''Desejamos apaixonadamente que algo nos salve dos destinos biológicos para que toda poesia e toda grandeza não sejam excluídas deste mundo.'' MURIEL BARBERY in "A elegância do ouriço"
sexta-feira, 9 de setembro de 2011
GUIMARÃES ROSA - Grande Sertão...
(...)" SERTÃO É ISTO: O SENHOR EMPURRA PARA TRÁS, MAS DE REPENTE ELE VOLTA A RODEAR O SENHOR DOS LADOS. SERTÃO É QUANDO MENOS SE ESPERA;" (...)
"O que, por começo, corria destino para a gente, ali, era: bondosos dias. Madrugar vagaroso, vadiado, se escutando o grito a mil do pássaro rexenxão - que vinham voando, aquelas chusmas pretas, até brilhantes, amanheciam duma restinga de mato, e passavam, sem necessidade nenhuma, a sobre. E as malocas de bois e vacas que se levantavam das malhadas, de acabar de dormir, suspendendo corpo sem rumor nenhum, no meio-escuro, como um açúcar se derretendo no campo. Quando não ventava, o sol vinha todo forte. Todo dia se comia bom peixe novo, pescado fácil: curimatã ou dourado; cozinheiro era o Paspe - fazia pirão com fartura, e dividia a cachaça alta. Também razoável se caçava. A vigiação era revezada, de irmãos e irmãos, nunca faltava tempo para à-toa se permanecer. Dormi sestas inteiras, por minha vida. Gavião dava gritos, até o dia muito se esquentar. Aí então aquelas fileiras de reses caminhavam para a beira do rio, enchiam a praia, parados, ou refrescavam dentro d'água. Às vezes chegavam a nado até em cima duma ilha comprida, onde o capim era lindo verdejo. O que é de paz, cresce por si: de ouvir boi berrando à forra, me vinha idéia de tudo só ser o passado no futuro."
(...)
"Eu vinha tão afogado. Dormi, deitado num pelego. Quando a gente dorme, vira de tudo: vira pedras, vira flor. O que sinto, e esforço em dizer ao senhor, repondo minhas lembranças, não consigo; por tanto é que refiro tudo nestas fantasias. Mas eu estava dormindo era para reconfirmar minha sorte. Hoje, sei. E sei que em cada virada de campo, e debaixo da sombra de cada árvore, está dia e noite um diabo, que não dá movimento, tomando conta. Um que é o romãozinho, é um diabo menino, que corre adiante da gente, alumiando com lanterninha, em o meio certo do sono. Dormi, nos ventos. Quando acordei, não cri: tudo o que é bonito é absurdo - Deus estável. Ouro e prata que Diadorim aparecia ali, a uns dois passos de mim, me vigiava."
* * * *
Grande Sertão: Veredas, Livraria José Olympio Editora, p.218-219 -14ª ed. - 1980
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário