo Rubião tenta fazer por intermédio de seu realismo mágico. 
Através de suas páginas, podemos entrever, para além da tristeza e melancolia, a forma como do desencantamento do mundo chega ao Brasil. 
Dentre tantos e importantes outros temas, a impossibilidade de uma transcendência, que acaba por atrelar a vida inexoravelmente ao mundo real, parece estar presente em sua obra do começo ao fim.
Se eu pudesse lançar mão duma epígrafe para encimar a obra de Rubião como um todo, talvez escolhesse as palavras do personagem dostoiéviskiano Ivan Karamázov, quando diz que “Se não existe a imortalidade da alma, então não existe tampouco a virtude, logo, tudo é permitido”, o que, trocado em miúdos, acabou se convertendo em “Se Deus está morto, então tudo é permitido”.





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(*) Alexandre Rosa é escritor, cientista social, educador no Projeto Vocacional Literatura, da Secretaria de Cultura da Cidade de São Paulo, e mestrando no programa “Cultura e Identidades Brasileiras” do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP.

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