quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

EXCERTOS - CLARICE LISPECTOR

Mistérios de Clarice em "Água viva"

PÓRTICO
O que te escrevo não tem começo: é uma continuação. Das palavras deste canto que é meu e teu, evola-se um halo que transcende as frases, você sente? Minha experiência vem de que eu já consegui pintar o halo das coisas. O halo é mais importante que as coisas e as palavras. O halo é vertiginoso. Finco a palavra no vazio descampado: é uma palavra como fino bloco monolítico que projeta sombra. E é trombeta que anuncia.  (57)


AQUI & AGORA

Estou tentando captar a quarta dimensão do instante-já. (9)


Meu tema é o instante? Meu tema de vida. Procuro estar a par dele, divido-me milhares de vezes, em tantas vezes quanto os instantes que decorrem, fragmentária que sou e precários os momentos – só me comprometo com a vida que nasça com o tempo e com ele cresça: só no tempo há espaço para mim. (11)


Domingo é o dia dos ecos – quentes, secos, e em toda a parte zumbidos de abelhas e vespas, gritos de pássaros e o longínquo das marteladas compassadas – de onde vêm os ecos de domingo? Eu que detesto domingo por ser oco. (19-20)


Nada existe de mais difícil do que entregar-se ao instante. Esta dificuldade é dor humana. É nossa. Eu me entrego em palavras e me entrego quando pinto. (59)


ASPIRAÇÃO – I
Quero apossar-me do é da coisa. (10)


Quero possuir os átomos do tempo. (10)


Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não: quero uma verdade inventada. (25)


Mas bem sei o que quero aqui: quero o inconcluso. Quero a profunda desordem que no entanto dá a pressentir uma ordem subjacente. (31)


Um dia eu disse infantilmente: eu posso tudo. Era a antevisão de poder um dia me largar e cair num abandono de qualquer lei. Elástica. (33)


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