domingo, 24 de abril de 2011

RUBEM BRAGA


O texto que se segue é de Rubem Braga, escrito em 1959, e se insere em uma de suas coletâneas entre centenas de crônicas, que o consagrou como um dos melhores escritores na literatura brasileira. Ele é reverenciado merecidamente na categoria de "o" cronista nacional.
A crônica baseada no que é "corriqueiro" é atemporal, assim como toda arte, inclusive a arte de escrever ; este imprudente ofício de viver em voz alta - como o cronista nos fala.
Soando as palavras como notas musicais, em cada linha, buscando a harmonia em cada letra e assim se faz em rima uma sintonia de algum sentido no tempo vivido. Compasso, descompassado. Passo.
Ana Maria Rodrigues , no blog "Canto ideal".


"Tanto que tenho falado, tanto que tenho escrito - como não imaginar que, sem querer, feri alguém? Às vezes sinto, numa pessoa que acabo de conhecer, uma hostilidade surda, ou uma reticência de mágoas. Imprudente ofício é este, de viver em voz alta.

Às vezes, também a gente tem o consolo de saber que alguma coisa que se disse por acaso ajudou alguém a se reconciliar consigo mesmo, ou com sua vida de cada dia: a sonhar um pouco, a sentir uma vontade de fazer alguma coisa boa.

Agora sei que outro dia eu disse uma palavra que fez bem a alguém. Nunca saberei qual palavra foi; deve ter sido alguma frase espontânea e distraída que eu disse com naturalidade porque senti no momento - e depois esqueci.

Tenho uma amiga que certa vez ganhou um canário, e o canário não cantava. Deram-lhe receitas para fazer o canário cantar; que falasse com ele, cantarolasse, batesse alguma coisa no piano; que pusesse a gaiola perto quando trabalhasse em sua máquina de costura; que arranjasse para lhe fazer companhia, algum tempo, outro canário cantador; até mesmo que ligasse o rádio um pouco alto durante uma transmissão de jogo de futebol...mas o canário não cantou.

Um dia a minha amiga estava sozinha em casa, distraída, e assobiou uma pequena frase melódica de Beethoven - e o canário começou a cantar alegremente. Haveria alguma secreta ligação entre a alma do velho artista morto e o pequeno pássaro cor de ouro?

Alguma coisa que eu disse distraído - talvez palavras de algum poeta antigo - foi despertar melodias esquecidas dentro da alma de alguém. Foi como se a gente soubesse que de repente, num reino muito distante, uma princesa muito triste tivesse sorrido. E isso fizesse bem ao coração do povo; iluminasse um pouco as suas pobres choupanas e as suas remotas esperanças."


RUBEM BRAGA

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