Trem mineiro
André Felipe Souza Cecílio (*)
Um mineiro só é autêntico depois que viaja de trem. Mesmo que seja uma viagenzinha de Monlevade a Fabriciano.
O trem é uma parte essencial da personalidade de toda pessoa que nasce nos domínios de Minas. Por isso, o mineiro que nunca viajou puxado por uma locomotiva, seja das antigas Marias-Fumaça ou das modernas e tecnológicas máquinas atuais, não é e nunca será um mineiro completo até que sinta o leve sacolejar de um vagão em movimento.
O mineiro que nunca se deixou levar pelos trilhos convive sempre com a perpétua agonia de quem tem a alma incompleta.
"Maria-Fumaça não canta mais..."
É que o trem carrega em si mais do que apenas passageiros.
Em cada vagão, em cada poltrona, tem um pequeno pedaço da história de um povo que nasceu, cresceu e amadureceu convivendo com as idas e vindas da majestosa serpente de ferro por entre as cidadezinhas que se formavam aqui e ali.
E, a cada manhã, a locomotiva foi se acostumando a receber e desejar um simpático “bom dia!” em toda estação.
E se acostumou, também, a ver gerações de crianças que corriam aos risos e gargalhadas ao seu lado e que, depois, se tornavam jovens a embarcar-lhe em busca de estudos na capital até o dia em que faziam o caminho de volta, já doutores e não tornavam a aparecer até chegada a vez de embarcar os seus filhos, que, há pouco, eram as novas crianças correndo, para completar e reiniciar o ciclo.
A vida mineira se vê repetindo e recomeçando em cada estação.
Por isso, só um mineiro é capaz de compreender a mistura de tristeza e alegria cantada pelo apito de um trem.
A vida passa como um trem vagaroso.
De certa forma, entrar em um trem – não importa em que lugar do mundo – é, também, fazer uma breve viagem por Minas.
A confortável monotonia e o passar lento e distante das paisagens do outro lado da janela remetem à própria vida mineira, que passeia igualmente vagarosa pela rua que leva à praça da matriz de uma cidadezinha qualquer; os sorrisos que se abrem nas chegadas às plataformas carregam o mesmo afeto que se encontra nas cozinhas, enquanto se toma um cafezinho à espera da fornada de pão de queijo caseiro; até o “só-não-diga-que-eu-te-disse” feito pelas rodas sobre o trilho também é o mesmo do que aquele que permeia as conversas das comadres às janelas e aos portões.
É como se cada trecho de todas as estradas de ferro se passasse em território mineiro.
E todo mineiro, por menos mineiro que se sinta, também carrega todo um trem em si.
Assim como um trem, o mineiro entende que não consegue alçar vôos como os aviões, contudo, sabe-se grande como nenhuma aeronave – apesar de nem sempre saber ao certo quanto.
Afinal, é a mesma suntuosidade simplória de uma locomotiva em movimento que sustenta o orgulho de um filho de Minas.
E, tal qual um bom trem, cada mineiro carrega os seus próprios vagões com suas respectivas cargas e passageiros sem dividi-los ou abandonar um ou outro mais de trás.
Um mineiro jamais abandona um vagão, não importa seu tamanho ou seu peso, pois é o mesmo motor que puxa os vagões de um trem que impulsiona o coração de um mineiro (entretanto, talvez seja mais fácil parar um trem inteiro do que um único mineiro determinado).
O trem é a metáfora do mineiro, e vice-versa
Mas, assim como o mineiro não se completa sem o trem, uma viagem de trem só é autêntica se for em solo mineiro.
Sobre os trilhos de Minas, fica evidente a cumplicidade entre as existências do trem e do mineiro, de Minas e da viagem.
A equivalência é tamanha que fica difícil decidir se o trem é a parte do todo que é Minas ou se é o contrário. Talvez o trem seja a metáfora do mineiro, e vice-versa.
De qualquer forma, essa é uma percepção à qual se deve chegar sozinho, viajando pelo interior da alma mineira – caminho pelo qual, aliás, só se vagueia de trem. Pois é apenas ao passar entre matas, rios, morros e serras sobre uma estrada de ferro que se têm consciência do universo que é Minas.
Só nessa hora é que se sente a consistência da alma mineira, que é a consistência do ferro sobre o qual corre o trem, do ferro suado pelas montanhas e recolhido pelos vagões; do ferro que alimentou tantos sonhos de ouro, mas que tornou possível um outro sonho que, hoje, chamamos realidade.
Esse ferro é o ferro que, acima de tudo, corre nas veias de todo mineiro, mas que só se pode sentir no sacolejar de um trem. E é tão poderosa a força desse ferro que, ao se acomodar em um vagão, até quem nasceu em outros estados ou países se sente um pouco mineiro e suspira, sem querer, “Oh, Minas Gerais!”.
“O maior trem do mundo
Leva minha terra
Para a Alemanha
Leva minha terra
Para o Canadá
Leva minha terra
Para o Japão”
(Carlos Drummond de Andrade)
* * *
(*) André Felipe Souza Cecílio é poeta, escritor, músico, compositor e ator mineiro de 20 anos. Já caminha para o segundo livro e carrega, no currículo, a classificação do poema "Versete Rosa" entre os dez melhores poemas do Concurso Guimarães Rosa 2011.
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