Dizeres de Estamira
BRASIGOIS FELÍCIO EM 29/06/2010 ÀS 03:31 PM – Revista Bula
Estamira é uma mulher do povo, catadora em um dos lixões da Baixada fluminense. Dizem que é doida de pedra, mas é de uma lucidez delirante, tem um discurso apocalíptico, o que teria um Nietzsche antes de mergulhar na escuridão, ou de um Glauber Rocha, na fase em que anunciou ao universo ser o General Golbery do Couto e Silva um gênio da raça, ou um Geraldo Vandré, ao propor uma santa como padroeira do Exército.
Mire e veja: louco talvez seja quem assim o diz — e não é feliz. Estamira jura de pés juntos que é melhor não ser um normal, normoticamente encaixotado na vidinha hipócrita e trivial do burguês com 90% de cifras na alma enferrujada.
Pouco e malmente esquentou bancos de escola. Menos ainda leu Clarice Lispector, nem sabe quem ela foi — nem é afeita à leitura de livros, menos ainda tem rompantes de ser leitora ou poetisa. Contudo, uma poesia alucinada brota, em cascata, por sua boca sempre sorridente, a não ser quando fica brava com a humanidade, e dana a lançar faíscas, estalos de Vieira, em frases cortantes como navalha.
Coerência em sua fala catártica e apoplética quase não há — mas perguntar não ofende, lógica e acessibilidade à mente cartesiana e superficial também não existe nas obras de James Joyce, de Clarice Lispector, de Guimarães Rosa, Sousândrade, e de certos poetas vanguardistas? Como no discurso viperino, lançado às escuta impossível da cidade vertiginosa, repleto de indignação e raiva, que proferiu no lixão, diante de cineastas que a filmavam: “Existe a lucidez e a ilucidez. A gente aprende alguma coisa de tanto lucidar”.
Mais adiante, assumindo a postura de um Antonio Conselheiro de saias, pregando aos fanáticos insurrectos, antes do trágico e covarde assalto final aos casebres de Canudos: “Vocês não aprenderam nada na escola. Vocês só copiam hipocrisias e mentiras charlatais!”. Não bastando o peso da acusação, dirigida a toda a humanidade, e sem excluir a equipe de cineastas que filmava seu discurso apocalíptico: “Eu não sou como vocês, que são apenas robôs sanguíneos!”.
Para Estamira, “Neste mundo de maldades não tem mais o inocente. O que tem, isto sim, por todo lado, é o esperto ao contrário”.
Comovente de se ver é o prazer de Estamira no cozinhar para suas netas, que de vez em quando a visitam, em seu barraco, na favela. Ou a ternura e cuidado com que cuida de seus muitos cães e gatos. Tudo em seu casebre é limpo.
Psiquiatras que lhe passam remédios para amenizar o que chamam de surtos de alucinação, tratam de Estamira como uma delirante, apenas. Não é de se espantar: Lima Barreto, Antonin Artaud, Cruz e Sousa, José Décio Filho, e outros gênios da literatura foram internados como doidos de pedra — sendo que este último escreveu suas melhores obras no hospício, entre uma e outra sessão de eletro-choque.
Para não dizerem que não terminei esta crônica com os dizeres de Estamira, vão aqui mais umas faíscas de seu lucidar delirante: “Tempo eterno é tempo infinito, mas tem o além e o além do além. Nenhum cientista foi até o além, quanto menos no além do além. Para mim, tudo o que nasce é nativo, isto é, natal”.
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Morre Estamira Gomes de Sousa, personagem-título do premiado documentário brasileiro
"Estamira", morreu no início da noite desta quinta-feira - 28 de julho de 2011 - , no Rio.
Segundo a Secretaria municipal de Saúde, Estamira, de 70 anos, estava internada no Hospital Miguel Couto, na Gávea, Zona Sul da cidade, desde a última terça-feira (26) e morreu com consequência de uma septicemia (infecção generalizada).
Marcos Prado, diretor do documentário, falou sobre o convívio com a catadora de lixo, que também era diabética, e que há mais de 20 anos trabalhava no aterro sanitário em Gramacho, localizado no município de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense.
"Foi fascinante. Ela era quase que uma profetisa dos dias atuais, uma pessoa muito legítima. Jamais montamos suas frases na edição. Todos os discursos incluídos no filme são contínuos. Ela acreditava ter a missão de trazer os princípios éticos básicos para as pessoas que viviam fora do lixo onde ela viveu por 22 anos. Para ela, o verdadeiro lixo são os valores falidos em que vive a sociedade", comentou Prado.
Ernani, um dos três filhos deixados por Estamira, ainda não sabe exatamente qual será o destino do corpo da mãe.
"Estamos querendo fazer o sepultamento no Cemitério do Caju, onde minha avó foi enterrada, mas ainda não tive muito tempo para resolver essas coisas. Por isso, não sei quando será o enterro".
Negligência
Tanto Ernani quanto o diretor Marco Prado, que ajudou na internação da catadora, acusam o hospital de negligência.
"Ela foi inadequadamente atendida. Ficou literalmente abandonada nos corredores do hospital sem nenhum tipo de atendimento, só com o filho como testemunha. E isso quando já existia o diagnóstico de infecção generalizada. A indignação é grande. E é triste saber que outras Estamiras vão morrer pelo mesmo descaso", destacou o cineasta.
Procurada pelo G1, a Secretaria Municipal de Saúde negou as acusações e afirmou que em momento algum a paciente foi acomodada em um dos corredores do hospital, onde, segundo a administração da unidade, é proibido internar pacientes.
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Olhar em redor ... não faz mal pra ninguém.
ResponderExcluirGostei.
João Carlos
Obrigada, João Carlos
ResponderExcluirHá vozes que não são percebidas. Vem então a lucidez dos sentimentos a dizer que não há 'loucura' em se pensar diferente dos demais.
Abraços