segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

ANDRÉ J. GOMES - Manifesto...

Pop Art - Geraldo Leing
(1925-2011)
Manifesto pela ocupação amorosa
 dos corações vazios
André J. Gomes - "Revista Bula", 27 de janeiro 2014

E de agora em diante, fica estabelecido que todos os corações vazios, mal amados, partidos, abandonados ou tão somente subutilizados serão pacífica e amorosamente invadidos e ocupados pelo amor em todas as suas formas.

Sem paus e pedras e enxadas, mas com flores e música e presentes e simples declarações de apreço e cuidado, o amor tomará posse irrevogável de todo e qualquer coração devoluto. 

Banqueiros e bancários, construtores e operários, empresários, professores, artistas de rua, profissionais de toda sorte, adultos e crianças e velhinhos, todas as almas solitárias deste mundo! Preparem-se para ceder sem luta à chegada implacável do amor às terras férteis de seus corações.

Abram seus portões, escancarem as portas, liberem as janelas, prendam os cachorros e preparem a casa à visita permanente do amor operário, trabalhador, corajoso e simples. 

Ele vai chegar sem slogans ou passeatas, sem discursos, gritos de guerra ou enfrentamentos com a polícia. 
Vai surgir na hora mais silenciosa da noite, deitar ao seu lado e acordar com você na hora de ir ao trabalho, como se ali estivesse desde sempre.


"Beijo de Colombina" - Auguste Toulenouche
(1829-1890)

O amor vai chegar assim, de manso, mas com o passo forte e a potência de um jato varrendo a craca dos rancores, a sujeira grossa dos maus pensamentos, a gordura acumulada das chateações diárias, da burrice, da inveja, da grosseria. 

Virá com a força mesma da vida, desobstruindo os canais da memória entupidos de morte. 
Virá alegre como o cão que reencontra o dono depois da eternidade de um dia inteiro sozinho em casa, à espera.
E então as preocupações ordinárias e mesquinhas farão as malas e deixarão os corações livres para viver em absoluto estado de ocupação plena pelas intenções e ações de um amor generoso, diário e vital.

Esse amor que acorda cedo e faz ginástica, que parece tão mais jovem do que de fato é, esse amor vai pintar as paredes da casa, mudar a posição dos móveis, vai matar a sede e a fome que restam, soltar os passarinhos de suas gaiolas ridículas, vai cuidar da horta no quintal e presentear os vizinhos com as verduras frescas. 

Esse amor vai florescer e perdurar e se esparramar pelas redondezas. Vai levar ao passeio diário os cachorros que vivem dentro de cada um de nós. 
Esse amor vai invadir em paz a nossa vida tão talhada para a guerra.


Arte Peter Behren, 1922
E quando as forças armadas de um coração já machucado se levantarem em defesa natural de sua estrutura, em puro e simples movimento de autopreservação, o amor estenderá sua mão pequena e linda, de unhas roídas e sem nenhum esmalte, e todas as armas cairão em silêncio.

Então esse coração abrirá suas fronteiras à chegada irrefreável do encantamento amoroso e total, explosão de energia que nos leva ao encontro de quem somos, nos resgata da morte e nos devolve, sãos e salvos, à vida que é hoje, amanhã e depois um longo e eterno agora.


*            *            *

domingo, 26 de janeiro de 2014

GUIMARÃES JÚNIOR - A Borralheira

Midnight tango
Tela de Leonid Afremov

A Borralheira
Luís Guimarães Junior

Meigos pés, pequeninos, delicados,
como um duplo lilás, se os beija-flores
vos descobrissem entre as outras flores,
que seria de vós, pés adorados!

Como dois gêmeos silfos animados,
vi-os ontem pairar entre os fulgores
do baile, ariscos, brancos, tentadores,
mas, ai de mim! como os mais pés, calçados.

Calçados como os mais! Que desacato!
disse eu... Vou já talhar-lhes um sapato
leve, ideal, fantástico, secreto...

Ei-lo. Resta saber, Anjo faceiro,
se acertou na medida o sapateiro:
Mimosos pés, calçai este soneto.

*            *            *

MURILO MENDES - "Murilogramas"


Murilograma a Cecília Meireles
Murilo Mendes

Dorme no saltério; na magnólia ,
Dorme no cristal; em Cassiopéia .
Dorme em Cassiopéia; no saltério ,
Dorme no cristal ; na magnólia .

O século é violento demais para teus dedos
Dúcteis afeiçoados ao toque dos duendes :
O século, ácido demais para uma pastora
De nuvens , aponta o revólver aos mansos
Inermes no guaiar; columbrando a paz .
Armamentos em excesso, parquesombras de menos
Se antojam agora ao homem , antes criado
Para dança , alegria; ritmos de paz .
A faixa do céu glauco indica-te serena ,
Acolhe a ode trabalhada , nãogemente
Que ainda quer manter linguagem paralém .
Altas nuvens sacodem as crinas espiando
Teu sono incoativo . A noite vai inoltrada ,
Prepara úsnea de seda à ságoma da tua lira
Que subjaz no corpo interrompido , diamante
Ahimè ! mortal que os deuses reclamaram .
Dorme em Cassiopéia; no saltério ,
Dorme no cristal; na magnólia .

Roma, 1964
**


Murilograma a Graciliano Ramos 
Murilo Mendes

1
Brabo. Olhofaca. Difícil. 
Cacto já se humanizando, 

Deriva de um solo sáfaro 
Que não junta, antes retira,

Desacontece, desquer.

2
Funda o estilo à sua imagem: 
Na tábua seca do livro

Nenhuma voluta inútil. 
Rejeita qualquer lirismo.

Tachando a flor de feroz.

3
Tem desejos amarelos. 
uer amar, o sol ulula,

Leva o homem do deserto 
(Graciliano-Fabiano)

Ao limite irrespirável.

4
Em dimensão de grandeza 
Onde o conforto é vacante,

Seu passo trágico escreve 
A épica real do BR

Que desintegrado explode

Roma, 1965
**
Murilograma a Carlos Drummond de Andrade

No meio do caminho da poesia
selva selvaggia
Território adrede
Desarrumado
Onde palavras-feras nos agridem
Encontrei Carlos Drummond de Andrade
esquipático fino
flexível
ácido
lúcido
até o osso .
Armado
De lente compasso
Gramática não-euclidiana
& humour nuclear
Na oficina-laboratório
Itabiromem claroenigmático
Extrai do léxico
Uma lição de coisas .
Enxuto abre o manúbrio
À brisa sarcástica de Minas .
Dorme acordado .

Glossógrafo declancha
Com seus olhos de termômetro
A máquina do mundo da linguagem
Em contacto contraste atrito & rotação
Diurna .

Deflagrando história & semântica
Radiografia o
Desgaste do mundo coisificado .
Destrói o córtex do verbo
Dispara o contexto insólito
Descobre a “obsolescence”
os “rifiuti”
os restos do zero .
Contrapõe às galáxias poetizadas
O inframundo
Antigaláxias da náusea
das fezes
da poeira
do mêdo
Os labirintos íntimos
A paisagem delével do sexo
A paisagem de smog
Os pontapés do amor
A insuportável dor-de-corno
A esquírola de osso do homem .

“Balançando
entre o real e o irreal”,
Investido
Do “solene
sentimento de morte”
O poeta no seu trabalho ácido
Confessando-se
confessa-nos .

E agora, Josés?
Além de Cummings & Pound
Além de Sousândrade
Além de “Noigandres”
Além de “Terceira Feira”
Além de Poesia-Praxis
Além do texto “Isso é aquilo”
Sereis teleguiados ?
Resta a ságoma de Orfeu
Com discurso ou sem .

Sôbre a página aberta
Único campo branco
Drummond fazendeiro da cidade
(Esperamos)
Lançará de novo
a semente .

 Roma 1965
*            *            *

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

CHICO BUARQUE e TRIO ESPERANÇA - O que será (Flor da pele)

Em qualquer contexto, em qualquer lugar, em qualquer época, essa letra é emocionante! 
É de arrepiar... 


CECÍLIA MEIRELES - As meninas

Publicação facebook Tel Mont - 22/01/2014

As Meninas

 Cecília Meireles

Arabela
abria a janela.
.
Carolina
erguia a cortina.
.
E Maria
olhava e sorria:
"Bom dia!"
.
Arabela
foi sempre a mais bela.
.
Carolina
a mais sábia menina.
.
E Maria
Apenas sorria:
"Bom dia!"
.
Pensaremos em cada menina
que vivia naquela janela;
uma que se chamava Arabela,
outra que se chamou Carolina.
. 
Mas a nossa profunda saudade
é Maria, Maria, Maria,
que dizia com voz de amizade:
"Bom dia
As Meninas
Cecília Meireles

Arabela
abria a janela.
.
Carolina
erguia a cortina.
.
E Maria
olhava e sorria:
"Bom dia!"
.
Arabela
foi sempre a mais bela.
.
Carolina
a mais sábia menina.
.
E Maria
Apenas sorria:
"Bom dia!"
.
Pensaremos em cada menina
que vivia naquela janela;
uma que se chamava Arabela,
outra que se chamou Carolina.
Mas a nossa profunda saudade
é Maria, Maria, Maria,
que dizia com voz de amizade:
"Bom dia".

*            *            *

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Vídeo inspirado em publicação do Ouriço

"Acabo de fazer este vídeo inspirada em todas as sensações deste belo poema!
Aqui fica o link para quem quiser visitar..." (Anônimo)

http://youtu.be/uiRbV0ein48


Segundo comentário no post, este vídeo foi inspirado no poema de Mark O'Brien, tradução de Júlia V, publicado aqui em  SÁBADO, 6 DE ABRIL DE 2013, no marcador LÍNGUA DE FORA - autores estrangeiros.

Parabéns a Rosinha Veiga pelo lindo trabalho.



segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA

Publicações facebook -  Nádia, 18 de janeiro 2014

Concerto de Dvorák - Affonso Romano de Sant’Anna

Soava na tela aquele concerto de celo de Dvorák:
eu via as imagens da orquestra
e as mãos e o rosto possesso Misha Misky abraçado ao
                                                                     instrumento
engalfinhado numa amorosa luta com o sublime.

Lá fora
           a intriga nos palácios,
           as buzinas e os insultos,
           a traição, a esperada, o luto.
Aqui
           a perfeição preenchendo a sala
           num momento de paz absoluta.

Hopper

  Hopper
e a solidão dos objetos na vitrina
Hopper
e a solidão dos corpos na varanda
na janela
na campina
Hopper
e a solidão silente.

Hopper.
Hope.
Hopeless.
Concerto de Dvorák - Affonso Romano de Sant’Anna

Soava na tela aquele concerto de celo de Dvorák:
eu via as imagens da orquestra
e as mãos e o rosto possesso Misha Misky abraçado ao
instrumento
engalfinhado numa amorosa luta com o sublime.

Lá fora
a intriga nos palácios,
as buzinas e os insultos,
a traição, a esperada, o luto.
Aqui
a perfeição preenchendo a sala
num momento de paz absoluta.

Hopper
Hopper
e a solidão dos objetos na vitrina
Hopper
e a solidão dos corpos na varanda
na janela
na campina
Hopper
e a solidão silente.

Hopper.
Hope.
Hopeless.

Tendo lido os jornais
- infectado a mente, enauseado os olhos -
descubro, lá fora, o azul do mar
e o verde repousante que começa nas samambaias da sala
e recrudesce nas montanhas.

Para que perco tantas horas do dia
nessas leituras necessárias e escarninhas?
Mais valeria, talvez, nas verdes folhas, ler
o que a vida anuncia.

Mas vivo numa época informada e pervertida.
Leio a vida que me imprimem
e só depois
o verde texto que me exprime.

(Affonso Romano de Sant’Anna)
Tendo lido os jornais
- infectado a mente, enauseado os olhos -
descubro, lá fora, o azul do mar
e o verde repousante que começa nas samambaias da sala
e recrudesce nas montanhas.

Para que perco tantas horas do dia
nessas leituras necessárias e escarninhas?
Mais valeria, talvez, nas verdes folhas, ler
o que a vida anuncia.

Mas vivo numa época informada e pervertida.
Leio a vida que me imprimem
e só depois
o verde texto que me exprime.


(Affonso Romano de Sant’Anna)

GARCIA LORCA - facebook


Recebido de TelMont - facebook, 16 de janeiro 2014

Foto: “E eu me sinto oco
de paixão e de música.
Louco relógio que canta
mortas horas antigas.
Eu pronuncio teu nome,
nesta noite escura,
e teu nome me soa
mais distante que nunca.
Mais distante que todas as estrelas
e mais dolente que a mansa chuva.
Amar-te-ei como então
alguma vez? Que culpa
tem meu coração?
Se a névoa se esfuma,
que outra paixão me espera?
Será tranquila e pura?
Se meus dedos pudessem
desfolhar a lua”

Federico García Lorca



art"helena georgiou"


“E eu me sinto oco
de paixão e de música.
Louco relógio que canta
mortas horas antigas.
Eu pronuncio teu nome,
nesta noite escura,
e teu nome me soa
mais distante que nunca.
Mais distante que todas as estrelas
e mais dolente que a mansa chuva.
Amar-te-ei como então
alguma vez? Que culpa
tem meu coração?
Se a névoa se esfuma,
que outra paixão me espera?
Será tranquila e pura?
Se meus dedos pudessem
desfolhar a lua”

Federico García Lorca

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Dizer Adeus - Revista "Bons Fluidos"

Entenda porque é difícil dizer adeus
Raphaela de Campos Mello,  Revista 'Bons Fluidos', janeiro 2014


Cedo ou tarde, a morte, simbólica ou concreta, vem testar nossa capacidade de transformar finais em recomeços, alargando as margens do viver.

O imenso baú da mitologia guarda a história de Orfeu, exímio cantor e tocador de lira, dilacerado pela morte de sua amada, Eurídice. 
Inconformado, ele desce ao mundo dos mortos a fim de resgatá-la da posse de Hades, deus dos estratos inferiores. 
Seu canto era tão belo e comovente que obteve permissão para trazer Eurídice de volta à vida, desde que respeitasse uma cláusula: o marido não poderia olhar para a esposa, que caminharia às suas costas, até alcançarem à superfície. 
À beira da luz, entretanto, Orfeu torce o pescoço e, em segundos, perde sua companheira para as trevas. 
Permaneceu inconsolável até o fim de seus dias.

Dramática, como é de se esperar das narrativas gregas – espelhos das sagas humanas –, essa lenda retrata a dificuldade de dizer adeus. 
Estão ali constelados matizes universais ligados à problemática da finitude: o amor, a dor, o apego (à pessoa, às histórias compartilhadas e a quem fomos ao lado dela), a negação do fim. 
Adiante, a resignação em face do imponderável e a barreira representada pela necessidade de seguir suportando cicatrizes, medos e incertezas. 
Mesmo processo de desenlace que se aplica, guardadas as devidas proporções, ao término de um relacionamento ou de uma época que deixa saudade, como também à mudança de rumo profissional ou de endereço. 
Sucessivos finais vividos, de peito aberto ou fechado, no decorrer da existência. Ninguém escapa dessa sina, embora, ao contrário de Orfeu, não precise arrastar vida afora os espinhos do pesar.

O consultor educacional José Ricardo Crocco, se não chegou a visitar o inferno de Hades, certamente alcançou suas redondezas. 
Por dois anos, perambulou por estradas tomadas por uma névoa tão espessa que o impedia de vislumbrar o passo seguinte. “Estava sem rumo, mas a intuição me dizia para prosseguir assim mesmo”, conta. 
Em 2011, após atuar por dez anos na área de design gráfico, Crocco encarou o temido bicho de sete cabeças. 
A crise existencial, mais parecida com um tsunami, atingiu a carreira, a saúde, a família e o casamento. Não foi fácil se despir de certezas, cenários e fazeres conhecidos. 
No entanto, enxergava dentro de si uma fagulha tenaz o bastante para animar sua crença em dias melhores. “Percebi que só o dinheiro não justificava tanto desgaste físico e emocional. Senti necessidade de buscar mais sentido na forma como empregava meu tempo e interagia com o mundo”, diz. 
Depois de muito tatear, se questionar, meditar e, ainda por cima, suportar a pressão de amigos e familiares – certos de que havia pirado – ele, enfim, encontrou o que procurava. “Percebi que trabalhar com educação me fazia pleno. Então, com base na minha vivência prévia com meditação e outras correntes terapêuticas, criei um projeto de autoconhecimento voltado para alunos do ensino médio”, conta, radiante. 
A iniciativa, segundo ele, mais ampla e profunda do que a orientação vocacional, se chama Guia Projeto de Vida (GPV), atualmente em curso no Colégio das Américas, em São Paulo. 
Quase sempre, como no caso de Crocco, o que vem depois da tempestade é, de fato, a bonança. 
Mas fechar portas e seguir sem olhar para trás nunca é um gesto banal ou indolor. 
Segundo Viviane Mosé, filósofa e psicanalista capixaba, é tão penoso assistir ao escoar de coisas, pessoas e situações porque, em nosso íntimo, nunca lamentamos uma perda isolada.
Todo ser humano se guia por uma marca que é a certeza da morte. Logo, sofremos não só pela falta vivida naquele momento específico mas pela perda em si que caracteriza a vida”, afirma. Segundo ela, o fim imposto pelo presente remete ao caráter provisório de tudo e de todos, inclusive de nós mesmos, seres de passagem. 

Na visão da psicanalista Lidia Aratangy, de São Paulo, a dureza desse processo está em aceitar que uma parte nossa morre junto com o que se vai, gerando nostalgia. 
Mesmo mudanças para melhor nos provocam esse sentimento, ela sublinha. “Quem sai do imóvel alugado e ruma para a casa própria, por exemplo, não está livre de sentir nostalgia. Afinal, o que foi vivido numa residência parece que impregna as paredes e os espaços. São pedaços nossos que vão ficando pelo caminho”, diz, com naturalidade. 
Ela só se preocuparia se, no caso de um paciente hipotético, o apreço excessivo pelo passado se convertesse em paralisia. “Esse quadro certamente sinaliza muito mais um medo do novo e do desconhecido do que um apego ao que foi vivido”, pondera Lidia.

A atriz e professora de ioga carioca Giovanna Gold bem poderia ter congelado diante da proposta de trabalho que pressupunha deixar seu apartamento na cidade maravilhosa, herança paterna a qual se refere como sendo “a representação da sua legitimidade”, para se instalar num flat em São Paulo. Entretanto, aqui está ela, desde o começo do ano, festejando o crescimento profissional e, ao mesmo tempo, depurando a falta de inúmeros detalhes, para ela, nada pequenos. “Tenho saudade das minhas coisas, das borboletas, dos tucanos, da vizinhança, dos amigos, de tomar banho de mar. Aquele lugar é tão meu que não consegui alugá-lo”, confessa. 
Mesmo assim, pretende refazer a carreira em solo paulistano. “Aqui estão boas oportunidades”, justifica.

Ora, se a existência se alimenta de finais e recomeços e a natureza está aí para ilustrar tal dinâmica com perfeição, há como se preparar para os desfechos que nos aguardam? Eis a pergunta de ouro. 
“A cada chamado da vida, o coração deve estar pronto para a despedida e para um novo começo”, vaticinou o escritor e poeta alemão Hermann Hesse (1877-1962). 
Sua colega de ofício, a americana Elisabeth Bishop (1911-1979) também endossava tal campanha. Como expressou nos versos de A Arte de Perder, não há mistério algum nessa contabilidade. Ainda mais se nos acostumássemos a perder “um pouquinho a cada dia”: chaves, a hora, a conexão do voo, uma casa, um amor. 
A aceitação de cada minúscula perda cotidiana, pregava a artista, nos prepararia para a despedida maior. 
Mesmo perder você (a voz, o riso etéreo 
que eu amo) não muda nada. 
Pois é evidente que a arte de perder 
não chega a ser mistério 
por muito que pareça muito sério”, escreveu em referência à morte de sua companheira Lota de Macedo Soares (1910-1967), arquiteta autodidata que planejou o Parque do Flamengo, no Rio de Janeiro.
*               *               *

domingo, 12 de janeiro de 2014

Ah, DRUMMOND...

(O bilhete que Drummond carregava no bolso)

Recomendações de mamãe:
1. Não guardes ódio de ninguém.
2. Compadece-te sempre dos pobres.
3. Cala os defeitos dos outros.


(O bilhete que Drummond carregava no bolso)

Recomendações de mamãe:
1. Não guardes ódio de ninguém.
2. Compadece-te sempre dos pobres.
3. Cala os defeitos dos outros.
*            *            *

ISAAC ASIMOV - HÁ 50 AN0S

Professor Isaac Asimov
As surpreendentes previsões de Isaac Asimov para 2014, 50 anos atrás
 Roberto Amado - Diário do Centro do Mundo - "Gazeta Social", 06 de janeiro 2014



Em 1964, durante a Feira Mundial de Nova York, o New York Times convidou o escritor de ficção científica e professor de bioquímica Isaac Asimov a fazer previsões de como seria o mundo 50 anos depois, ou seja, este ano. 

Asimov escreveu mais de 500 trabalhos, entre romances, contos, teses e artigos e sempre se caracterizou por fazer projeções acuradas sobre o futuro. 
As previsões do escritor, que morreu em 1991, são surpreendentes.

Cozinha
Asimov prevê que os equipamentos de culinária pouparão a humanidade de fazer trabalhos tediosos. “As cozinhas estão equipadas para fazer “auto-refeições”. “Almoços e jantares serão feitos com comidas semi-preparadas, que poderão ser conservadas em freezer. Em 2014, as cozinhas terão equipamentos capazes de preparar uma refeição individual em alguns poucos segundos”
Só faltou mesmo ele usar a palavra “microondas”.

Computadores
O escritor previu um mundo repleto de computadores capazes de fazer as mais complexas tarefas. “Em 2014, haverá mini computadores instalados em robôs”, escreve ele, no que parece ser uma alusão aos chips. 
E garantiu que será possível fazer traduções com uma dessas máquinas, como se previsse a existência do Google Translator.

Comunicação
As ligações telefônicas terão imagem e voz, garantiu Asimov em seu texto. “As telas serão usadas não apenas para ver pessoas, mas também para estudar documentos e fotos e ler livros”
E prevê que satélites em órbita tornarão possível fazer conexões telefônicas para qualquer lugar da Terra e até mesmo “saber o clima na Antártica”
Mas em Terra haverá outras soluções. “A conexão terá que ser feita em tubos de plástico, para evitar a interferência atmosférica”, escreve ele, como se já conhecesse a fibra ótica.

Cinema
Asimov previu que em 2014 o cinema seria apresentando em 3-D, mas garantiu que algumas coisas nunca mudariam: “Continuarão a existir filas de três horas para ver o filme”.

Energia
Ele previu que já existiriam algumas usinas experimentais produzindo energia com a fusão nuclear. Errou. 
Mas acertou quando vaticinou a existência de baterias recarregáveis para alimentar muitos aparelhos elétricos de nossa vida cotidiana. Mais ainda: “Uma vez usadas, as baterias só poderão ser recolhidas por agentes autorizados pelos fabricantes” — o que deveria acontecer, mas nem sempre acontece.

Veículos
Asimov erra feio nas suas previsões relacionadas ao transporte.
Ele acreditou que carros e caminhões pudessem circular sem encostar no chão ou água, deslizando a uma altura de “um ou dois metros”. E que não haveria mais necessidade de construir pontes, “já que os carros seriam capazes de circular sobre as águas, mas serão desencorajados a fazer isso pelas autoridades”.

Marte
Para o escritor, em 2014 o homem já terá chegado a Marte com espaçonaves não tripuladas, embora “já estivesse sendo planejada uma expedição com pessoas e até a formação de uma colônia marciana”. O que nos faz lembrar da proposta pública de uma viagem a Marte só de ida, feita recentemente, para formar a primeira colônia no planeta.

Televisão
Asimov cita a provável existência de “televisões de parede”, como se pudesse prever as telas planas, mas acredita que os aparelhos serão substituídos por cubos capazes de fazer transmissões em 3-D, visíveis de qualquer ângulo.

População
O escritor previu que a população mundial seria de 6,5 bilhões em 2014 (já passou dos 7 bilhões) e que áreas desérticas e geladas seriam ocupadas por cidades — o que não é exatamente errado. 
Mas preconizou, também, a má divisão de renda: “Uma grande parte da humanidade não terá acesso à tecnologia existente e, embora melhor do que hoje, estará muito defasada em relação às populações mais privilegiados do mundo. Nesse sentido, andaremos para trás”, escreve ele.

Comida
“Em 2014 será comum a ‘carne falsa’, feita com vegetais, e que não será exatamente ruim, mas haverá muita resistência a essa inovação”, escreve Asimov, referindo-se provavelmente aos hambúrgueres de soja.

Expectativa de vida
O escritor preconizou problemas devido à super população do planeta, atribuindo-a aos avanços da medicina: “O uso de aparelhos capazes de substituir o coração e outros órgãos vai elevar a expectativa de vida, em algumas partes do planeta, a 85 anos de idade”
A média mundial subiu de 52 anos em 1964 para 70 anos em 2012. Em alguns países, como Japão, Suíça e Austrália, já está em 82 anos.

Escola
“As escolas do futuro”, escreve Asimov, “apresentarão aulas em circuitos fechados de TV e todos os alunos aprenderão os fundamentos da tecnologia dos computadores”
O que ele não previu foi a possibilidade de os alunos ensinarem os professores quando se trata de uso de computadores — como, aliás, ocorre em algumas escolas públicas brasileiras.

Trabalho
Asimov previu uma população entediada, como sinal de uma doença que “se alastra a cada ano, aumentando de intensidade, o que terá consequência mentais, emocionais e sociais”. Depressão?

“Ouso dizer”, prossegue ele, “que a psiquiatria será a especialidade médica mais importante em 2014. Aqueles poucos que puderem se envolver em trabalhos mais criativos formarão a elite da humanidade”.


*            *            *

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

MARCELO FRANCO - Dedicatórias

Contrariando as "regras" dos blogueiros profissionais, me encantam os textos longos...
Este é longo e lindo!  Vale conferir.


Childe Hassam
Tela de Frederick Childe Hassam
A você, hipócrita leitor, meu igual, meu irmão 
(por supuesto !)
Marcelo Franco - "Revista Bula" janeiro 2014


Há algo de muito íntimo em receber um livro com dedicatória: nestes tempos dominados pelo computador e pela pressa, ler algo escrito de próprio punho por pessoa que se estima pode ser uma experiência rara e emocionante.

“Para Mercedes, por supuesto”: assim Gabriel García Márquez dedicou, para minha inveja, “O Amor nos Tempos do Cólera” a sua mulher, escancarando todo o seu amor com apenas duas palavrinhas — “por supuesto”
Na edição brasileira que tenho deste livro que há muito tempo acompanha os meus devaneios literários, meu pai escreveu a minha mãe: “Para você, o amor nos tempos do… amor” (romantismo que compensou dedicando “A Terrorista”, de Doris Lessing, com ironia — “Leia, mas não seja”. O conselho deve ter sido seguido, pois o casamento permaneceu firme). Já noutro exemplar, espanhol, um grande amigo me homenageou: “A mi hermano Marcelo Franco, ésta que es la más bonita novela escrita en Latinoamérica en la lengua de Cervantes”
Portanto, mantenho três edições do livro de García Márquez nas minhas estantes sempre atulhadas: uma toda anotada por mim e as duas com dedicatórias — vício de bibliômano.

Ler com atenção e colecionar dedicatórias é com certeza um dos sinais distintivos da bibliomania. Na verdade, uma das formas de reconhecer um bibliomaníaco é o fato de que lemos de fio a pavio qualquer livro: as orelhas, a dedicatória, as notas de rodapé, as referências bibliográficas e até o colofão. 
Holbrook Jackson, autor de uma preciosidade criminosamente ainda não traduzida no Brasil, “The Anatomy of Bibliomania”, reservou um capítulo inteiro de seu livro para discorrer sobre o prazer de colecionar livros com pedigree, aqueles que têm dedicatórias ou anotações de quem os possuiu. 
No meu caso, não sou exceção à regra: venho há anos comprando livros dedicados pelos próprios autores e consegui alguns itens dos quais me orgulho com exagero talvez doentio: Pedro Nava, Afonso Arinos, Erico Verissimo, Rubem Braga… 
Mas se esta faina de acumulação é estranha, Holbrook também nos lembra que a bibliomania causa menos males do que, diz ele, a “sanidade dos sãos”. Acho que procede (aliás, é curioso que a bibliomania seja vista com estranheza enquanto a cinefilia desfruta de status de atividade essencialmente intelectual. Mas não se animem os cinéfilos: a julgar pelos cadernos de cultura dos jornais, a leitura de quadrinhos já está quase ocupando o seu lugar).

Tenho fama de ser bom “dedicador” de livros. Amigos pedem-me conselhos quando se sentem embaraçados com a folha em branco e a necessidade de escrever nela algumas linhas para que o presente fique, por assim dizer, mais personalizado. 
Creio mesmo que esta minha pequena glória não seja imerecida e, para mantê-la, tenho minhas regras e truques. Revelo aqui apenas um: em desespero, grito por socorro — por exemplo, adaptei para uso próprio, muitas vezes, aquela dedicatória feita por meu pai, “Para você, o amor nos tempos do… amor”Mas, para minha danação eterna, tendo à verborragia quando Cupido entra em cena. 
Há alguns anos, quando aquela que desorganizou o que estava organizado entrou em minha vida, passei a dar-lhe dezenas de livros, todos com longas e digressivas dedicatórias. 
Em troca, ganhava dela livros e presentes com cartões — quando havia algum cartão — com poucas linhas, geralmente algo direto do tipo “Para Marcelo” ou “Feliz aniversário”, e essa concisão, comparada com os meus cartapácios, me roubava noites de sono. 
Não gosto de pensar que meu caos interno tenha ficado preservado em dezenas de dedicatórias amontoadas em estantes alheias (há aí, percebo agora, uma sutil e freudiana forma de poder na relação entre um verborrágico e uma comedida). 
Contudo, noutras vezes acertei, ainda que também estivesse confuso: a uma mulher especial que meus transtornos não permitiram que fôssemos além, digamos, de uma espécie de modus vivendi sentimental, dei “Amor em Veneza”, de Andrea di Robilant, e, aproveitando o próprio título impresso na folha de rosto, escrevi: “Para B., AMOR EM VENEZA — e também em Goiânia”. 
Em “O Complexo de Portnoy”, de Philip Roth, estruturado como se fosse uma longa sessão de análise, apenas repeti a única frase que o psicanalista diz a Portnoy depois de mais de duzentos e cinquenta páginas de reclamações do seu paciente (talvez, imagino, como reconhecimento da minha própria tagarelice): “Para B.: agora a gente pode começar?”. 
Tenho o consolo de pensar que ela, daqui a muitos anos, possa dar de cara por acaso, numa tarde preguiçosa ou numa noite insone, com esses livros perdidos nas estantes e, lendo o que escrevi, sinta condescendência pela minha desorganização sentimental, ternura pelo pouco que tivemos e uma vaga decepção pelas promessas não cumpridas dessas dedicatórias.

(Sigo pela senda romântica e me traio revelando outro truque: para os namorados, os sonetos de amor de Camões nunca falham. Ninguém resistiria a estes versos, ainda que eventualmente transcritos sem menção ao autor: “Mas, conquanto não pode haver desgosto/Onde esperança falta, lá me esconde/Amor um mal, que mata e não se vê://Que dias há que na alma me tem posto/Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei por quê”. 
Ou estes: “Porque é tamanha a bem-aventurança/O dar-vos quanto tenho e quanto posso/Que, quanto mais vos pago, mais vos devo”. 
Usem, mas não espalhem a ideia. Ou usem e digam que os versos são do Renato Russo.)

Há um clássico problema decorrente de dedicar livros: pode-se encontrá-los num sebo. Como agir? 
Bem, há o método “Naipaul” e o método “Shaw”. Parece que V.S. Naipaul teria encontrado um livro por ele dedicado a Paul Theroux, seu amigo fraterno transformado desde então em inimigo íntimo. 
Já George Bernard Shaw viu num sebo um livro que dedicara certa vez a alguém, comprou-o e dedicou-o novamente — a primeira dedicatória: “Para …, com afeto, G.B.S”; a segunda: “Para …, com renovado afeto, G.B.S.”.

Se essas histórias são realmente verdadeiras, não sei, mas um passeio por sebos em Goiânia mostra amizades e amores traídos à venda e, o que talvez seja pior, expostos à permanente curiosidade de quem nem mesmo pretende comprar aqueles livros. 

Recebi de amigos algumas pérolas como dedicatórias, como “Marcelo, se já tiver este livro, devolva-o a mim”, ou outra, feita num exemplar de “Jaime Bunda, o Agente Secreto”, do angolano Pepetela, que o pudor, meu casto leitor, me impede de transcrever aqui. Se fosse eu o autor de tão elegantes linhas, não gostaria de vê-las tornadas públicas. 
Talvez a solução seja usar o clássico “Com amizade” e assinar apenas o primeiro nome, o que diluiria a possibilidade de reconhecimento.

Percebo que derivei pelo rumo das dedicatórias feitas por quem presenteia o livro, então voltemos à vaca fria das dedicatórias feitas pelos próprios escritores. 
Tenho as minhas preferidas. De imediato, lembro-me de “O Pequeno Príncipe”. 
Se o encanto do livro perdeu-se por conta das excessivas referências em concursos de miss, ao menos ainda podemos nos deliciar com a dedicatória de Antoine de Saint-Exupéry a Léon Werth. Primeiro, ele pede perdão às crianças “por dedicar este livro a uma pessoa grande”; depois, explica os seus motivos; por fim, ele se emenda: “Todas as pessoas grandes foram um dia crianças. (Mas poucas se lembram disso.) Corrijo, portanto, a dedicatória: a León Werth quando ele era pequeno”.

Muitas outras são as dedicatórias famosas na literatura mundial, desde a de Cervantes, que suplicou longamente ao Duque de Béjar, Marquês de Gibraleón, Conde de Benalcázar e de Bañares, Visconde de Puebla de Alcocer, Senhor das Vilas de Capilla, Curiel e Burgillo para que recebesse o seu “O Engenhoso Fidalgo D. Quixote de La Mancha” sob sua proteção, até a de Baudelaire, que encerrou o poema-dedicatória de “As Flores do Mal” com esta quadra (na tradução de Ivan Junqueira): “É o Tédio! — O olhar esquivo à mínima emoção,/Com patíbulos sonha, ao cachimbo agarrado./Tu conheces, leitor, o monstro delicado/— Hipócrita leitor, meu igual, meu irmão!”. 
Da pusilanimidade lamurienta à ofensa descarada, pode-se dizer. 
No Brasil, fiquemos com Machado, que fez Brás Cubas iniciar as “Memórias Póstumas” com uma mórbida — e hoje famosa — dedicatória: “Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver, dedico com saudosa lembrança estas Memórias Póstumas”. 
O grande Harold Bloom, que considera Machado de Assis uma espécie de milagre, recusa-se a citar essa dedicatória em “Gênio” por achá-la “terrível demais”. Não me consta que o verme tenha reclamado.

Mas esses momentos de pura literatura na forma de dedicatória são exceções. 
Uma rápida olhada nos livros atulhados na imensa bibliopola de livros não lidos em que se transformou meu apartamento parece mostrar que mesmo os grandes escritores são adeptos da simplicidade na hora de dedicar os livros que, com certeza, custaram a eles angustiosas horas de ponderações sobre le mot juste — há uma infindável coleção de dedicatórias reduzidas ao mínimo possível: “Para Ida” (Ralph Ellison, “O Homem Invisível”); “Para H.L.” (Philip Roth, “Nêmesis”); “A Phil Stone” (William Faulkner, “O Povoado”); “A Pilar” (José Saramago, “Todos os Nomes”). 
Às vezes pode ser divertido, mesmo nas mais sucintas dedicatórias, acompanhar as mutações de afeto, como no caso de Hemingway, que começou com “Este livro é para Hadley e para John Hadley Nicanor” (“O Sol Também se Levanta”), homenageando a primeira mulher e o filho, passou por “Este livro é para Martha Gellhorn” (“Por Quem os Sinos Dobram”), sua terceira mulher, e terminou com “A Mary, com amor” (“Do Outro Lado do Rio, Entre as Árvores”), a quarta e última esposa. 
Não sei se Vinicius de Moraes seguiu o mesmo exemplo, mas, se o fez, talvez não tenha escrito livros suficientes para todas as musas.

Porém, há quem consiga endurecer sem perder a ternura. A crítica literária Cristina Nehring, no curioso “Em Defesa do Amor”, não deixa de ser amorosa ao mesmo tempo que é sucinta: “Transeunte, amante, guerreiro, idealista: este livro é para você”.

E há o oposto das homenagens mínimas, os livros que são eles mesmos longas dedicatórias, geralmente escritos para narrar histórias de pessoas queridas que já morreram ou que estão doentes: o jornalista Calvin Trillin, por exemplo, escreveu o belo e surpreendentemente engraçado “Sobre Alice” depois da morte de sua esposa, que foi o que também fez Joan Didion, autora de “O Ano do Pensamento Mágico”, sobre a morte do marido e a doença da filha.

André Gorz e sua mulher Dorine
Mas o campeão da categoria de dedicatória em forma de livro é, claro, “Carta a D.”, que o filósofo André Gorz escreveu para sua moribunda companheira de toda a vida — o livro começa com estas palavras que nunca deixam de me emocionar: 
“Você está para fazer oitenta e dois anos. Encolheu seis centímetros, não pesa mais do que quarenta e cinco quilos e continua bela, graciosa e desejável. Já faz cinquenta e oito anos que vivemos juntos, e eu amo você mais do que nunca. De novo, carrego no fundo do meu peito um vazio devorador que somente o calor do seu corpo contra o meu é capaz de preencher”. 
Uau! 
(Gorz depois fez outra, digamos, dedicatória à esposa desenganada: matou-se com ela em um pacto suicida.)

Há algo de muito íntimo em receber um livro com dedicatória: nestes tempos dominados pelo computador e pela pressa, ler algo escrito de próprio punho por pessoa que se estima pode ser uma experiência rara e emocionante. 
E há sempre o prazer de tentar descobrir novos significados naquilo que a aparente simplicidade das palavras pode ocultar por tartufice. 

Anne Fadiman, autora de “Ex-Libris: Confissões de Uma Leitora Comum”, um livrinho que eu lamento não ter escrito, lembra que escrutinar as palavras da dedicatória feita por uma pessoa amada é exercício comum de namorados aflitos — a depender da ênfase dada a cada palavra, declarações de amor eterno podem surgir. 
Eu mesmo passei noites e noites na companhia de Jacques Derrida para desconstruir uma longa dedicatória que trazia, no segundo parágrafo (havia cinco), estas palavras: “Gostar de beleza é fácil. E, surpreendentemente, quando ela se apresenta de maneiras inesperadas é ainda mais fácil”. Ainda não entendi por que o inesperado seria mais fácil, e deve ser por isso que perdi a moça e mantive o livro (e creio que fui chamado de feio). 
Também já ganhei uma coletânea das tragédias de Shakespeare na qual uma esperançosa admiradora escreveu: “Para Marcelo, a fim de que um dia entenda”. Passaram-se quase vinte anos, entro a passos largos na meia-idade e ainda não entendi. Aliás, não entendi nem mesmo o que seria aquilo que deveria tentar entender — não entender tem sido o meu fado.

Outra digressão: é também Fadiman, citando o nosso já mencionado Holbrook Jackson, que lembra a proeza de Lorde Byron escrevendo duzentos e vinte seis palavras para a Condessa Teresa Guicciolini num exemplar de “Corinne”, de Madame de Staël. O fogoso poeta terminou sua dedicatória com um apelo de fidelidade: 
Eu mais do que a amo, e não consigo parar de amá-la. Pense em mim algumas vezes quando os Alpes e o oceano nos separarem — mas eles jamais o farão, a menos que o desejes”. 
Falta-me o título de nobreza, mas ao menos empato com Byron em matéria de verborragia e excessos melosos.)

Como tudo na vida, há regras a serem obedecidas, pois descubro — ainda no livrinho de Fadiman — que existe uma etiqueta para a dedicatória: devemos escrever no falso-rosto, pois a folha de rosto é reservada para o autor do livro. 
Ora, ora. Eu, como a própria Fadiman, venho há anos estragando centenas de folhas de rosto — quando estou inspirado, começo no falso-rosto, passo ao seu verso, continuo na folha de rosto e de novo no verso. 
Volto às minhas estantes e vejo, surpreso, que muitos dos livros a mim dedicados o foram corretamente. 
Por que ninguém me disse isso antes? (A propósito: a suprema falta de elegância seria dedicar um livro de etiqueta na folha de rosto?)

Sim, tudo isso é de pouca importância e pequeno e talvez seja somente o exercício de minúsculas vaidades em meio a agitações desnecessárias, mas nossas glórias e tragédias cotidianas são também pequenas e desimportantes (foi Shakespeare quem escreveu que as maneiras que falhamos a vida são a própria vida?). 
Por isso, sei que tenho em mim uma dedicatória ainda não escrita e que porei num livro que ainda não comprei e com o qual presentearei uma pessoa que ainda não conheci — e meu pequeno momento de sinceridade e desnudamento poderá ser uma aragem numa calmaria entediante ou uma bonança depois de um cataclismo. Ou, caso eu consiga transmitir pelas palavras meus sentimentos mais profundos, talvez fique, tal qual marca feita com ferro em brasa, como memento do encontro da minha vida imprecisa e vã com essa outra vida que terá me levado a escolher um livro e nele depositar as minhas próprias palavras, algo sagrado para mim, que sempre tento, e não consigo, entender os mecanismos de funcionamento do mundo nos livros. E, não fôssemos nós humanos tão pouco atentos ao próximo, tudo isso poderia ser também — ah, suprema glória! — sagrado para quem receber na forma de dedicatória meus pequenos e sobretudo tristes instantes de fraqueza e, compreendido o caráter ritualístico de um gesto só na aparência menor, porventura minhas palavras possam abrir uma brecha no entendimento de tal pessoa por ora apenas imaginada e iluminá-la para que perceba que se render ao amor ainda pode ser uma das riquezas de nossas vidas. 
Sim, há esse livro no qual escreverei palavras talvez aflitas ou talvez resignadas, e haverá uma pessoa que as receberá — por supuesto.


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terça-feira, 7 de janeiro de 2014

ANDRÉ J.GOMES - Viagem de um homem...

Adorei esta crônica
Viagem de um homem comum a um céu extraordinário
André J. Gomes - "Revista Bula"


E como um dia há de ser com toda boa alma, hoje um homem subiu aos céus de manhãzinha e descobriu que o paraíso não é só um amontoado de anjos tomando sol num campo verde e infinito além das nuvens. 

Entorpecido pela surpresa, o homem se deu conta de que o céu é uma grande e abençoada cozinha.

Ali, as crianças brincam com batatas espetadas por palitos de fósforo formando rebanhos em fazendas de sonho, debaixo de uma mesa onde as avós escolhem de grão em grão o arroz e o feijão das próximas refeições. 

Os adultos, homens e mulheres, sem distinção, trabalham nos afazeres culinários com a seriedade e o prazer de quem leva adiante sua única causa.

O recém-chegado se põe a um canto e observa o funcionamento perfeito das coisas. 

Repara na organização sublime das panelas e utensílios, na limpeza do chão, nas paredes de cada cor, na integridade do trabalho de um e outro, na beleza da vida que acontece ao sabor dos detalhes. 
Ele deita os olhos na espuma branca do leite que ferve e derrama a manhã sobre o mundo, respira fundo o cheiro afetuoso do pão feito em casa, do café que borbulha para acordar o dia, dos temperos sutis, dos bolos que crescem lentos no forno como os amores novos em seu saber esperar.
E assim ele vai se deixando estar ali, entregue à observação das miúdas formalidades culinárias, ao rigor elegante das pitadas, ao movimento organizado dos anjos preparando a ceia do mundo, quando nota a seu lado a presença definitiva de uma fada, porque no céu também há fadas, organizando e inspirando a orquestra sublime em seus afazeres.

Com a beleza do riso das crianças que brincam na praia, a fada o olha nos olhos e o convida a passear pelo céu a seu lado. 

Uma porta se abre, ela o leva até o quintal e lhe mostra a floração das alfaces, os brotos da couve-flor, o som genuíno dos rabanetes e cenouras e mandiocas arrancados da terra sob o destino sublime de enfeitar e fortalecer as saladas de frescores e frescuras divinas.

E o espetáculo de viver e interagir se faz escandaloso aos cinco sentidos do homem na grandeza da horta, na perfeição da cozinha, na beleza da fada que tem o riso triste, os olhos de afeição, as mãos e o coração de quem cozinha para manter o mundo em equilíbrio.


O homem e a fada caminham juntos, em seus dois estados diferentes de existir. 

Ela conta a ele em sua dicção perfeita de fada os segredos das grandes receitas, revela o ponto exato dos cozimentos, os ingredientes insuspeitados, enquanto as panelas bafejam encanto e mistério. 
À hora do almoço, ela o convida a sentar-se à mesa, e ali há mais pessoas do que seus olhos podem ver. 
Durante a refeição, as conversas são longas e saborosas, das entradas à sobremesa e ao café.

Eles comem sorrindo, depois dormem a sesta sob um vento manso. 

A fada acorda o homem à tardinha e o leva para caminhar sobre as nuvens. 
Anoitece, os assuntos se multiplicam como as safras mais fartas e eles continuam ali, beliscando as estrelas, contemplando a noite, a lua e o susto do amor.

Ela diz “bem-vindo”. 

E caminha sob o olhar humano do homem até a beirada de um penhasco no céu. Lá de cima, polvilha a Terra de amor e açúcar, resgatando em hora certa os seres pequeninos aqui embaixo de seus desastres domésticos, tornando seu caminho mais sutil e suportável.

Em sua infinita graça e devoção de quem cozinha por puro afeto a seus comensais, ela sorri um riso meio triste e abre inteiro, generosamente, o apetite do mundo para o maravilhoso manjar da vida.


Hoje um homem subiu aos céus. 

E descobriu que o paraíso é uma grande e abençoada cozinha, e que lá existe uma fada que sorri o sol e faz a vida mais doce.

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segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

A inutilidade da poesia - Raul Albuquerque

A inutilidade da poesia
Raul Albuquerque - "Obvious", 19 de março 2013

São novos tempos e a - pobre? - poesia vem perdendo espaço. 
Há mais de cinquenta anos, um livro de poemas não entra na lista de mais vendidos. 
Mas é irônico perceber que nestes mesmos tempos modernos é que ela é mais necessária, pois a catarse é mais necessária em tempos de cárcere. 
Em tempos de total conexão, desconectar-se é necessário.


Se perguntam a mim “Por que escrever poesia?”, vêm à tona milhares de respostas subjetivas. Subjetivas, pois não há um porquê lógico para produzir arte. A arte em si não tem fim prático. 
Arte é uma daquelas coisas que se faz por vontade (ou, à la Schopenhauer, Vontade de Poder), algo perto do instinto. 
Poesia é inútil, sempre foi. Até aqui, não há novidades.

A questão atual é que, numa lógica absurda e mal construída, o que é inútil é imediatamente desimportante. Ou seja, hoje se algo não tem um fim prático não é importante. 
Vivemos no tempo da razão utilitária - onde até a racionalidade foi posta à margem do processo produtivo -, fato que explica esse desprezo não tão recente à arte.

A constatação, porém, é que as pessoas fazem uso da poesia não por ela ser útil - pois ela não é - mas por ela ser importante - o que não depende de sua utilidade. Poesia tem uma finalidade intrínseca e pessoal, o que foge ao atual conceito de "útil".

Poesia tem duas faces. 
Uma é apresentada ao poeta, essa é a face do desafio. É a que apresenta as palavras como meios para chegar a um fim - que é a própria Poesia. É a que permite libertação em moldes bem marcados - e por vezes burlados pelo escritor. 
Outra é a apresentada ao leitor, essa é a face do descobrimento. É a que disponibiliza um campo minado, onde qualquer verso alheio pode desencadear sentimentos pessoais e intransferíveis. É o que dá ao Outro o atestado de insanidade assinado pelo paciente - que piora a cada verso.

Longe da tentativa acadêmica e falida de dar "funções" à poesia, a própria história empenha-se em provar que a poesia apresenta-se no processo cultural como algo importante, mas nunca útil. 
A poesia política de Neruda, Nobel de Literatura de 71, por exemplo, foi importante no cenário latinoamericano durante a Guerra Fria, mas não foi útil. 
Despertou o desejo de liberdade do povo, mas não convocou multidões às ruas.

Poesia é, portanto, inútil, mas importante. Algo impossível para as mentes adestradas e castradas. 
Não há fim determinado e comprovável que comporte a poesia. Poesia é vital, mas não é útil.

Poesia... ... não é rentável. ... não vai salvar-nos do aquecimento global nem da crise financeira. ... não vai trazer-nos a solução dos problemas da sociedade contemporânea. ... não vai evitar guerras nem amenizar seus efeitos. ... não vai encontrar a cura do câncer nem da AIDS. ... não vai acabar com a fome nos países miseráveis.

E talvez até venha a fazer tudo isso, mas, se o fizer, será feito um poeta por vez, um poema por vez, um leitor por vez, uma inquietação por vez. 
Inútil totalmente inútil, mas igualmente indispensável.


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domingo, 5 de janeiro de 2014

MÁRIO QUINTANA - No ano passado...

NO ANO PASSADO...
Mário Quintana

Já repararam como é bom dizer "o ano passado"? É como quem tivesse atravessado um rio, deixando tudo na outra margem... Tudo, sim, tudo mesmo! Porque, embora nesse "tudo" se incluam algumas ilusões, a alma está leve, livre, numa extraordinária sensação de alivio, como só se poderiam sentir as almas desencarnadas.

Mas no ano passado, como eu ia dizendo, ou mais precisamente, no último dia do ano passado deparei com um despacho da Associated Press em que, depois de anunciado como se comemoraria nos diversos países da Europa a chegada do Ano Novo, informava-se o seguinte, que bem merece um parágrafo a parte: 

"Na Itália, quando soarem os sinos a meia-noite, todo mundo atirará pelas janelas as panelas velhas e os vasos rachados". 

Ótimo! O meu ímpeto, modesto mas sincero, foi atirar-me eu próprio pela janela, tendo apenas no bolso, à guisa de explicação para as autoridades, um recorte do referido despacho. 
Mas seria levar muito longe uma simples metáfora, aliás praticamente irrealizável, porque resido num andar térreo. E, por outro lado, metáforas a gente não faz para a policia, que só quer saber de coisas corretas. Metáforas são para aproveitar em versos...

Atirei-me, pois, metaforicamente, pela janela do tricentésimo sexagésimo quinto andar do ano passado. 
Morri? Não. Ressuscitei. Que isto da passagem de um ano para outro é um corriqueiro fenômeno de morte e ressurreição - morte do ano velho e Sua ressurreição como ano novo, morte da nossa vida velha para uma Vida nova. 
Por essas e por outras coisas é que, nestas calçadas claras do ano bom:

Rechinam meus sapatos rua em fora.
Tão leve estou que já nem sombra tenho
E há tantos anos de tão longe venho
Que nem me lembro de mais nada agora!
Tinha um surrão todo de penas cheio
Um peso enorme para carregar!
Porém as penas, quando o vento veio,
Penas que eram... esvoaçaram no ar...
Todo de Deus me iluminei então,
Que os Doutores Sutis se escandalizem:
"Como é possível sem doutrinação?!"
Mas entendem-me o céu e as criancinhas.
E ao ver-me assim, num poste as andorinhas:
"Olha! É o idiota desta Aldeia!" dizem...

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In: Porta Giratória - 1988