sábado, 30 de novembro de 2013

PAULO MENDES CAMPOS - O amor acaba

O amor acaba
Paulo Mendes Campos
Belo Horizonte, 28 de fevereiro de 1922 — Rio de Janeiro, 1 de julho de 1991 


O amor acaba. 
Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; 
acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar; 
de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o escarlate das unhas; 
na acidez da aurora tropical, depois duma noite votada à alegria póstuma, que não veio; 
e acaba o amor no desenlace das mãos no cinema, como tentáculos saciados, e elas se movimentam no escuro como dois polvos de solidão; 
como se as mãos soubessem antes que o amor tinha acabado; 
na insônia dos braços luminosos do relógio; 
e acaba o amor nas sorveterias diante do colorido iceberg, entre frisos de alumínio e espelhos monótonos; 
e no olhar do cavaleiro errante que passou pela pensão; 
às vezes acaba o amor nos braços torturados de Jesus, filho crucificado de todas as mulheres;
mecanicamente, no elevador, como se lhe faltasse energia; 
no andar diferente da irmã dentro de casa o amor pode acabar; 
na epifania da pretensão ridícula dos bigodes; 
nas ligas, nas cintas, nos brincos e nas silabadas femininas; 
quando a alma se habitua às províncias empoeiradas da Ásia, onde o amor pode ser outra coisa, o amor pode acabar; 
na compulsão da simplicidade simplesmente;
no sábado, depois de três goles mornos de gim à beira da piscina; 
no filho tantas vezes semeado, às vezes vingado por alguns dias, mas que não floresceu, abrindo parágrafos de ódio inexplicável entre o pólen e o gineceu de duas flores; 
em apartamentos refrigerados, atapetados, aturdidos de delicadezas, onde há mais encanto que desejo;
e o amor acaba na poeira que vertem os crepúsculos, caindo imperceptível no beijo de ir e vir; 
em salas esmaltadas com sangue, suor e desespero; 
nos roteiros do tédio para o tédio, na barca, no trem, no ônibus, ida e volta de nada para nada; 
em cavernas de sala e quarto conjugados o amor se eriça e acaba; 
no inferno o amor não começa; 
na usura o amor se dissolve; 
em Brasília o amor pode virar pó; 
no Rio, frivolidade; 
em Belo Horizonte, remorso; 
em São Paulo, dinheiro; 
uma carta que chegou depois, o amor acaba; 
uma carta que chegou antes, e o amor acaba; 
na descontrolada fantasia da libido; 
às vezes acaba na mesma música que começou, com o mesmo drinque, diante dos mesmos cisnes; 
e muitas vezes acaba em ouro e diamante, dispersado entre astros; 
e acaba nas encruzilhadas de Paris, Londres, Nova Iorque; 
no coração que se dilata e quebra, e o médico sentencia imprestável para o amor; 
e acaba no longo périplo, tocando em todos os portos, até se desfazer em mares gelados; 
e acaba depois que se viu a bruma que veste o mundo; 
na janela que se abre, na janela que se fecha; 
às vezes não acaba e é simplesmente esquecido como um espelho de bolsa, que continua reverberando sem razão até que alguém, humilde, o carregue consigo; 
às vezes o amor acaba como se fora melhor nunca ter existido; 
mas pode acabar com doçura e esperança; 
uma palavra, muda ou articulada, e acaba o amor; 
na verdade; 
o álcool; 
de manhã, de tarde, de noite; 
na floração excessiva da primavera; 
no abuso do verão; 
na dissonância do outono; 
no conforto do inverno; 
em todos os lugares o amor acaba; 
a qualquer hora o amor acaba; 
por qualquer motivo o amor acaba; 
para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba.

Beijo de grafite

Nas últimas décadas, o grafite deixou de
ser simplesmente uma arte improvisada 
nas ruas, registrada em muros e fachadas, 
para ganhar cada vez mais prestígio em  
grandes galerias e museus, mas ainda é
confundida pelos leigos com pichação e 
vandalismo. A arte do grafite pode mudar 
as pessoas, a atitude que elas têm diante 
da vida e do mundo ao redor...

Imagem: “The red umbrella”, grafite do
artista australiano Loui Jover.
  
Veja mais em:
http://semioticas1.blogspot.com.br/2011/10/vida-de-artista.html

Veja também:
http://semioticas1.blogspot.com/2011/07/arte-do-grafite_15.html

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In: "O amor acaba", Paulo Mendes Campos, seleção e apresentação Flávio Pinheiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2013

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