quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

Quando chorar - Clarice Lispector

Quando chorar
Clarice Lispector

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Há um tipo de choro bom e há outro ruim. 
O ruim é aquele em que as lágrimas correm sem parar e, no entanto, não dão alívio. Só esgotam e exaurem. 
Uma amiga perguntou-me, então, se não seria esse choro como o de uma criança com a angústia da fome. Era. Quando se está perto desse tipo de choro, é melhor procurar conter-se: não vai adiantar. 
É melhor tentar fazer-se de forte, e enfrentar. 
É difícil, mas ainda menos do que ir-se tornando exangue a ponto de empalidecer.

Mas nem sempre é necessário tornar-se forte. Temos que respeitar a nossa fraqueza. 
Então, são lágrimas suaves, de uma tristeza legítima à qual temos direito. 
Elas correm devagar e quando passam pelos lábios sente-se aquele gosto salgado, límpido, produto de nossa dor mais profunda.

Homem chorar comove. Ele, o lutador, reconheceu sua luta às vezes inútil.

Respeito muito o homem que chora. Eu já vi homem chorar.


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No livro “A descoberta do mundo”. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Literatura é tratamento

Literatura como tratamento
Moacyr Scliar


Literatura serve para muitas coisas. Serve para informar, serve para divertir — e serve também para curar ou, ao menos, para minorar o sofrimento das pessoas. Duvidam? 
Pois então fiquem sabendo que desde 1981 existe nos Estados Unidos uma Associação Nacional para a Terapia pela Poesia, cuja finalidade é o uso da literatura para o desenvolvimento pessoal e o tratamento de situações patológicas. 
A associação edita o Journal for Poetry Therapy, realiza cursos e confere o título de especialista em biblioterapia. 
O biblioterapeuta trabalha em hospitais, instituições psiquiátricas e geriátricas, prisões. 
O método é relativamente simples: ele seleciona um poema, um conto, um trecho de romance que é lido para a pessoa. A resposta emocional desta é então discutida.
  E respostas emocionais a textos podem ser muito intensas. 
Exemplo eloquente é Werther, de Goethe, cujo jovem personagem se suicida. A publicação da obra suscitou uma onda de suicídios por toda a Europa, coisa que até hoje é evocada quando se discute a veiculação de notícias similares pela mídia. 
O mecanismo básico que aí funciona é o da identificação, algo que começa muito cedo. 

Bruno Bettelheim mostrou que os contos de fadas exercem um papel importante na formação do psiquismo infantil, não apenas fornecendo modelos com os quais a criança pode se identificar, como também provendo uma válvula de escape para as tensões emocionais. 
Na adolescência, os modelos passam a ser outros. E houve época em que os jovens aprendiam a fazer sexo com a literatura conhecida como pornográfica (lembrança pessoal: jovens do Colégio Júlio de Castilhos devorando as páginas suspeitosamente amareladas de um velho livro cujo título não recordo, mas que falava na “grutinha do prazer”). 
E, no século XIX, eram os grandes romances — aqueles de Balzac, por exemplo — que ensinavam as pessoas a viver. 
Esse papel foi assumido pelo cinema e pela TV, mas a proliferação das obras de autoajuda mostra que as pessoas continuam acreditando em livros como guias para a saúde e para a cura.

 Por último, mas não menos interessante, a literatura é importante como fator de estabilidade emocional para os próprios escritores. A associação entre talento e distúrbio psíquico é antiga. 

Aristóteles já observava que o gênio com frequência é melancólico. 
Shakespeare dizia que se associam na imaginação o lunático, o poeta e o amante, o que tem contrapartida no dito popular: “De poeta e de louco todos nós temos um pouco”. 

Kay Redfield Jamison, professora de psiquiatria na Universidade Johns Hopkins, estudou a vida de numerosos poetas e escritores, concluindo que há “uma convincente associação, para não dizer real superposição”, entre temperamento artístico e distúrbio emocional ou mental (doença bipolar, no caso). 
Nessas condições, escrever pode ser uma forma de descarregar a angústia e de colocar (ao menos no papel) ordem no caos do mundo interno. Porque a palavra é um instrumento terapêutico, é o grande instrumento da psicanálise. E a palavra escrita tem a respeitabilidade, a aura mística que cerca textos fundadores de nossa cultura, como é o caso da Bíblia. 
Kafka dizia que era um absurdo trocar a vida pela escrita. Mas ele também reconhecia que sua própria vida era absurda e, nesse sentido, estava optando por uma alternativa com potencial para redimi-lo.
Não precisamos chegar ao extremo de um Kafka. Toda pessoa se beneficiará do ato de ler e de escrever. 
É terapia, sim, e é terapia prazerosa, acessível a todos. O que, em nosso tempo, não é pouca coisa.

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Moacyr Scliar, no livro "Território da emoção". São Paulo: Companhia das Letras, 2013

domingo, 4 de dezembro de 2016

FERREIRA GULLAR - 1930-2016

Quisera ser um gato  
FERREIRA GULLAR - Jornal 'Folha de S.Paulo' - 09/03/2014

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Alegra-me a confiança de um bicho que não fala a minha língua, que não sabe quem sou eu 

Fora os fantasmas que me acompanham e me fazem refletir sobre o sentido da vida, vivo eu, neste apartamento, com uma gatinha siamesa. Que é linda, não preciso dizer, mas, além disso, é especial: quase nunca mia e, quando soa a campainha da porta, se arranca. Nem eu sei onde ela se esconde. 

Ela é, portanto, muito diferente do gatinho que, antes dela, me fazia companhia e que se foi. Morreu de velho, já que nunca havia adoecido durante seus 16 anos de vida. Quando adoeceu, foi para morrer. Não preciso dizer que fiquei traumatizado e não quis mais saber de outro gato. Amigas e amigos me ofereceram um substituto para o meu gatinho, e eu respondia que amigo não se substitui. 

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Os anos se passaram, a dor foi se apagando, até que um belo dia, minha amiga Adriana Calcanhotto chegou aqui em casa com um presente para mim: era uma gatinha siamesa. Faltou-me coragem para dizer não, mesmo porque a bichinha me encantou à primeira vista. Manteve-se arredia por algum tempo, mas logo me aceitou e nos tornamos amigos. 

Hoje me sinto praticamente lisonjeado pelo fato de que, por medo ou desconfiança, enquanto ela foge de todo mundo, me busca pela casa, sobe em minhas pernas e ali se deita, isso sem falar que, todas as noites, dorme em minha cama. 

Confia em mim, sabe que gosto dela e que pode contar comigo para o que der e vier. Essa confiança de um bicho que não fala a minha língua, que não sabe quem sou eu, mas só o que sou dentro desta casa, me alegra. 

E às vezes, olhando-a dormir na poltrona da sala, lembro que para ela a morte não existe, como existe para nós, gente. Ela é mortal, mas não sabe, logo é imortal. A morte, no caso dela, é apenas um acidente como outro qualquer, dormir, comer, brincar, correr; só existirá quando acontecer, sem que ela saiba o que está acontecendo. 

Neste ponto é que a invejo. Já pensou como a vida seria leve se não tivéssemos consciência de que ela acaba? Seria como viver para sempre, tal como ocorre com a gatinha. 

E enquanto penso essas tolices, ela --que se chama Gatinha-- se levanta, vem até mim e começa a se roçar nas minhas pernas, insistentemente. Só então me dou conta de que está pedindo que eu vá até a cozinha e ponha ração no seu prato. Ela não sabe que é mortal, mas sabe muito bem que necessita comer e que quem lhe providencia a comida sou eu. 

A verdade é que vivemos os dois neste apartamento cheio de livros, quadros e móbiles (feitos por mim, não por Calder, ou seja, falsos móbiles) e nos entendemos bem. A Gatinha é diferente do Gatinho, é de outra geração, a geração do pet shop. Por isso mesmo, ela não come carne nem peixe, só come ração. 

Consequentemente, ao contrário do Gatito, que subia na mesa para xeretar meu almoço, ela não está nem aí para comida de gente, só quer saber de ração. E tem mais: só pode ser aquela ração; se mudar, ela não come, cheira e vai embora. 
Aliás, isso criou um problema sério, quando a ração que Adriana trouxera terminou. Como não entendia de rações, ao ver que a dela acabara, fui a um pet shop aqui perto para comprar e, como não tinha a dela, decidi comprar qualquer outra, mas fui advertido pela dona da loja de que teria que ser da mesma ração. 

Fui a outra loja, bem mais longe, e lá também não tinha a tal ração. Pedi a meu neto que a comprasse num pet shop do Humaitá, bairro onde ele mora, e nada, lá também não havia. Desesperado, liguei para Adriana que, imediatamente, me fez chegar aqui em casa dois pacotes com a raríssima ração que a gatinha comia. Respirei, aliviado. 

Depois aprendi que para evitar que ela morra de fome, no caso de faltar sua ração exclusiva, há que ter em casa uma ração parecida e ir misturando à sua até que se acostume. Coisas de gatos modernos, muito diferentes daqueles que, outrora, vagabundeavam aqui pelos telhados e pela rua. 

Mas, se mudou a ração, não mudou a razão que me fez adotá-la como minha companheira de todas as horas, que me acorda, pontualmente, às seis horas da manhã, vindo cheirar meu rosto sob o lençol. E agora a vejo, ali, a poucos metros de mim, deitada na poltrona, livre da morte, nesta tarde de março, num determinado ponto da Via Láctea, onde moramos.

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segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Lima Barreto e o Rio de Janeiro

De 'O Tempo - Magazine'

“O Rio de Janeiro das crônicas de Lima Barreto é a cidade dos contrastes, das revoltas, das ruínas sob o vento do progresso”, escreve a crítica literária Beatriz Resende, “mas é também a expressão de uma paixão tão forte que a outras, mais humanas, não deixa espaço”.
AUTÊNTICA EDITORA

Olhar de Lima Barreto sobre o Rio de Janeiro ganha análise 
Crítica Beatriz Resende reflete sobre relação do escritor com a cidade a partir de crônicas e diários


Essa relação ambígua do escritor carioca com sua cidade natal é o pano de fundo do livro “Lima Barreto e o Rio de Janeiro em Fragmentos” (ed. Autêntica), no qual Beatriz analisa as crônicas e os diários íntimos do autor .

Por muito tempo, as crônicas e os diários ficaram em segundo plano em relação a seus romances, como “Recordações do Escrivão Isaías Caminha” (1909) e “Triste Fim de Policarpo Quaresma” (1911). Mas foi neles que Beatriz buscou os registros fragmentados do amor de Lima pelo Rio, como nos comentários sobre alguns de seus lugares preferidos, do subúrbio do bairro Todos os Santos à rua do Ouvidor e à praia do Leme.
Nelas encontrou também a denúncia vigorosa dos preconceitos e segregações da Belle Époque carioca.
Em uma crônica sobre o governo de Carlos Sampaio, que entre 1920 e 1922 promoveu intervenções como a demolição do Morro do Castelo e a construção da Avenida Beira-Mar, Lima escreve: “Vê-se bem que a principal preocupação do atual governador do Rio de Janeiro é dividi-lo em duas cidades: uma será a europeia e a outra, indígena”.

“O olhar de Lima Barreto sobre o Rio é sempre político. Ele já falava da ‘cidade partida’, registrando as diferenças entre subúrbio, Centro e Botafogo.
Foi o primeiro cronista da linha férrea, gostava de perambular e atravessava a cidade, gastando sapato. Por isso, as grandes reformas da época aparecem em seus romances e crônicas não só pelo lado urbanístico, mas pelo impacto no cotidiano da cidade”, diz Beatriz, professora da UFRJ.

Versão ampliada da tese de doutorado da autora, esgotada há anos, o livro se beneficia da atenção despertada pelos lados cronista e memorialista de Lima Barreto nos últimos tempos.
Em 2004, foram lançados os dois volumes de “Toda Crônica” (2004), compilação dos artigos de imprensa do escritor organizada pela própria Beatriz e por Rachel Valença.
Em 2010, foi publicada uma edição conjunta de “Diário do Hospício”, com as anotações de Lima sobre seu período de internação no hospício da praia Vermelha entre 1919 e 1920, e “Cemitério dos Vivos”, romance inacabado do autor sobre essa experiência.

Para Beatriz, Lima Barreto retoma a tradição da crônica em tom coloquial, fundada por Machado de Assis.
Preterido pela elite literária de seu tempo, ele se sente injustiçado, por um lado, mas também “completamente livre e feliz, podendo falar sem rebuços sobre tudo que julgar contra os interesses do país”, escreve.
Assim, usa as crônicas para expressar seu olhar sobre os excluídos da sociedade brasileira da época, como os negros, as mulheres e os anarquistas: “O governo só protege aos que não precisam: aos pequenos, aos fracos, aos oprimidos, ele oprime mais”.
Esse olhar sobre os excluídos ganha contornos radicais quando Lima é internado no Hospício Nacional de Alienados, no Natal de 1919, depois de uma crise de alcoolismo.
Nos três meses que passa na instituição, encontra bêbados, doentes, maltrapilhos e outros marginalizados pela cidade que se quer moderna e renovada.
Reage por meio da escrita: ainda internado, chega a anunciar em entrevista que está coletando histórias “interessantíssimas” para um livro que narraria “as cenas mais jocosas e as mais dolorosas que se passam dentro dessas paredes inexpugnáveis”.
O romance planejado, “Cemitério dos Vivos”, jamais foi concluído, mas a experiência ficou registrada em “Diário do Hospício”.

“Lendo o diário, fica evidente a habilidade de cronista de Lima Barreto. Depois de uns dias no hospício, quando passa a bebedeira, ele começa a narrar a situação, a fazer um trabalho de campo sobre a estrutura do hospício, seus dirigentes, médicos e pacientes. É a salvação pela escrita”, diz Beatriz.
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sábado, 19 de novembro de 2016

Rosa e Graciliano

Um gênio reprovado
Dois contos escritos por um jovem Guimarães Rosa – e criticados em concurso por Graciliano Ramos – serão finalmente oferecidos ao público
MARCELO BORTOLOTI - Revista 'Época'

ALVO DE CRÍTICA Guimarães Rosa  (à esq.) e Graciliano Ramos (acima). O primeiro modificou seu livro devido aos comentários do segundo (Foto: Eugênio Silva/O Cruzeiro/EM/D.A e arq. O Cruzeiro/EM/D.A Press. Brasil)
 Guimarães Rosa  (à esq.) e Graciliano Ramos (detalhe). 
O primeiro modificou seu livro devido aos comentários do segundo 
(Foto: Eugênio Silva - revista O Cruzeiro/

ALVO DE CRÍTICA

As obras do escritor alagoano Graciliano Ramos e do mineiro João Guimarães Rosa têm pouco em comum. Seus estilos são antagônicos. O primeiro é árido, contido, realista. O segundo, prolixo, místico, quase barroco. 
Os escritores também tiveram pouco contato. Isso não impediu que Graciliano, autor do clássico Vidas secas, alterasse os rumos da carreira de Guimarães Rosa.

Homenageado da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) , Graciliano (1892-1953) foi jurado de um concurso literário da editora José Olympio, em 1938. 
Um dos candidatos era o livro Contos, assinado por Viator
Por trás do pseudônimo, estava Guimarães Rosa (1908-1967), até ali um desconhecido médico mineiro. 
Graciliano achou seu conteúdo desigual, com alguns contos excelentes e outros “ordinários”. Convenceu o júri a não agraciar a obra com o prêmio. 
A vitória ficou nas mãos de Luís Jardim e seu livro Maria Perigosa, obra desconhecida e absolutamente apagada na história da literatura brasileira. 
Quando o livro de Rosa finalmente chegou ao público, oito anos depois, com o nome de Sagarana, estava mais enxuto, sem três contos da versão inicial. 
Eram justamente os contos que Graciliano criticara. 
Rosa chegou a reescrever um deles, publicado posteriormente. Os outros dois, até hoje inéditos, estão preservados no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (USP). 
ÉPOCA submeteu os dois contos a três críticos literários para avaliar a opinião de Graciliano. 
Os textos serão publicados neste ano, num portal que a editora Nova Fronteira prepara sobre Guimarães Rosa.

O júri de 1938 reunia cinco escritores. Na ocasião, Graciliano explicou sua posição: “Votei contra esse livro de Viator. Votei porque dois dos seus contos me pareceram bastante ordinários. (...) Esses dois contos e algumas páginas campanudas, entre elas uma que cheira a propaganda de soro antiofídico, me deram arrepio”. 
Rosa não era exatamente um novato. Anos antes, publicara na revista O Cruzeiro contos de suspense, se aventurara pela poesia e escrevera o livro Magma, que não publicou enquanto vivo. 
Somente com Sagarana, iniciado aos 29 anos, encontrou seu estilo. 
Eram contos passados no interior de Minas Gerais, que dialogavam com a literatura e a filosofia clássicas. 
Após o concurso, Viator desapareceu sem revelar sua identidade. 
Aos pais, falava do carinho que tinha por esse primeiro livro. “Era o favorito do meu pai, porque era o primeiro e porque foi um sobrevivente”, diz a filha de Rosa, Vilma Guimarães Rosa.

Como funcionário do Itamaraty, Rosa foi trabalhar no consulado brasileiro em Hamburgo, na Alemanha. 
Os originais de Sagarana ficaram no Brasil com sua primeira mulher, Lygia. 
Ela tentou levá-los à Alemanha, mas, com a Segunda Guerra Mundial, o governo brasileiro proibiu que mulheres e filhos de diplomatas viajassem. 
Numa noite de 1941, Rosa estava em Hamburgo e acordou com vontade de fumar. Não tinha cigarros em casa. Foi até a loja da esquina, quando soou o alarme alertando para um ataque aéreo iminente. Rosa conseguiu correr para um abrigo, onde passou a madrugada. 
Ao amanhecer, viu que seu prédio fora bombardeado. Ele fora salvo por causa do cigarro, e Sagarana, caso estivesse no apartamento, teria sido destruído. “Meu pai adquiriu, a partir desse incidente, um sentimento místico que influenciou sua obra”, diz Vilma. 

No final de 1944, Rosa conheceu Graciliano Ramos. 
Revelou ser o autor derrotado no concurso e não demonstrou ressentimentos. 
Em 1946, lançou Sagarana. Acatou as sugestões de Graciliano e suprimiu os contos Bicho mau, Questões de família e Uma história de amor
O primeiro, que narra o caso de um fazendeiro picado por uma cobra venenosa, foi praticamente reescrito e entrou no livro póstumo Estas estórias. Os outros dois permaneceram inéditos.

Os críticos que leram os contos a pedido de ÉPOCA se dividem. 
Gostei muito. Graciliano foi severo demais em sua avaliação”, diz Eduardo Coutinho, professor da UFRJ. “Você já encontra uma reflexão filosófica sobre o amor. E a maneira de trabalhar a linguagem é extraordinária.” 
João Adolfo Hansen, da USP, especialista na obra de Rosa, concorda parcialmente com Graciliano: “O conto do médico (Uma história de amor), acho ruim. Mas talvez Graciliano tenha exagerado em relação ao outro”. 
Neste, o namoro, que nunca progride, de um rapaz da capital com uma jovem do interior retrata o conservadorismo do Brasil rural do princípio do século XX. “Graciliano era sintético e direto, talvez achasse aquilo uma frescura. Mas é uma tradução de costumes típicos do interior.” Hansen reconhece em ambos os textos um excesso de termos técnicos de mineralogia e medicina. 
Outra especialista na obra de Rosa, Maria Célia Leonel, da Unesp, diz que os dois textos não têm a mesma elaboração da narrativa e profundidade das outras histórias de Sagarana. “Ele sempre diz alguma outra coisa por trás das histórias que conta. Aqui, parece que ficou tudo na superfície.

Graciliano morreu em 1953 e não pôde ler outro livro de Rosa. Deixou uma profecia sobre o colega: “Certamente ele fará um romance, romance que não lerei, pois, se for começado agora, estará pronto em 1956, quando meus ossos começarem a esfarelar-se”. 
Exatamente em 1956, Rosa lançou seu único romance, Grande Sertão: veredas
Com ele, foi alçado ao primeiro escalão da literatura mundial, de onde nunca mais saiu.

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domingo, 13 de novembro de 2016

Um conto de fadas - análise Junguiana

Rumpelstiltskin 
Hellen Reis Mourão -  agosto de 2016



Rumpelstiltskin ou Rumpelstilsequim é o personagem homônimo e principal antagonista de um conto de fadas original na Alemanha. 
Este conto foi coletado pelos Irmãos Grimm, em 1812, sendo revisado em edições posteriores.

Um pobre moleiro, para impressionar o rei, com o objetivo fazê-lo casar com a sua filha, mente e diz a ele que ela é capaz de fiar palha e transformá-la em ouro.

O Rei chama a moça, fecha-a em uma torre com palha e uma roda de fiar, e exige-lhe que transforme a palha em ouro até a manhã, durante três noites, ou será executada.

A moça já tinha perdido toda a esperança, quando aparece um anão (em algumas versões um duende) no quarto e transforma toda a palha em ouro em troca do seu colar; na noite seguinte, pede-lhe o seu anel. Na terceira noite, quando ela não tinha nada para lhe dar, o duende cumpre a sua função em troca do primeiro filho que a moça tivesse.

O Rei fica tão impressionado que decide se casar com ela, mas quando nasce o primeiro filho do casal, o anão regressa para reclamar o seu pagamento.

A Rainha, que havia esquecido-se dele, ficou assustada e ofereceu-lhe toda a sua riqueza, se este a deixasse ficar com a criança. O anão recusa, mas por fim aceita desistir da sua exigência, mas cria outra: se a Rainha conseguisse adivinhar o seu nome em três dias.

No primeiro dia, ela falhou, mas antes da segunda noite, o seu mensageiro ouve o duende a saltar à volta de uma fogueira e a cantar. E na musica ele diz seu nome Rumpelstilsequim
Quando o anão foi ter com a Rainha no terceiro dia, ela revela o nome dele, e ele perde o seu negócio, e cego de raiva, se divide em dois.

A heroína do conto é uma jovem bonita, mas pobre. E, como heroína, sabemos que ela irá resgatar e salvar algo.
No conto sua mãe é ausente, o que nos faz supor que ela pode ter morrido. 
Além disso, não havia uma rainha. Com isso podemos supor que a sua missão é resgatar o feminino que está desvalorizado. 
Seu pai, ao mentir e dizer que ela transforma palha em ouro lhe dá um valor que mesmo não reconhecido existe nela.

O ato de fiar, tecer é essencialmente feminino. Um trabalho que exercita a paciência e que auxilia a natureza feminina a se desvencilhar do seu lado masculino.

O ouro é algo de grande valor e incorruptível;  nos mitos africanos está ligado à deusa do amor.

Podemos concluir, então, que ela está fiando e tecendo seu valor enquanto mulher e resgatando o feminino na consciência coletiva. 
Mas com isso ela terá de lidar com uma figura zombeteira, um anão ou duende. 
O anão simboliza pequenos impulsos de caráter engraçado ou vulgar.
Muitas histórias dizem que eles fazem o trabalho por nós, o que é o caso aqui. 
Entretanto, ele pede por três vezes algo de valor em troca, mostrando que ela também deve dar algo dela mesma nesse esforço de resgate do feminino e que deve aprender a negociar, ao invés de competir como é típico do masculino.

A questão das três provas é comum nos contos de fadas. 

Ao terminar pela terceira vez de fiar, o rei resolve se casar com ela. Mas ela se esquece do anão, ou seja, ela se esquece desse impulso brincalhão, mas que pode ser muito criativo. E esquecer um impulso faz com que ele retorne com mais força.

E ele retorna querendo o seu bebê.  Ela precisa resgatar seus impulsos maternos.
Para o feminino o amor é mais valioso que ouro.  
Como prova ela precisa conhecer o nome do anão. Isso significa que ela precisa nomear seu conflito.

Em psicoterapia, quando damos um nome ao conflito alcançamos mais consciência.
É um insight que nos diz: “agora sei o que eu tenho!”, o que facilita a assimilação. 

Ao nomear Rumpelstilsequim ela o traz à consciência e ele deixa de ser uma força destrutiva e passa a ser uma força criativa que a ajudará a negociar com as demandas do mundo externo e interno sem perder sua feminilidade.


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Hellen Reis Mourão é analista Junguiana e especialista em Mitologia e Contos de Fadas.
Atua como psicoterapeuta, professora e palestrante de Psicologia Analítica em SP e RJ.
É colunista do site Fãs da Psicanálise.

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Texto de ALBERT EINSTEIN

Albert Einstein

“As leis básicas do universo são simples, mas porque nossos sentidos são limitados, não podemos compreendê-las. Há um padrão na criação.


Se olharmos para uma árvore lá fora com raízes buscando pela água por debaixo do pavimento, ou uma flor que exala o seu cheiro doce às abelhas polinizadoras, ou até mesmo nós mesmos e as forças interiores que nos impulsionam a agir, podemos ver que todos nós dançamos uma música misteriosa, e o flautista que toca a melodia de uma distância, com qualquer nome que queiramos dar-lhe: Força Criativa ou Deus, escapa a todo o conhecimento dos livros.

A ciência nunca está terminada porque a mente humana utiliza apenas uma pequena parte de sua capacidade, e a exploração do mundo pelo homem também é limitada.

Se eu não tivesse uma fé absoluta na harmonia da criação, eu não teria tentado por trinta anos expressá-la em uma fórmula matemática. 
É só a consciência do homem sobre o que ele faz com sua mente que o eleva acima dos animais, e permite-lhe tornar-se consciente de si mesmo e sua relação com o universo.

Eu acredito haver sentimentos religiosos cósmicos. Não entendo como alguém poderia satisfazer estes sentimentos ao orar a objetos limitados. 
A árvore do lado de fora é a vida, uma estátua está morta. Toda a natureza é vida, e vida, como eu a observo, dura e complexa,  rejeita um homem semelhante a Deus.

O homem tem infinitas dimensões e encontra Deus em sua consciência. A religião cósmica não possui outro dogma senão ensinar ao homem que o universo é racional e que o seu destino mais elevado é ponderá-lo e co-criar com suas leis.

Gosto de experimentar o universo como um todo harmonioso. Cada célula possui vida. A matéria, também, possui vida; É energia solidificada. Nossos corpos são como prisões, e estou ansioso para ser livre, mas eu não especulo sobre o que vai acontecer comigo.

Eu vivo aqui e agora, e minha responsabilidade é neste mundo agora. Eu lido com as leis naturais. Este é o meu trabalho aqui na Terra. 
O mundo precisa de novos impulsos morais que, temo, não virão das igrejas, fortemente comprometidas como têm sido ao longo dos séculos.

Talvez esses impulsos devam vir de cientistas na tradição de Galileu, Kepler e Newton. 
Apesar de falhas e de perseguições, esses homens dedicaram suas vidas a provar que o universo é uma entidade única, em que, creio eu, um Deus humanizado não tem lugar.

O cientista genuíno não é movido pelo louvor ou culpa, nem prega. Ele desvenda o universo e as pessoas vêm ansiosamente, sem ser levadas por nada, somente para contemplar uma nova revelação: a ordem, a harmonia, a magnificência da criação!

E conforme o homem se torna consciente das leis estupendas que governam o universo em perfeita harmonia, ele começa a perceber o quão pequeno ele é. 
Ele vê a pequenez da existência humana, com as suas ambições e intrigas, o seu crer em ‘eu sou melhor do que você’.

Este é o começo da religião cósmica dentro dele; a comunhão e o serviço humano tornam-se seu código moral. Sem tais fundamentos morais, estamos irremediavelmente condenados.

Se queremos melhorar o mundo não podemos fazê-lo com o conhecimento científico, mas com ideais. 
Confúcio, Buda, Jesus e Gandhi fizeram mais para a humanidade do qualquer ciência jamais fez.

Temos que começar com o coração do homem – com a sua consciência – e os valores da consciência só podem ser manifestados por um serviço altruísta para a humanidade.



Eu tenho fé no universo, porque ele é racional. Leis ditam cada acontecimento. E eu tenho fé no meu propósito aqui na Terra. Tenho fé em minha intuição, a língua da minha consciência, mas não tenho fé em especulações sobre o Céu e o Inferno. Estou preocupado com este tempo aqui e agora.

Muitas pessoas pensam que o progresso da raça humana está baseado em experiências de natureza empírica, crítica, mas eu digo que o verdadeiro conhecimento é obtido apenas através de uma filosofia da dedução. Pois é a intuição que melhora o mundo, não apenas seguir um caminho trilhado do pensamento.

A intuição nos faz olhar para os fatos não relacionados e depois pensar sobre eles, até que tudo possa ser traduzido em uma lei. Procurar por fatos relacionados significa manter o que se tem em vez de procurar novos fatos.

A intuição é o pai de novos conhecimentos, enquanto que o empirismo nada mais é que um acúmulo de conhecimento antigo. 
A intuição, não o intelecto, é o “abre-te sésamo” de si mesmo.

Na verdade, não é o intelecto, mas a intuição que leva a humanidade adiante. A intuição diz ao homem o seu propósito nesta vida.

Eu não preciso de qualquer promessa de eternidade para ser feliz. Minha eternidade é agora. Eu tenho um único interesse: cumprir o meu propósito aqui onde estou.

Este propósito não me é dado por meus pais ou meu ambiente. É induzido por certos fatores desconhecidos. Esses fatores tornam-me uma parte da eternidade”.
  
ALBERT EINSTEIN
**

Fonte do texto: ‘Einstein e o poeta: Em Busca do Homem Cósmico’ (1983).
A partir de uma série de reuniões que William Hermanns teve com Einstein em 1930, 1943, 1948, e 1954.
Este e outros artigos de Einstein em “Einstein, o enigma do Universo”.

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Do filme "Tempos de Paz"

Monólogo de Segismundo 
por Dan Stulbach – Filme “Tempos de Paz”


Ai de mim! Ai pobre de mim!
Que pergunto a Deus para entender.
Que crime cometi contra Vós?
Pois se nasci, entendo já o crime que cometi.
Aí está motivo suficiente para Vossa justiça, Vosso rigor.
Pois o crime maior do homem é ter nascido!

Para maiores cuidados, só queria saber que crimes cometi contra Vós, além do crime de nascer.
Não nasceram outros também?
Pois se outros nasceram, que privilégios tiveram que eu jamais gozei?

Nasce uma ave, e é embelezada por seus ricos enfeites.
Não passa de flor de plumas, ramalhete alado, quando veloz cortando os salões aéreos recusa piedade ao ninho que abandona em paz.
E eu, tendo mais instinto, tenho menos liberdade?

Nasce uma fera, com uma pele respingada de belas manchas, que lembram estrelas. 
Logo, atrevida, feroz, a necessidade humana lhe ensina a crueldade!
Monstro de seu labirinto!
E eu, tendo mais alma, tenho menos liberdade?

Nasce um peixe, aborto de ovas e lodo, enfeita um barco de escamas sobre as ondas.
Ele gira, gira, por toda a parte, exibindo a imensa liberdade que lhe dá um coração frio!
E eu, tendo mais escolha, tenho menos liberdade?

Nasce um riacho, serpente prateada, que dentre flores surge de repente, de repente. 
Entre flores ele se esconde, e como músico celebra a piedade das flores que lhe dão um campo aberto á sua fuga!
E eu, tendo mais vida, tenho menos liberdade?

Assim, assim, chegando a esta paixão um vulcão, qual Etna, quisera arrancar do peito pedaços do coração!
Que lei, justiça ou razão pode recusar aos homens privilégios tão suaves e sensação tão única!

Que Deus deu a um cristão, a um peixe, a uma fera, a uma ave?


*            *            *


In: "La vida es sueño", ato I, cena I – 
Pedro Calderón de la Barca – 1600-1681)

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Filosofia - Spinoza

Sentenças de SPINOZA

Baruch Spinoza (1632 - 1677)


- É o medo que cria, mantém e alimenta as superstições.

- Uma mesma coisa pode ser ao mesmo tempo boa, ruim ou indiferente.

- O limite do prazer é a saúde.

- Faça primeiro uma ideia positiva, depois uma negativa.

- Se o homem tem uma ideia de Deus, ele deve existir, e o homem tem uma ideia de Deus, portanto...

- A natureza une em si Deus e o homem.

- O homem é uma parte da natureza.

- Todas as coisas e ações na natureza são perfeitas.

- O milagre é um absurdo.

- O ignorante chama de milagre os eventos extraordinários da natureza.

- O ignorante é feliz e infeliz da mesma forma que o sábio.

- Deus não é um juiz.

- Nós não podemos imaginar Deus, mas somente compreendê-lo.

- Compreender é o começo do concordar.

- O desejo é a verdadeira essência do homem.

- O objetivo da Bíblia é ensinar a obediência.

- A fé sem obras é morta.

- A religião sempre se adaptou ao estado.

- A superstição é o meio mais eficaz de governar

- Um entendimento finito não pode compreender um infinito.

- Se não quer repetir o passado, estude-o.

- Buscar a igualdade entre os desiguais é um absurdo

- A natureza abomina o vácuo.

- Não existe medo sem esperança nem esperança sem medo.

- Tudo pode ser causa de prazer, dor ou desejo.

- Adoração é o amor de alguém que admiro.

*            *            *

terça-feira, 11 de outubro de 2016

Se eu pudesse... - Alberto Caeiro

Se Eu Pudesse Trincar a Terra Toda
Alberto Caeiro


Se eu pudesse trincar a terra toda 
E sentir-lhe um paladar, 
Seria mais feliz um momento ... 
Mas eu nem sempre quero ser feliz. 
É preciso ser de vez em quando infeliz 
Para se poder ser natural... 
Nem tudo é dias de sol, 
E a chuva, quando falta muito, pede-se. 
Por isso tomo a infelicidade com a felicidade 
Naturalmente, como quem não estranha 
Que haja montanhas e planícies 
E que haja rochedos e erva ... 
O que é preciso é ser-se natural e calmo 
Na felicidade ou na infelicidade, 
Sentir como quem olha, 
Pensar como quem anda, 
E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre, 
E que o poente é belo e é bela a noite que fica... 
Assim é e assim seja ...

*            *            *

Alberto Caeiro, in "O Guardador de Rebanhos - Poema XXI" 
Heterónimo de Fernando Pessoa

sábado, 1 de outubro de 2016

...as páginas que se vão - Luiz Schwarcz

Acariciando as páginas que se vão — ou qual é o papel do papel
Luiz Schwarcz - 28 setembro 2016


Vocês já sabem o que penso sobre o aspecto tátil do livro. Num dos primeiros posts desta série, falei sobre o momento em que um editor recebe o livro da gráfica e o cheira. 
Comentando sobre o carisma que os livros carregam, que deve ser respeitado quando se elabora uma capa, também destaquei o componente material da edição como parte fundamental do trabalho do editor. 
Na minha opinião, ao pensar no formato e no aspecto de um livro, estamos sempre tentando unir espírito e forma, de certa maneira por entender que o produto com o qual trabalhamos não é um objeto qualquer — ele permanece vivo e mutante mesmo depois de impresso.

Chego agora à questão que me foi colocada por Wellington Machado. Tentarei escrever algumas linhas sobre o papel do papel nas edições dos livros físicos, já que hoje convivemos também com o livro digital, aquele que liga no “on” do nosso tablet e some da tela sozinho quando vamos dormir. Aliás, é curioso pensar — e sem qualquer demérito para com as edições eletrônicas — que livro digital, imagino, cai menos da nossa mão quando adormecemos lendo. 
Suponho que por termos o costume de desligar o tablet ao finalizar a leitura — eu pelo menos desligo — a ocorrência de cair no sono com o livro digital na cama deve ser bem menor. Talvez terminamos a leitura do dia, quando utilizamos aparatos eletrônicos, mais despertos do que com o livro físico, com quem já nos acostumamos a passar a noite juntos.

Vários componentes do papel usado em um livro passam desapercebidos a muitos leitores, mas não são desimportantes. 
Creio que, dado o seu aspecto corpóreo, o livro físico valoriza mais essa relação carismática sobre a qual falei em outro post. Essa pode ser uma das razões de o hábito de ler edições no formato convencional ser tão duradouro, e o apocalipse do livro, como ouvimos dizer desde o advento do rádio, não ter acontecido como previam os mais chegados aos constantes temores com o final dos tempos.

Seguindo essa linha de pensamento, é interessante pensar em alguns aspectos materiais, por exemplo: por que será que, no contato com o livro físico, é tão melhor ler em páginas não tão brancas? 
Por que será que o toque com os dedos em um papel mais poroso cria uma sensação diferente para a leitura?

Recentemente lançamos o livro Viva a língua brasileira!, de Sérgio Rodrigues, e usamos um papel totalmente alvo, com a intenção de manter mais identificadas as cores das ilustrações em preto e laranja, que acompanham a edição. 
Ao receber o primeiro exemplar, confesso que tive um choque.
Desde o segundo ano da editora passamos a usar, de maneira crescente, o papel de cor creme, desenvolvido pela Suzano, em parte talvez devido a um pedido ou incentivo da Companhia das Letras. 
Naquela época eu já me incomodava com as edições brasileiras, todas impressas em papel offset convencional, onde as palavras vibram mais, devido ao contraste entre a tinta escura e a página tão branca. Nos outros países isso não ocorria. 
As edições em capa dura já há muito tempo eram impressas em papel de tonalidade creme, e os pockets usavam um papel-jornal mais caprichado, acinzentado. 
Sabe-se que o papel mais escuro, ou melhor, a diminuição do contraste entre papel e tinta que se dá com essa tonalidade, permite maior descanso para os olhos. Mas, para mim, não é só isso que ocorre. Ao marcar as páginas brancas com a tinta durante a impressão, aparentemente realizamos um ato definitivo. O que está impresso assim permanecerá para sempre, o que está dito não pode ser corrigido, apenas em uma futura edição, ou em um livro que contenha uma revisão das ideias expostas.

Nesse sentido, o preto no branco potencializa esse sentido peremptório inerente às edições físicas; o contraste exacerbado entre papel e tinta tem quase um toque de declaração, transforma o livro em statement, o que, no meu entender, está longe do ideal. 
Acreditar que algo escrito não passará por elaborações pessoais diversas ou imaginar que a página marcada pela tinta não será remarcada com a imaginação dos leitores é um erro típico de escritores donos da verdade, que querem permanecer senhores da sua própria criação. 
Embora a escolha do papel seja um atributo do editor, ele, o papel, de certa forma, representa os olhos ou a mente dos leitores, abertos para conhecer uma história ainda não contada. De alguma maneira, somos nós leitores os papéis em branco, é esta a posição na qual devemos tentar nos colocar previamente, antes de nos encontrarmos com a imaginação do escritor. 
Assim, um papel mais próximo da tinta, que diminua o contraste entre o que é dito e o que se espera ouvir, manifesta maior igualdade entre escritor e leitor, garantindo a harmonia necessária para que um livro solte também a imaginação de quem lê.

Seguindo a mesma linha, acredito que um papel poroso, menos liso e menos uniforme, tem também uma função importante. Ao tocarmos uma página antes de virá-la, sentindo na pele suas irregularidades, inconscientemente nos colocamos em contato com algo que pode mudar durante e após a leitura e lembramos que o livro traz imperfeições que o tornam mais humano.

Antigamente um livro tinha que ser aberto pelo próprio leitor com um cortador de páginas. Era necessário separar as páginas, uma a uma, já que estas vinham agrupadas, demarcando um trabalho final que cabia ao leitor, e não ao autor nem mesmo ao editor ou ao gráfico. 
Cada página trazia, assim, uma dimensão diferente, todas elas marcadas pela imperfeição do corte feito à mão. 
O livro visto de lado não era uniforme, cada folha tinha um tamanho, como que simbolizando as viradas de uma história e o percurso imprevisto da imaginação de quem lê. 
O livro apresentava-se como fisicamente mutante, nos intervalos assinalados pela mudança de página, se não a cada linha ou palavra.

Por vezes demoramos dias para voltar a um livro, e tudo que parecia imutável no papel mudou devido a uma nova condição do leitor ou da leitora. 
O desenrolar de um romance acompanha acontecimentos por vezes dramáticos em nossas vidas. Podemos começar uma história casados e terminá-la solitários, ou tendo nos despedido de alguém importante em nossa vida. 
Será que a página virada é diferente apenas pelo novo sentido agregado pelo autor, pela continuidade da história? 
Ainda hoje, algumas editoras americanas como a Knopf mantêm seus livros com acabamento irregular nas bordas das páginas, fazendo com que eles se assemelhem às edições que exigiam a abertura individual pelo leitor. 
Acho maravilhosos os livros que nos lembram desse tempo, que marcam fisicamente as diferenças que virão com a leitura, aos poucos.

Não quero dizer que o livro era irregular de propósito, para marcar o que imagino ser inerente ao ato da leitura, mas sim que esses sentidos poderiam ou podem ser atribuídos ao formato material de um livro, já que os símbolos não ganham existência por vontade ou intenção de alguém, mas pela riqueza espontânea de nossa vida interior e social.

Por tudo o que tenho dito neste espaço, é fácil verificar o quanto defendo o aspecto simbólico das edições, o quanto penso no livro como algo vivo, objeto de uma criação coletiva, que adiciona os leitores aos criadores originais, na posição mais igualitária possível. 
Se talvez os tenha cansado, caros leitores, com a repetição dessas ideias, com meu apego a detalhes aparentemente tão pequenos, peço que me desculpem. 
Não sei se as ideias começam a escassear, se esse espaço já começa a anunciar o seu próprio final. Quem sabe? 
Como editor, estou muito mais acostumado a ler do que a escrever. Por isso, por vezes me parece difícil ser sempre original ao tentar expressar o que penso. 
Sei, no entanto, que leio os livros como todos os leitores, de forma pessoal e única, assim como viro uma página tentando tirar dela o máximo que posso, acariciando o papel antes de me despedir dele, mesmo que por um brevíssimo instante, e assim partir para o que me espera logo a seguir.

* ** 

terça-feira, 27 de setembro de 2016

Livros - Adriano Dias

Adriano Dias - página 'Semema'


Os livros todos que leio
E rio e choro e mergulho,
Enquanto sou infinito, inteiro,
São só um pedaço, eu ao meio.
O outro que também sou eu
Não abre mão de existir,
Dando conta da realidade concreta.

Assim, 
na mesma medida que sou poeta,
Não vejo motivo para frescura:
Lavo louça, limpo caixa de gordura,
Leio Freud e discuto literatura.
Quero a vida completa,
E a presente,
Não a futura.

*            *            *

Adriano Dias

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Temos vagas... - Eberth Vêncio

TEMOS VAGAS PARA SONHADORES
Eberth Vêncio - in 'Revista Bula'


A taxa de desemprego no país andava um escândalo. Minha falta de inspiração também. Ambas batiam os 15%. “Tempos bicudos”, diziam o meu editor, o IBGE, as Marias e os Josés, por onde quer que eu fosse. 
Com um pouco de sorte, eu ainda estaria empregado até que redigisse este texto. 
Estava atoa na vida, o meu amor me chamou pra ver a banda passar tocando coisas de amor e também para visitar uma agência de empregos do SINE a fim de conhecer quais eram as demandas do mercado de trabalho no Brasil.

Durante a nossa caminhada, fomos atacados por uma chusma de candidatos a vereador (cada um mais eloquente que outro), vimos bad boys hostilizando um antigo compositor brasileiro chamado Francisco, pisamos em titica de cachorro, cruzamos por um motorista aloprado que gritou “Saiam da frente, pedestres de merda!” (no vidro de trás, um adesivo alertava “Este foi Jesus que me deu”) e ainda assim tivemos o disparate, o bom humor para sonharmos acordados com empregos muito mais que perfeitos. 
Eu dizia de um lado. Ela retrucava de outro. 
Divertíamo-nos numa espécie de desafio repentista. 
Afinal, o mundo ainda tinha vagas para sonhadores.

— Apanhador no campo de centeio! — eu comecei.
— Coreógrafa de flores! — ela disse.
— Rasgador de verbos.
— Poetisa profissional, mas, sem carteira assinada.
— Caçador de mim.
— Pintora de arco-íris.
— Vagamundo.
— Eletricista de vagalumes.
— Cheirador de axilas das Indústrias Avon.
— Domadora de demônios da Assembleia de Deus.
— Dormidor de conchinha, confiável.
— Enxugadora de gelo, obstinada.
— Ghost writer de Zíbia Gasparetto.
— Pajem de tartaruga.
— Afiador de flechas para cupidos.
— Acendedora de relâmpagos.
— Novo messias com experiência comprovada em milagres.
— Animadora de velórios.
— Abanador de moscas.
— Estrategista de orgasmos.
— Dançarino de chuva.
— Chaveira de corações.
— Fonoaudiólogo de árvores.
— Ventríloqua de loucos.
— Arquiteto de planos de fuga.
— Veia bailarina.
— Adestrador de sonhos impossíveis.
— Bela, recatada e do lar.
— Goleiro milagreiro.
— Incendiária de sóis.
— Leiteiro da Via Láctea.
— Confeiteira do pão que o diabo amassou.
— Maestro de passarinhos.
— Boba alegre.
— Cuidador de velhas esperanças.

*            *            *

domingo, 11 de setembro de 2016

Viver sem medo - Eduardo Galeano


Eduardo Galeano
VIVER SEM MEDO
Eduardo Galeano

Se você ama, terá AIDS;
Se fuma, terá câncer;
Se respira, terá contaminação;
Se bebe, terá acidentes;
Se como terá colesterol;
Se fala, terá desemprego;
Se caminha, terá violência;
Se pensa, terá angústia;
Se duvida, terá loucura;
Se sente, terá solidão

Para ter fôlego é preciso ter desalento;
Para se levantar tem que  saber cair;
Para ganhar tem que saber perder.
E temos que saber que assim é a vida,
e que você cai e se levanta muitas vezes.

Alguns caem e não se levantam nunca mais,
geralmente os mais sensíveis,
os mais fáceis de se machucar,
as pessoas que mais dor sentem ao viver.
Os mais sensíveis são mais vulneráveis.

Em contrapartida, esses que se dedicam a atormentar
a humanidade têm vida longuíssima, não morrem nunca.
Porque não têm uma glândula, que na verdade, é bem rara
que chama consciência,
aquela que nos atormenta pelas noites.

Acho que o exercício de solidariedade,
quando se pratica de verdade, no dia a dia,
é também um exercício de humildade
que ensina você a se reconhecer nos outros
e a reconhecer a grandeza escondida nas coisas pequeninas.
O que implica denunciar a falsa grandeza nas coisas ‘grandiosas’.

*            *            *

Notinha: O grifo é meu

Um livro deve ser... - Adriel Dutra

Um livro deve ser… – Kafka
Adriel Dutra -  na página 'Fãs da Psicanálise' - 1 de fevereiro de 2016

Ilustração: Teresa Wiles

Nunca duvidemos da potência de um livro, um livro pode mudar rumos – me lembro como perdi o rumo no primeiro parágrafo de “O Anti-Édipo” de Deleuze & Guattari e nunca mais fui o mesmo, primeiro parágrafo!

Um livro pode nos fazer acontecer de modos radicalmente diferentes daqueles que querem que sejamos… um livro que provoque pensamentos, pois o pensamento é uma grande potência. 
Nós quase não nos damos conta de que o pensamento é uma grande potência porque, afinal, “pensar é tão natural” – pensamos.

Talvez demos pouco valor ao pensamento porque estamos desacostumados a pensar, desacostumados a pensar e muito acostumados a pensar o já pensado – reproduzir. 
Não que precisemos inventar a roda a todo instante, mas perceber as afetações e as relações que estabelecemos com o pensamento, o corpo e nossos modos de existir junto aos acontecimentos do mundo. 
Fora disso estamos apenas reproduzindo o que já está pensado.

Precisamos provocar o pensamento ou a gente vai se entupir de lixo despejado diariamente pela mídia, pela religião, pelo estado, pela economia, pelos especialistas… por todo tipo de gente que quer fazer da vida um grande negócio, e isso envenena a vida, é tóxico. 
Livro não é a única coisa que nos provoca, mas é uma das fundamentais. E não o livro pelo livro, não a quantidade, a lista de leitura do mês, a lista dos 5 maiores maiores escritores de literatura, a lista dos mais vendidos, a lista dos indicados … não! precisamos de um livro desses que Kafka chama de um machado para o mar congelado que há dentro de nós.   

Um machado para nos arrancar do círculo pessoal a que estamos habituados, das conversações edipianas do almoço familiar de domingo, da nossa falsidade diária com que nos cumprimentamos no trabalho e nos elevadores – um machado… para descobrir a grande potência do pensamento! 
A pergunta espinozana para o corpo, nas devidas proporções, também caberia aqui: o que pode um livro?

"É bom quando nossa consciência sofre grandes ferimentos, pois isso a torna mais sensível a cada estímulo. 
Penso que devemos ler apenas livros que nos ferem, que nos afligem. 
Se o livro que estamos lendo não nos desperta como um soco no crânio, por que perder tempo lendo-o? Para que ele nos torne felizes, como você diz? 
Oh Deus, nós seríamos felizes do mesmo modo se esses livros não existissem. 
Livros que nos fazem felizes poderíamos escrever nós mesmos num piscar de olhos. 

Precisamos de livros que nos atinjam como a mais dolorosa desventura, que nos assolem profundamente – como a morte de alguém que amávamos mais do que a nós mesmos –, que nos façam sentir que fomos banidos para o ermo, para longe de qualquer presença humana – como um suicídio. 


Um livro deve ser um machado para o mar congelado que há dentro de nós. " F. KAFKA


*            *            *


sábado, 10 de setembro de 2016

Por que ler Guimarães Rosa? - Miquéias Sartorelli

Por que ler Guimarães Rosa?
Miquéias Sartorelli -  Ensaio em 'Homo Literatus'

Sobre como a leitura das obras de Guimarães Rosa auxilia a reconhecer as diferenças do outro

“O que mais vou escrever além do Veredas? Já sei.”


A educação básica e, sobretudo, os cursinhos pré-vestibulares têm uma categoria curiosa para enquadrar Guimarães Rosa na história da literatura. Para eles, o escritor mineiro pertence à terceira geração do nosso modernismo. No entanto, esse rótulo não diz quase nada relevante sobre seus traços norteadores ou suas contribuições para a ficção brasileira. 
Aliás, quanto mais avançamos no sentido temporal das escolas literárias, mais as nomenclaturas dão sinal de clara insuficiência.

O que interessa aqui, contudo, não é debater os limites e malefícios desse modo particular – infelizmente soberano – de apresentar a literatura nas escolas, mas sim fazer um sobrevoo mais rente a dois aspectos desse autor imprescindível para a cultura brasileira: o aspecto fabulista e o aspecto regionalista.

Quem procurar pela bibliografia de Guimarães Rosa talvez possa se enganar no que diz respeito ao volume de sua produção. 
São apenas cinco livros publicados em vida e três póstumos. Estreia com Sagarana, em 1946, reaparece dez anos depois com Corpo de Baile e Grande Sertão: Veredas e termina, na década de 1960, com Primeiras Estórias e Tutaméia
Após a morte, são editados Estas Estórias, Ave, Palavra e Magma, sendo os dois últimos procurados, em larga medida, mais por pesquisadores que por leitores não especializados.

Essa aproximada meia dúzia de obras, entretanto, enfeixa um extraordinário número de narrativas, causos, estórias, contos e enredos. 
Assim, tudo se sagaranamultiplica, prolifera-se. Ao contrário de muitos escritores e escritoras que parecem, a cada livro lançado, gravitar sempre em torno de semelhante entrecho, 
Rosa é prolífico em criar renovadas situações e personagens.

Sua espantosa capacidade de fabulação nos leva ao primeiro ponto de interrogação que consideraremos, pois crucial no campo da estética e incontornável para cada pessoa que se proponha a escrever: é possível ainda contar histórias?

O filósofo alemão Theodor Adorno, em ensaio fundamental sobre a posição do narrador no romance, afirma que não, em especial se a intenção for continuar sob as mesmas roupagens do século XIX. Ressalta a impossibilidade de narrar depois do abalo que as grandes guerras provocaram na sensibilidade humana. 
Decorreria desse impacto terrível um deslizamento da antiga figura do contador de aventuras para a fragmentação e dispersão do modo de expor os dados da experiência, incapaz agora de ordenar os acontecimentos e coisas do mundo.

Nesse sentido, não é estranho que ele defenderá as vanguardas, expressões dessa ruptura com o modelo narrativo tradicional que remonta, em última instância, à oralidade. 
A posição do frankfurtiano, no limite, cristaliza ideias que estão no cerne das grandes questões da modernidade.

Ora, Grande Sertão: Veredas, por exemplo, é uma resposta formidável a esse impasse. 
Sem apostar em realismos, algo também combatido veementemente por Adorno, o livro é um rico painel de histórias. Vale registrar que Riobaldo, protagonista do romance, não deixa de sublinhar a arbitrariedade que conduz sua fala, o distorcimento dos fatos pela memória, ao longo do envolvente relato de sua vida; no entanto e igualmente, não se furta ao ato de narrar. 
Em resumo, a perspectiva desfigurada se faz sentir também na obra, mas com outros propósitos. 
No lugar de plasmar cruamente um mundo desencantado, investe na tentativa de reencantá-lo com histórias e momentos poéticos. Não que tal resposta seja a solução, o único caminho possível, mas representa uma alternativa.

A título de comparação, tomemos o caso da poesia concreta, movimento cosmopolita sintonizado com o que havia de mais moderno e radical no panorama literário contemporâneo a Rosa. Arquitetada sobre princípios de veredasdesintegração de linguagem/comunicabilidade, autorreferência e autonomia da obra de arte e capitaneada pelos irmãos Haroldo e Augusto de Campos e pelo não menos importante Décio Pignatari, a poesia concreta pouco se interessava em contar algo ou investir em conteúdo, a preocupação era entusiasticamente formal.

Guimarães Rosa percorre, como observamos, vias diferentes. 
Além disso, inscreve-se numa tendência regionalista que, embora dominante nos anos 1930, já sinalizava certo esgotamento naquela conjuntura marcada pelo desenvolvimentismo.

Fator decisivo para nosso segundo ponto de interrogação: é possível ainda ser regionalista?

Nome destacado nos estudos rosianos, Walnice Nogueira Galvão, compreende o lugar de Rosa na literatura brasileira como uma síntese de duas vertentes literárias: o já citado filão regionalista e a linha espiritualista. 
Em razão disso, conciliaria descrição da vida sertaneja e especulação metafísica. 
O autor mostraria que o mais papudo dos catrumanos dos rincões do Brasil pode aspirar à transcendência, mesmo sendo iletrado. Visão bem distinta de uma abordagem que representa o pobre como tipo social, sem qualquer densidade psicológica.

Um dado importante de frisar é que a ficção introspectiva, herdeira do romance católico francês, é algo relativamente novo, enquanto a prosa ao rés-do-chão, comprometida com a pesquisa geográfica e social, é velha companheira das letras nacionais. Esteve presente desde os cronistas coloniais, passando pelos subprodutos indianistas e sertanistas do romantismo. 
Mais adiante, ganha novo sopro com autores naturalistas e chega ao limiar do modernismo paulista. Nos anos 1930, dá um grande salto de qualidade nas mãos de um Graciliano Ramos ou uma Rachel de Queiroz, em especial porque coincide com a formação de um mercado editorial e com a ampliação de um público leitor. 
Nesse contexto, o papel do livreiro José Olympio é decisivo.

Isso tudo faz com que a vertente regionalista seja um programa estético dominante entre nós, mas que em fins da década 1940 sofra, por outro lado, sua contrapartida mais incisiva: o processo de urbanização.

Vidas Secas (1938) e O Quinze (1930), para citar os títulos consagrados dos nomes acima elencados, tratam da diáspora nordestina. Mas o que vem depois? E quando parte significativa da população das zonas rurais já se deslocou para as cidades, como São Paulo ou Brasília?

Talvez possamos nos valer de uma equação entre os mundos rural e urbano: quanto mais incorporada e diluída a cultura dos interiores do país pela modernização, mais o projeto literário regionalista arrefece. Daí a sensação de enfraquecimento desse modelo.

No entanto, contrariando todas as expectativas, Guimarães Rosa aparece com suas obras na esteira regionalista e prova que ainda é possível retirar desse universo uma ficção de inconteste qualidade.

Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fecho”, define Riobaldo já nas primeiras páginas de Grande Sertão. 
Não são apenas os seres que têm profundidade psicológica, mas o próprio lugar. 
O sertão é vasto como os meandros da alma humana, é onde começa e termina, grosso modo, toda a obra de Rosa. Sertão de Minas, dos Gerais, menos árido e de rios gigantescos como o São Francisco.

É nesse espaço geográfico e simbólico, sertanejo e místico, que o autor situa também suas estórias (para usar o termo com que ele insistia em designar os próprios contos), narrativas estas do calibre de “A Hora e Vez de Augusto Matraga”, “Desenredo”, “Sorôco, sua Mãe, sua Filha” e “A Terceira Margem do Rio”.

Diferentemente da síntese algo horizontal de tendências sugerida por Walnice, o que se observa é um movimento vertical. 
O autor supera o filão regionalista menos pela fusão de tradições opostas do que por uma investida por dentro da vertente. 
Sua observação crava-se tão agudamente na realidade que atinge o âmago de questões primordiais (a morte, o amor, a existência ou não do diabo, a ambiguidade dos seres, o sentido da vida, etc.), e não tópicos estritamente regionais. 
Paradoxalmente, quando a literatura cola no real, ela se libera como ficção de alto nível. O que indica que Guimarães Rosa não abandona propriamente o regionalismo, mas sim dá a ele dignidade, mostrando-nos que é de rumos improváveis que surgem grandes obras.

Nesses termos, as regiões afastadas dos grandes centros e as pessoas pobres não são, por isso, menos encantadoras ou cruéis. 
São, na verdade, tão complexas e inconstantes quanto os homens e mulheres letradas – leitores e leitoras de literatura.

É justamente em função desse olhar respeitoso e livre de um ranço de superioridade que Rosa rompe o pitoresco, fazendo-nos enxergar e reconhecer, pela leitura, as diferenças do outro. Identificando, ainda assim, o lastro comum de humanidade entre um jagunço e um doutor da cidade, como em Grande Sertão, numa conversa que tem muito a nos revelar e emocionar.

Para concluir, convém notar que esses dois aspectos são, por um lado, exemplares de que talvez, em última análise, “nunca” seja uma das palavras que não rima com arte, território no qual é sempre possível ir além. 
Por outro, são instigantes convites para ler Guimarães Rosa e se deliciar com as histórias sempre cativantes de seus sertanejos.


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