O amor acaba
Paulo Mendes Campos
Belo Horizonte, 28 de fevereiro de 1922 — Rio de Janeiro, 1 de julho de 1991
Belo Horizonte, 28 de fevereiro de 1922 — Rio de Janeiro, 1 de julho de 1991
O amor acaba.
Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio;
acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar;
de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o escarlate das unhas;
na acidez da aurora tropical, depois duma noite votada à alegria póstuma, que não veio;
e acaba o amor no desenlace das mãos no cinema, como tentáculos saciados, e elas se movimentam no escuro como dois polvos de solidão;
como se as mãos soubessem antes que o amor tinha acabado;
na insônia dos braços luminosos do relógio;
e acaba o amor nas sorveterias diante do colorido iceberg, entre frisos de alumínio e espelhos monótonos;
e no olhar do cavaleiro errante que passou pela pensão;
às vezes acaba o amor nos braços torturados de Jesus, filho crucificado de todas as mulheres;
mecanicamente, no elevador, como se lhe faltasse energia;
no andar diferente da irmã dentro de casa o amor pode acabar;
na epifania da pretensão ridícula dos bigodes;
nas ligas, nas cintas, nos brincos e nas silabadas femininas;
quando a alma se habitua às províncias empoeiradas da Ásia, onde o amor pode ser outra coisa, o amor pode acabar;
na compulsão da simplicidade simplesmente;
no sábado, depois de três goles mornos de gim à beira da piscina;
no filho tantas vezes semeado, às vezes vingado por alguns dias, mas que não floresceu, abrindo parágrafos de ódio inexplicável entre o pólen e o gineceu de duas flores;
em apartamentos refrigerados, atapetados, aturdidos de delicadezas, onde há mais encanto que desejo;
e o amor acaba na poeira que vertem os crepúsculos, caindo imperceptível no beijo de ir e vir;
em salas esmaltadas com sangue, suor e desespero;
nos roteiros do tédio para o tédio, na barca, no trem, no ônibus, ida e volta de nada para nada;
em cavernas de sala e quarto conjugados o amor se eriça e acaba;
no inferno o amor não começa;
na usura o amor se dissolve;
em Brasília o amor pode virar pó;
no Rio, frivolidade;
em Belo Horizonte, remorso;
em São Paulo, dinheiro;
uma carta que chegou depois, o amor acaba;
uma carta que chegou antes, e o amor acaba;
na descontrolada fantasia da libido;
às vezes acaba na mesma música que começou, com o mesmo drinque, diante dos mesmos cisnes;
e muitas vezes acaba em ouro e diamante, dispersado entre astros;
e acaba nas encruzilhadas de Paris, Londres, Nova Iorque;
no coração que se dilata e quebra, e o médico sentencia imprestável para o amor;
e acaba no longo périplo, tocando em todos os portos, até se desfazer em mares gelados;
e acaba depois que se viu a bruma que veste o mundo;
na janela que se abre, na janela que se fecha;
às vezes não acaba e é simplesmente esquecido como um espelho de bolsa, que continua reverberando sem razão até que alguém, humilde, o carregue consigo;
às vezes o amor acaba como se fora melhor nunca ter existido;
mas pode acabar com doçura e esperança;
uma palavra, muda ou articulada, e acaba o amor;
na verdade;
o álcool;
de manhã, de tarde, de noite;
na floração excessiva da primavera;
no abuso do verão;
na dissonância do outono;
no conforto do inverno;
em todos os lugares o amor acaba;
a qualquer hora o amor acaba;
por qualquer motivo o amor acaba;
para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba.
* * *
In: "O amor acaba", Paulo Mendes Campos, seleção e apresentação Flávio Pinheiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2013