quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

JOÃO UBALDO RIBEIRO - A decadentização da língua


A DECADENTIZAÇÃO DA LÍNGUA

JOÃO UBALDO RIBEIRO
Jornal "O Globo", 7 de outubro de 2008

Claro, todo mundo já ouviu dizer que as línguas são como seres vivos, que mudam com o tempo e até morrem. É verdade e, se não fosse assim, ainda estaríamos falando latim. Nada, portanto, contra as mudanças na língua, contanto que sejam ditadas por uma razão mais ou menos respeitável, até mesmo pela famosa lei do menor esforço, quando não redunde em empobrecimento da capacidade de expressão. Mas acho que está havendo um certo exagero e, daqui a pouco, estaremos falando um dialeto primitivo de umas 300 palavras para as pessoas cultas e umas 25 para a maioria.

Começa-se, é claro, com as chamadas “palavras-ônibus”. Servem para tudo e, em português brasileiro, as mais comuns atualmente são “maravilha” e seus derivados, “super”, “parada” e “valeu”, que, com alguns acréscimos, podem constituir toda uma conversação.
— Eu super me dei bem naquela parada — diz o primeiro.
— Ah, aquilo sempre foi uma maravilha — responde o segundo.
— Ah, supervaleu! – despede-se o primeiro.


O “cujo”, coitado, restinho do genitivo que ainda sobrava por aqui, passou da categoria de pedante, entrou para a de pernóstico e, em breve, será arcaísmo. Ninguém diz mais “cujo”, só diz “que”. “A moça que eu vi o pai ontem” é o certo hoje em dia e quem disser “a moça cujo pai eu vi” corre o risco de não ser entendido. Sei que vai haver entre vocês quem não acredite e eu até compreendo, embora esteja contando a verdade. Outro dia eu disse um “cujo” numa entrevista e a entrevistadora me deu a impressão de que só entendeu depois de pensar alguns laboriosos segundos.

Há também um movimento que cada vez aumenta mais, para abolir a preposição “a” no uso corrente. Ou seja, prestando atenção, você vai ouvir na televisão alguém dizendo “daqui dois dias” ou, bem pior, “igual eu”. Em compensação “neste ano” “nesta semana”, por exemplo, que nunca foram correntes para dizer “este ano” ou “esta semana”, agora são a única maneira certa de falar. “Neste ano, tu vai fazer igual eu, procurar uma parada diferente no Carnaval, não é?”.

Os verbos vêm sofrendo bastante também. Por exemplo, poucos entre nós, têm visto alguma coisa recentemente. A maior parte de nós hoje visualiza, principalmente quando enxerga. Ver a gente volta e meia ainda vê, mas ninguém enxerga mais, só visualiza. Até a sinal a gente não presta mais atenção, a gente nota a sinalização. Ninguém chama a atenção para nada, sinaliza e nós vemos a sinalização, não o sinal. O verbo “pegar”, não sei bem por quê (tem acento aí nesse quê, garanto a vocês — de vez em quando me comem um circunflexo), virou abundante e o certo, que era errado, é cada vez mais “pego” e outro dia um motorista de táxi se embasbacou porque eu sou da Academia e disse “pegado” a ele. E novamente garanto que não estou mentindo: já ouvi “eu tinha falo”, em vez de “falado”, o que talvez não cole porque fica chato tanto para homem quanto para mulher dizer isso, considerando que “falo” é substantivo e tem muito pouco a ver com a fala.

Os timbres também são amalucados. A droga “ecstasy” é para ser pronunciada com “e” aberto, pelo menos enquanto não for naturalizada, mas aqui virou uma maneira exótica de pronunciar “êxtase”. Isso, aliás, é comum, na incorporação de palavras de nossa língua-mãe, ou seja, o inglês. Quando o “volley” (“vóli”, às vezes quase “váhli”) se naturalizou, virou “vôlei”. Até aí, tudo bem, naturalização é naturalização, mas por que “doping”, além de receber frequentemente dois pp, é “dópingue”? (Aliás, isto me traz a cabeça algo que tem pouco a ver com o que escrevo agora: por que a gente se irrita tanto quando inglês ou americano escreve Brasil com z? Em inglês, é com z, assim como América aqui é com acento, França é com cedilha e “a” no fim e Alemanha é bastante diferente de Deutschland. Deve ser o nosso combativo nacionalismo de araque.) Outra mudança de timbre que me chateia é a de “obsoleto”. Não é conhecimento secrêto que o corrêto — e não é preciso ser discrêto quanto a isso — é “obsoléto”, mas escuto gritos de “olha aí o baiano” sempre que pronuncio certo. Tenho vontade de acertar um “dirêto” no cara.

“Loira”, que era variante, agora está ficando padrão. Ninguém, que eu tenha escutado, diz que um sujeito é “loiro” e eu acho que até pega mal em certas mesas de boteco, mas só se escreve “loira” agora. Outras palavras não estão tendo formas destronadas, estão sendo expulsas da língua, como os bons e velhos verbos “pôr” e “botar”. Acho que até em Itaparica galinha já está colocando ovo, em vez de botar. Colocando, imagino eu, é mais elegante. Da mesma forma, “penalizar”, um verbo antes tão expressivo, botou para fora “punir” (não sem uma certa relação com o que acontece na sociedade) e “prejudicar”. Ninguém prejudica mais, só penaliza, que tem a vantagem adicional de terminar em “izar”.

A linguagem informática também traz suas pesadas contribuições. Por que diabo “salvar”, que não quer dizer nem “guardar”, nem “gravar” nem nenhum sinônimo destes, é usado, quando temos palavras perfeitamento adequadas? Por que “malévolo”, “mal-intencionado” ou “maldoso” é “malicioso”? Por que “corporate”, até fora da linguagem informática é “corporativo”? Por que um determinado sistema não “suporta” outro, como se se detestassem?

Finalmente, adeus para “existir” e “haver”. Agora só se diz “você tem”. “Você tem uma área chamada Amazônia. Muito bem, que é que você tem lá? Você tem uma floresta que precisa ser preservada. E aí você tem que caminhos?” Eu não sei, só sei que nós tínhamos uma língua própria antigamente.

*            *            *

JOHANN SEBASTIAN BACH

CARTÃO DE NATAL...- ADÉLIA PRADO


CARTÃO DE NATAL PARA MARIE NOEL
Adélia Prado



Nem as vidas de santos nos encorajam
a abstinência e jejuns.
Ele, Jesus, perdoa-me,
pois veio aos pecadores,
aos que se escondem em árvores,
ou debaixo de camas feito eu.

Até rainhas, se pretendem respeito,
precisam conhecer o seu fogão.
Conheço mais, conheço fome e culpa.
Meu estômago mói sem trégua,
só não tritura medo,
farinha que já vem pronta.

Mesmo imitando lâmpadas de azeite,
a lâmpada no sacrário é piedosa.
O padre não tem culpa, estudou em Roma
mas vem de família pobre,
julga pecar quando concede à beleza
o trono que lhe é devido.

Provo em desordem as emoções mais turvas.
Estou confusa e ansiosa,
mas de verdade desejo,
com uma ceia copiosa,
Feliz Natal para todos.

*        *        *

In: A duração do dia
Um ano novo!
Por MARLA DE QUEIROZ


O que eu desejo para o novo ano é suavidade. E um bocado de alegria.

E desejo também perdão: a mim mesma que sou passível de erros, mas que não preciso e não devo viver mergulhada na culpa.

Desejo também carinho: uma alma acariciada fica doce, desvendada, amorosa.

Desejo coragem, porque o medo paralisa e impede a melodia nova e é preciso arriscar para continuar (re)criando harmonias.

Desejo muita inspiração, porque as palavras sempre me fizeram a companhia mais maciça para a solidão genuína que sinto. E foram elas que consertaram muitas dores ao longo da minha caminhada, coisas que só pude curar investigando, compartilhando, tendo aqui meus cinco dedos de prosa com vocês.

Desejo um pouco de disciplina, pois um ser criativo precisa de rebeldia, mas também de horários e planejamentos.

Desejo desapego pelas pessoas, mas um pouco mais de ambição material porque ninguém sobrevive apenas de metafísica.

Desejo maturidade. Quando se tem maturidade, dá-se melhor o valor que tem cada coisa, sem supervalorizar o que é irrelevante ou subestimar um pequeno aprendizado.

Desejo muita paz: um coração sossegado entrega-se com mais confiança.

Desejo saúde e disposição.

Desejo proteção espiritual.

E desejo continuar sendo merecedora dessa boa sorte de falar e poder ser atentamente ouvida, de calar e ser respeitada, de amar e ser correspondida, de atrair pessoas de coração bom e muita sensibilidade, e de poder descobrir a cada dia que a verdadeira erudição está na simplicidade.

FELIZ ANO NOVO!


quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

POEMAS DE DEZEMBRO - Drummond


Procuro uma alegria
uma mala vazia
do final de ano
e eis que tenho na mão
- flor do cotidiano -
é vôo de um pássaro
é uma canção.
(Dezembro de 1968)

Uma vez mais se constrói
a aérea casa da esperança
nela reluzem alfaias
de sonho e de amor: aliança.
(Dezembro de 1973)

Fazer da areia, terra e água uma canção
Depois, moldar de vento a flauta
que há de espalhar esta canção
Por fim tecer de amor lábios e dedos
que a flauta animarão
E a flauta, sem nada mais que puro som
envolverá o sonho da canção
por todo o sempre, neste mundo
(Dezembro de 1981)


Quem me acode à cabeça e ao coração
neste fim de ano, entre alegria e dor?
Que sonho, que mistério, que oração?
Amor.
(Dezembro de 1985)

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

RUI BARBOSA

Frases de Rui Barbosa



"A pátria é a família amplificada."


"Uma raça, cujo espírito não defende o seu solo e o seu idioma, entrega a alma ao estrangeiro, antes de ser por ele absorvida."


"Não é possível estar dentro da civilização e fora da arte."


"A justiça pode irritar-se porque é precária. A verdade não se impacienta, porque é eterna."


"O pão é o ventre, o centro da vida orgânica. O ideal é o espírito, órgão de vida eterna."


"Não se evita a guerra preparando a guerra. Não se obtém a paz senão aparelhando a paz."


"A inteireza do espírito começa por se caracterizar no escrúpulo da linguagem."


"Não há nada mais relevante para a vida social que a formação do sentimento da justiça."


"A morte não extingue, transforma; não aniquila, renova; não divorcia, aproxima."


"As leis que não protegem nossos adversários não podem proteger-nos."


"A imprensa é a vista da nação. Por ela é que a nação acompanha o que lhe passa ao perto e ao longe, enxerga o que lhe malfazem, devassa o que lhe ocultam e tramam, colhe o que lhe sonegam, ou roubam, percebe onde lhe alvejam, ou nodoam, mede o que lhe cerceiam, ou destroem, vela pelo que lhe interessa, e se acautela do que ameaça."


"A força não constrói, não une, não pacifica. Os grandes exércitos e os armamentos são o infortúnio e o desassossego dos países militarizados."


"O delírio dos erros incuráveis acerba-se com os embaraços opostos pela razão."


"As leis são um freio para os crimes públicos - a religião para os crimes secretos."


"Muito há que alguém disse: 'O sábio sabe que não sabe'."


"A vida parlamentar, a administração e o jornalismo têm sido, em toda parte, os mais poderosos corruptores da língua e do bom gosto."


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segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Maria Gadu : Ne Me Quitte Pas

Maysa - Ne me quitte pas traduzida

CONSIDERAÇÕES EM TORNO DE UMA CANÇÃO

Tenho ouvido muita música - clássica e contemporânea - e quando digo Clássica, refiro-me não apenas à música erudita, mas também aos clássicos populares, àquelas canções que mesmo depois de 50, 60 anos de sua criação ainda emocionam quando executadas em sua forma original ou mesmo em "releituras" feitas pelos intérpretes modernos.
É o caso de "Ne me quitte pas", que mereceu inúmeras gravações pelo mundo afora e sobre a qual tenho algumas considerações a fazer.
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Ne Me Quitte Pas
Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.

"Ne me quitte pas é uma canção francesa composta, escrita e cantada por Jacques Brel, publicada em 1959 pela Warner-Chappell.
A primeira versão de Brel data de 11 de setembro de 1959, como parte do álbum La Valse à mille temps.
Em 1961, é produzida a primeira versão (em flamengo/holandês), intitulada Laat me niet alleen.
Treze anos após a versão original, em 20 de junho de 1972, Jacques Brel lança uma nova versão para o álbum que leva o mesmo nome, Ne Me Quitte Pas.
Ne me quitte pas foi interpretada na versão orginal em francês por Simone Langlois, seguida de Nina Simone, Sylvie Vartan, Serge Lama, Nana Mouskouri (no álbum Hommages de 1997), Yuri Buenaventura (versão salsa, em 1999), Maysa, Estrella Morente, Maria Gadú de 2009 e por Brian Molko, vocalista do Placebo (banda), em 2010. A interpretação de Simone Langlois (1959) foi possivelmente a primeira gravação: Brel teria dado a ela prioridade em gravar a primeira versão.  Dentre os artistas brasileiros que gravaram a música, além de Maysa, podem-se destacar: Ângela Ro Ro, Roberta Miranda, Alcione e Sônia Andrade.
Há outras versões de Ne Me Quitte Pas nos mais diversos idiomas, algumas memoráveis são os títulos: "If you go away", "Don´t leave me", "Bitte, geh nicht fort", "Non andare via", "Não me Deixes Mais", "Se Você Partir", "Laat me niet alleen", "Al tilchi mikan", "Ne ovstavljaj me", "No me dejes", "No em deixis mai", dentre outras.
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Busquei essas informações para prosseguir em meu comentário. Devo dizer que gosto muito da melodia e da letra em francês. Nunca ouvi as versões em outros idiomas.
Quando ouvi a versão de Maria Gadú, achei interessantíssima, pois estava acostumada às interpretações de Maysa e Nina Simone que sempre me comoviam pela dramaticidade e o tom lamentoso do fim de um relacionamento.
Não é, absolutamente, o que acontece na versão de Maria Gadú, que imprimiu sensualidade e até um certo desprendimento ao refrão "ne me quitte pas, ne me quitte pas..." Ficou, assim, algo que não machuca, não causa sofrimento, tratando-se apenas de constatação e  tentativa diante de uma situação corriqueira e que acabará sendo esquecida. Isso não significa que seja inferior, de modo nenhum. É bonita e o ritmo (também modificado) chega a ser dançante.
Fiquei então pensando que na esteira das mudanças de tudo no mundo, principalmente na questão de comportamento, essas regravações vão nos orientando e mostrando as modificações externas e internas do ser humano. 
Se antes as dores de amor, os temores, as desilusões eram extravasados de forma poética, musical, hoje, esses sentimentos são escamoteados, ficam imersos no tumultuado mundo de emoções contidas. Não devemos nos expor emocionalmente pois as pessoas não têm nem tempo nem paciência para ouvir-se umas às outras. Isso me fez lembrar um texto do Rubem Alves, em que ele comenta que há cursos de oratória e nenhum de "escutatória". A ordem é a alegria permanente, ainda que mentirosa. Não se pode mais sentir ou sofrer baixinho. Menos ainda, confessar isso a alguém. A ordem é alardear a felicidade ruidosa, ainda que falsa. Atrelada a esse tipo de comportamento vem também a exposição física: o corpo é o bem supremo. Quanto mais é despido, mais a alma é encoberta. Assim, tanto faz ter ou não alguém para amar, ter ou não amigos de verdade. O que interessa é exibir beleza física - esse conceito que muda de tempos em tempos -, ostentar poder econômico, e fingir... fingir o tempo todo que não somos a mais maravilhosa mistura de erros e acertos, de derrotas e vitórias por meio dos quais podemos crescer espiritualmente aceitando o que todos temos de humano e divino.

Sueli
Resende 27/12/10




domingo, 26 de dezembro de 2010

CLARICE LISPECTOR


Mais mistérios de Clarice
"Olhe para todos ao seu redor e veja o que temos feito de nós e a isso considerado vitória nossa de cada dia. Não temos amado, acima de todas as coisas. Não temos aceite o que não se entende porque não queremos passar por tolos. Temos amontoado coisas e seguranças por não nos termos um ao outro. Não temos nenhuma alegria que não tenha sido catalogada. Temos construído catedrais, e ficado do lado de fora pois as catedrais que nós mesmos construímos, tememos que sejam armadilhas. Não nos temos entregue a nós mesmos, pois isso seria o começo de uma vida larga e nós a tememos.

Temos evitado cair de joelhos diante do primeiro de nós que por amor diga: tens medo. Temos organizado associações e clubes sorridentes onde se serve com ou sem soda. Temos procurado nos salvar mas sem usar a palavra salvação para não nos envergonharmos de ser inocentes. Não temos usado a palavra amor para não termos de reconhecer a sua contextura de ódio, de amor, de ciúme e de tantos outros contraditórios. Temos mantido em segredo a nossa morte para tornar a nossa vida possível. Muitos de nós fazem arte por não saber como é a outra coisa.

Temos disfarçado com falso amor a nossa indiferença, sabendo que nossa indiferença é angústia disfarçada. Temos disfarçado com o pequeno medo o grande medo maior e por isso nunca falamos no que realmente importa. Falar no que realmente importa é considerado uma gaffe.

 Não temos adorado por termos a sensata mesquinhez de nos lembrarmos a tempo dos falsos deuses. Não temos sido puros e ingénuos para não rirmos de nós mesmos e para que no fim do dia possamos dizer «pelo menos não fui tolo» e assim não ficarmos perplexos antes de apagar a luz. Temos sorrido em público do que não sorriríamos quando ficássemos sozinhos.
Temos chamado de fraqueza a nossa candura. Temo-nos temido um ao outro, acima de tudo. E a tudo isso consideramos a vitória nossa de cada dia."

**
..."Que minha solidão me sirva de companhia. Que eu tenha a coragem de me enfrentar. Que eu saiba ficar com o nada e mesmo assim me sentir como se estivesse plena de tudo."
**
Clarice Lispector - In: 'Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres'

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

JULES MASSENET

GUIMARÃES ROSA

Museu da Língua Portuguesa - SP


"Desconfio que sou um individualista feroz, mas disciplinadíssimo. Com aversão ao histórico, ao político, ao sociológico. Acho que a vida neste planeta é caos, queda, desordem essencial, irremediável aqui, tudo fora de foco. Sou só RELIGIÃO – mas impossível de qualquer associação ou organização religiosa: tudo é o quente diálogo (tentativa de) com o infinito. O mais, você deduz."
(Guimarães Rosa)
*            *            *

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

MÁRIO QUINTANA SEMPRE

Segundo o Feng Shui, ao fim de cada ano devemos dispensar o que não tem mais utilidade e abrir espaço para o novo, para o que virá.  Canceriana típica, tenho uma certa tendência em reverenciar o passado, conservando algumas coisas.  Por diversas razões resolvi fazer uma "triagem" ao menos, no que se refere a papéis, livros e revistas.  
Incrível, mas encontrei algumas revistas de 30 anos atrás!  Aquelas restropectivas de fim de ano, de fim de década, de fim de século... Também, quem mandou ficar entrando pelas décadas, pelos séculos? 
Pois bem, em uma dessas publicações - Revista Veja, Edição 1111, Especial Década de 80,  ano 22, n. 51, de 31 de dezembro de l989 - lá está o "primeiro poema de Mário Quintana na década de 90".
Conclusão: não posso, simplesmente não posso jogar fora essa revista.
O que posso fazer é compartilhar a preciosidade. Aí vai:


"Depois de longos, de sofridos anos,
Chega enfim uma Nova Era,
Chega enfim uma Nova Década!
Em cada coração é primavera,
A alegria sorri na boca do povo
E, neste primeiro do Ano,
Sonhando tudo o que nos espera
Nesses outros dez anos que virão,
Em cada rua todo o mundo dança
Cantando a canção
Da Eterna Esperança!"



Estamos também encerrando uma década. Por favor, leiam o poema novamente. 
"Eterna Esperança", Eterno Quintana.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

RUBEM ALVES - Sugestão da Tatiana

Conversávamos em família e comentei minha inadequação ao mundo, mais evidente hoje, com toda essa tecnologia e desumanização. Tempo maravilhoso e terrível.  Foi quando a namorada do meu neto sugeriu a leitura desse texto de Rubem Alves. Oportuníssimo. Obrigada, Tatiana!


SAÚDE MENTAL
Rubem Alves



Fui convidado a fazer uma preleção sobre saúde mental. Os que me convidaram supuseram que eu, na qualidade de psicanalista, deveria ser um especialista no assunto. E eu também pensei. Tanto que aceitei. Mas foi só parar para pensar para me arrepender. Percebi que nada sabia. Eu me explico.

Comecei o meu pensamento fazendo uma lista das pessoas que, do meu ponto de vista, tiveram uma vida mental rica e excitante, pessoas cujos livros e obras são alimento para a minha alma. Nietzsche, Fernando Pessoa, Van Gogh, Wittgenstein, Cecília Meireles, Maiakovski. E logo me assustei. Nietzsche ficou louco. Fernando Pessoa era dado à bebida. Van Gogh matou-se. Wittgenstein alegrou-se ao saber que iria morrer em breve: não suportava mais viver com tanta angústia. Cecília Meireles sofria de uma suave depressão crônica. Maiakoviski suicidou-se.

Essas eram pessoas lúcidas e profundas que continuarão a ser pão para os vivos muito depois de nós termos sido completamente esquecidos. Mas será que tinham saúde mental? Saúde mental, essa condição em que as idéias comportam-se bem, sempre iguais, previsíveis, sem surpresas, obedientes ao comando do dever, todas as coisas nos seus lugares, como soldados em ordem unida, jamais permitindo que o corpo falte ao trabalho, ou que faça algo inesperado; nem é preciso dar uma volta ao mundo num barco a vela, bastar fazer o que fez a Shirley Valentine (se ainda não viu, veja o filme) ou ter um amor proibido ou, mais perigoso que tudo isso, a coragem de pensar o que nunca pensou.

Pensar é uma coisa muito perigosa... Não, saúde mental elas não tinham. Eram lúcidas demais para isso. Elas sabiam que o mundo é controlado pelos loucos e idosos de gravata. Sendo donos do poder, os loucos passam a ser os protótipos da saúde mental. Claro que nenhum dos nomes que citei sobreviveria aos testes psicológicos a que teria de se submeter se fosse pedir emprego numa empresa. Por outro lado, nunca ouvi falar de político que tivesse estresse ou depressão. Andam sempre fortes em passarelas pelas ruas da cidade, distribuindo sorrisos e certezas.

Sinto que meus pensamentos podem parecer pensamentos de louco e por isso apresso-me aos devidos esclarecimentos. Nós somos muito parecidos com computadores. O funcionamento dos computadores, como todo mundo sabe, requer a interação de duas partes. Uma delas chama-se hardware, literalmente "equipamento duro", e a outra denomina-se software, "equipamento macio". O hardware é constituído por todas as coisas sólidas com que o aparelho é feito.

O software é constituído por entidades "espirituais" - símbolos que formam os programas e são gravados nos disquetes.

Nós também temos um hardware e um software. O hardware são os nervos do cérebro, os neurônios, tudo aquilo que compõe o sistema nervoso. O software é constituído por uma série de programas que ficam gravados na memória. Do mesmo jeito como nos computadores, o que fica na memória são símbolos, entidades levíssimas, dir-se-ia mesmo "espirituais", sendo que o programa mais importante é a linguagem.

Um computador pode enlouquecer por defeitos no hardware ou por defeitos no software. Nós também. Quando o nosso hardware fica louco há que se chamar psiquiatras e neurologistas, que virão com suas poções químicas e bisturis consertar o que se estragou. Quando o problema está no software, entretanto, poções e bisturis não funcionam. Não se conserta um programa com chave de fenda. Porque o software é feito de símbolos, somente símbolos podem entrar dentro dele.

Assim, para se lidar com o software há que se fazer uso dos símbolos. Por isso, quem trata das perturbações do software humano nunca se vale de recursos físicos para tal. Suas ferramentas são palavras, e eles podem ser poetas, humoristas, palhaços, escritores, gurus, amigos e até mesmo psicanalistas.

Acontece, entretanto, que esse computador que é o corpo humano tem uma peculiaridade que o diferencia dos outros: o seu hardware, o corpo, é sensível às coisas que o seu software produz. Pois não é isso que acontece conosco? Ouvimos uma música e choramos. Lemos os poemas eróticos de Drummond e o corpo fica excitado. Imagine um aparelho de som. Imagine que o toca-discos e os acessórios, o hardware, tenham a capacidade de ouvir a música que ele toca e se comover. Imagine mais, que a beleza é tão grande que o hardware não a comporta e se arrebenta de emoção! Pois foi isso que aconteceu com aquelas pessoas que citei no princípio: a música que saía de seu software era tão bonita que seu hardware não suportou.

Dados esses pressupostos teóricos, estamos agora em condições de oferecer uma receita que garantirá, àqueles que a seguirem à risca, saúde mental até o fim dos seus dias. Opte por um software modesto. Evite as coisas belas e comoventes. A beleza é perigosa para o hardware. Cuidado com a música. Brahms e Mahler são especialmente contra-indicados. Já o rock pode ser tomado à vontade.

Quanto às leituras, evite aquelas que fazem pensar. Há uma vasta literatura especializada em impedir o pensamento. Se há livros do doutor Lair Ribeiro, por que se arriscar a ler Saramago? Os jornais têm o mesmo efeito. Devem ser lidos diariamente. Como eles publicam diariamente sempre a mesma coisa com nomes e caras diferentes, fica garantido que o nosso software pensará sempre coisas iguais. E, aos domingos, não se esqueça do Silvio Santos e do Gugu Liberato.

Seguindo essa receita você terá uma vida tranqüila, embora banal. Mas como você cultivou a insensibilidade, você não perceberá o quão banal ela é. E, em vez de ter o fim que tiveram as pessoas que mencionei, você se aposentará para, então, realizar os seus sonhos. Infelizmente, entretanto, quando chegar tal momento, você já terá se esquecido de como eles eram.
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POR QUE CRIAR UM BLOG?



"POR QUE VOCÊ TEM UM BLOG?"

Chamou-me a atenção esta pergunta que encontrei no blog fiodeariadne.blogspot.com, interessantíssimo. Encontrei-o "navegando à deriva", procurando não sei o quê.
Eu quis postar meu comentário, mas como sou atrapalhada, não consegui. Enfim, o que eu disse foi o seguinte:

Tenho, sim, um blog, criado há pouquíssimo tempo. Penso que já era "blogueira" mesmo antes do advento da internet, pois minhas agendas guardavam, não apenas as anotações e compromissos para o ano, mas também  recortes de escritos que me interessavam, surpreendiam ou tocavam de algum modo (notícias variadas sobre política, cotidiano,comportamento;  trechos de livros ou poemas que estivesse lendo, charges, essas coisas).
Alguns amigos e familiares que tinham conhecimento desse meu hábito esquisito, gostavam de ler as tais agendas e se divertiam lembrando os acontecimentos. Alguns, mais empolgadinhos, diziam até que eu deveria escrever um livro, pois material não faltaria.
É, mas me falta coragem. Gosto de escrever, mas sou uma crítica severa de mim mesma. Nunca penso que o meu texto está bom.  Gosto de pintar, mas aqui no blog aparece apenas uma tela minha. Há sempre um "mas".
Meu blog tem a função mais ou menos parecida com a das minhas agendas: sem pretensões maiores, depositário das coisas de que gosto, ou das que não gosto e comento.
Assim, vou fazendo as coisas do meu jeito, do meu jeito esquisito, mas do jeito que sei.
Tenho muito o que aprender nesses novos tempos cibernéticos Sou da geração das anotações em papel, no máximo da "máquina de escrever" (rsrsrsrsrsrs).  É... sou antiga...
Acredito já ter feito algum progresso.  Pouquinho, mas fiz. Meus textos, no blog, estão no marcador "Baú do Ouriço" e são digitados em azul.
Na verdade, o que gosto, mesmo, é de LER, para aprender, para conhecer, para expandir as idéias e o mundo restrito de cada um .
Sem dúvida, a internet proporciona essa expansão e o blog é uma forma de continuar arquivando o que considero importante, bonito, necessário. Só que está tudo exposto aos olhos do mundo, o que, para mim, é um exercício de humildade. Afinal, um blog expressa os pensamentos e gostos do autor, ainda que este não se identifique explicitamente, mas se expõe e se submete ao olhar do outro.
Tentei responder à pergunta. Será que consegui?

domingo, 19 de dezembro de 2010

HAI KAIs - GUILHERME DE ALMEIDA



Caridade
  Desfolha-se a rosa.
    Parece até que floresce
    o chão cor-de-rosa.

               Infância
                 Um gosto de amora
                    comida com sol. A vida
                    chamava-se agora.

Velhice
  Uma folha morta.
     Um galho, no céu grisalho.
      Fecho a minha porta.

                 Pescaria
                 Cochilo. Na linha
                   eu ponho a isca de um sonho.
                   Pesco uma estrelinha.

Romance
  E cruzam-se as linhas
     no fino tear do destino.
     Tuas mãos nas minhas.

CUMPLICIDADE

A leitora - Fragonard

Hoje, a poesia
de outras mulheres
caiu-me em mãos
e aos olhos
como se fosse sem querer.
Eu não quero, mesmo,
de verdade, escrever
poemas.
Eu quero ler
nas linhas das outras,
esta mesma inquietude
ou este mesmo desejo
de plenitude.
        
    
Sueli
Itatiaia, julho de 2005

CÂNTICOS - IV / XXVI - CECÍLIA MEIRELES

Cânticos
Tela de Leonid Afremov
IV
Tu tens um medo:
Acabar.
Não vês que acabas todo dia.
Que morres no amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.

Que te renovas todo dia.
No amor.
Na tristeza
Na dúvida.
No desejo.

Que és sempre outro.
Que és sempre o mesmo.
Que morrerás por idades imensas.
Até não teres medo de morrer.

E então serás eterno.

*  *
'O passeio' - Tela de Claude Monet
XXXVI

Não ames como os homens amam.
Não ames com amor.
Ama sem amor.
Ama sem querer.
Ama sem sentir.
Ama como se fosses outro.
Como se fosses amar.
Sem esperar.

Tão separado do que ama, em ti,
Que não te inquiete
Se o amor leva à felicidade,
Se leva à morte,
Se leva a algum destino.
Se te leva.
E se vai, ele mesmo...

Não faças de ti
Um sonho a realizar.
Vai.
Sem caminho marcado.
Tu és o de todos os caminhos.

Sê apenas uma presença.
Invisível presença silenciosa.
Todas as coisas esperam a luz,
Sem dizerem que a esperam.
Sem saberem que existe.

Todas as coisas esperarão por ti,
Sem te falarem.
Sem lhes falares.
Sê o que renuncia
Altamente:
Sem tristeza da tua renúncia!
Sem orgulho da tua renúncia!

Abre as tuas mãos sobre o infinito.
E não deixes ficar de ti
Nem esse último gesto!

O que tu viste amargo,
Doloroso,
Difícil,
O que tu viste inútil
Foi o que viram os teus olhos
Humanos,
Esquecidos...
Enganados...

No momento da tua renúncia
Estende sobre a vida
Os teus olhos
E tu verás o que vias:
Mas tu verás melhor...
... E tudo que era efêmero
se desfez.

E ficaste só tu, que é eterno.

|*        *        *

CECÍLIA MEIRELES - Discurso

Discurso
Cecília Meireles

E aqui estou, cantando.

Um poeta é sempre irmão do vento e da água:
deixa seu ritmo por onde passa.
Venho de longe e vou para longe:
mas procurei pelo chão os sinais do meu caminho
e não vi nada, porque as ervas cresceram e as serpentes
andaram.

Também procurei no céu a indicação de uma trajetória,
mas houve sempre muitas nuvens.
E suicidaram-se os operários de Babel.

Pois aqui estou, cantando.


Se eu nem sei onde estou,
como posso esperar que algum ouvido me escute?
Ah! Se eu nem sei quem sou,
como posso esperar que venha alguém gostar de mim?


*            *            *

PROFUNDAMENTE - MANUEL BANDEIRA




Profundamente
Manuel Bandeira

Quando ontem adormeci
Na noite de São João
Havia alegria e rumor
Vozes cantigas e risos
Ao pé das fogueiras acesas.
No meio da noite despertei
Não ouvi mais vozes nem risos
Apenas balões
Passavam errantes
Silenciosamente
Apenas de vez em quando
O ruído de um bonde
Cortava o silêncio
Como um túnel.

Onde estavam os que há pouco
Dançavam
Cantavam
E riam
Ao pé das fogueiras acesas?
— Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados
Dormindo
Profundamente.

Quando eu tinha seis anos
Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci.

Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão todos eles?
— Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo

Profundamente.

*            *            *