A Desordem da Minha Natureza
(...) enfrentei pela primeira vez o meu ser natural enquanto decorriam os meus noventa anos. Descobri que a minha obsessão de que cada coisa estivesse no seu lugar, cada assunto no seu tempo, cada palavra no seu estilo, não era o prêmio merecido de uma mente ordenada mas, pelo contrário, um sistema completo de simulação inventado por mim para ocultar a desordem da minha natureza.
Descobri que não sou disciplinado por virtude, mas como reação contra a minha negligência; que pareço generoso para encobrir a minha mesquinhez, que passo por prudente por ser pessimista, que sou conciliador para não sucumbir às minhas cóleras reprimidas, que só sou pontual para que não se saiba que pouco me importa o tempo alheio.
Descobri, por fim, que o amor não é um estado de alma mas um signo do Zodíaco.
Gabriel García Marquez, in 'Memória das Minhas Putas Tristes'
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A Entrega Real
Enfim, enfim quebrara-se realmente o meu invólucro, e sem limite eu era. Por não ser, era. Até ao fim daquilo que eu não era, eu era. O que não sou eu, eu sou.
Tudo estará em mim, se eu não for; pois 'eu' é apenas um dos espasmos instantâneos do mundo.
Minha vida não tem sentido apenas humano, é muito maior - é tão maior que, em relação ao humano, não tem sentido.
Da organização geral que era maior que eu, eu só havia até então percebido os fragmentos.
Mas agora, eu era muito menos que humana - e só realizaria o meu destino especificamente humano se me entregasse, como estava me entregando, ao que já não era eu, ao que já é inumano.
E entregando-me com a confiança de pertencer ao desconhecido.
Pois só posso rezar ao que não conheço.
E só posso amar à evidência desconhecida das coisas, e só me posso agregar ao que desconheço.
Só esta é que é uma entrega real.
Clarice Lispector, in 'A Paixão Segundo G.H'
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A Melhor Prova duma Real Amizade
A melhor prova duma real amizade está em evitar os compromissos entre aqueles que se estimam.
Ainda que devendo muito aos que muito me louvam, eu não quero ser-lhes obrigada pela gratidão.
Mas sim grata porque estou com eles, devido a circunstâncias que a todos nós agradam e são um laço mais entre nós, sem constituírem um dever.
Eu pretendo dizer da amizade o que Diógenes dizia do dinheiro: que ele o reavia dos seus amigos, e não que o pedia.
Pois aquilo que os outros têm pelo sentimento comum não se pede, é patrimônio comum. Neste caso, a amizade.
Agustina Bessa-Luís, in 'Dicionário Imperfeito'
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Ignoto Deo
Desisti de saber qual é o Teu nome,
Se tens ou não tens nome que Te demos,
Ou que rosto é que toma, se algum tome,
Teu sopro tão além de quanto vemos.
Desisti de Te amar, por mais que a fome
Do Teu amor nos seja o mais que temos,
E empenhei-me em domar, nem que os não dome,
Meus, por Ti, passionais e vãos extremos
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Chamar-Te amante ou pai... grotesco engano
Que por demais tresanda a gosto humano!
Grotesco engano o dar-te forma! E enfim,
Desisti de Te achar no quer que seja,
De Te dar nome, rosto, culto, ou igreja...
– Tu é que não desistirás de mim!
José Régio, in 'Biografia'
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