O que há de Gente em Nós?
Erik Morais (*) - segunda-feira, 8 de agosto de 2016
A vida contemporânea parece estar imbricada com um certo estado de desumanização, no qual perdemos a capacidade de observar aquilo que acontece ao nosso redor. É como se tivéssemos perdido a sensibilidade e, assim, tornamo-nos ocos e frios.
Transformados em homens de olhos secos que não possuem rios de lágrimas, deixamos a triste condição Severina se instalar e criar morada. Deixamo-la tornar-se habitat natural dessa desumanização.
Diante disso, uma pergunta tem me incomodado: o que há de gente em nós?
Somos seres precários e finitos, de tal maneira que a vida nunca se apresentará em condições normais de temperatura e pressão.
No entanto, dada as condições, através do modo como nos comportamos, conseguimos piorar a situação exposta, inclusive, levando a ideia de Aldous Huxley de que este mundo seja o inferno de outro planeta.
Em larga medida o inferno que habitamos está alicerçado no nosso egoísmo e individualidade, os quais nos tornam personagens de Saramago, indivíduos com a cegueira branca, isto é, cegos que nunca cegaram, mas cegos que podendo ver, não enxergam, já que estão envoltos por uma segunda pele bem mais forte que a outra, que por qualquer coisa sangra, chamada egoísmo.
Uma segunda pele que nos aliena das labaredas em cada esquina e dos espinhos que ferem a cabeça de outro ser que poderia ser chamado de humano. Uma segunda pele que banaliza o mal e nos torna apáticos diante do horror que fingimos não ver todos os dias.
Em que ponto nos perdemos? Como podemos achar o mundo exterior tão desinteressante, tão insosso, a ponto de não nos indignarmos quando uma pessoa morre em uma fila de hospital por falta de atendimento? Ou pior, quando centenas de pessoas morrem porque existe um hospital pronto, mas o aparelho burocrático não o deixa funcionar?
Será que as regras são mais importantes que os jogadores? Qual o valor de um ser humano? O que há de gente em nós?
Parece que estamos tão saturados com o mal, que sequer percebemos ao andar na rua que existem crianças pedindo dinheiro no sinal, enquanto outras passeiam na Disney; que, enquanto milhares de pessoas morrem de fome, outras tantas fazem dieta.
Como aceitamos tamanha paradoxalidade, tamanho absurdo?
Mundo do absurdo, da intolerância, da falta de empatia, do egoísmo, em que nada nos incomoda, nada nos comunica, nada nos incita, no qual o horror se torna show e é espetacularizado diariamente, como no mundo distópico de Laranja Mecânica de Anthony Burgess.
Mundo em que pessoas morrem tentando sair de um país à procura de um novo lugar para chamar de lar, enquanto outras escolhem onde querem morar.
E nós passando por esse mundo, como se estivéssemos em uma Timeline, apenas “curtindo” ou não situações, sem de fato refletir, se indignar e, sobretudo, se incomodar.
Incomodar, verbo repetido intencionalmente até aqui, para que percebamos o quanto ele está em extinção, já que não queremos nos incomodar.
Queremos sentir prazer, sorrir o tempo inteiro, sem qualquer tipo de dor ou “incômodo”, acima de tudo, se ele vier de outra pessoa que queira romper a nossa segunda pele, que nos “protege” e nos faz mais “fortes”.
Tudo o que queremos, como diz Clarice em “O Mineirinho”, é manter as nossas casas presas ao terreno, a fim de que elas não estremeçam.
É continuar fabricando deuses à imagem do que precisarmos para continuar dormindo tranquilamente, os quais sempre tratam de nos acalmar com o sentimento de que não há nada a fazer.
Tudo o que queremos é continuar sendo os sonsos essenciais, os baluartes de alguma coisa e os cegos que podendo ver não enxergam, para que não corramos o risco de nos entendermos. “Porque quem entende desorganiza. Há alguma coisa em nós que desorganizaria tudo — uma coisa que entende”. E essa coisa que desorganiza tudo é aquilo que há de gente em nós, é aquilo que rasga a segunda pele chamada de egoísmo e faz com que a nossa primeira pele se incomode, é aquilo que faz com que os leitos dos olhos voltem a ter lágrimas, para que possamos dar de beber a quem sofre, porque mesmo quando a água é pouca, continuamos sabendo o que é sede e mesmo quando não nos perdemos, também experimentamos a perdição.
Talvez Huxley esteja certo e este mundo seja mesmo o inferno de outro. Acho que ele não tinha certeza, mas estava incomodado com a ordem posta e procurava, como Clarice, a coisa que desorganiza tudo, a coisa que entende, o que há de gente em nós.
Ele deve ter encontrado a humanidade no Selvagem do seu Admirável Mundo Novo; ela encontrou no Mineirinho, mas foram necessários treze tiros até que ela se tornasse o outro, para que ela quisesse ser o outro, para que fosse o próprio Mineirinho.
Resta saber, quantos tiros são necessários para que sejamos o outro e, então, saibamos, o que há de gente em nós.
* * *
(*) Erik Morais escreve na página 'Conti outra e afins'
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