NO ANO PASSADO...
Mário Quintana
Já repararam como é bom dizer "o ano passado"? É como quem tivesse atravessado um rio, deixando tudo na outra margem... Tudo, sim, tudo mesmo! Porque, embora nesse "tudo" se incluam algumas ilusões, a alma está leve, livre, numa extraordinária sensação de alivio, como só se poderiam sentir as almas desencarnadas.
Mas no ano passado, como eu ia dizendo, ou mais precisamente, no último dia do ano passado deparei com um despacho da Associated Press em que, depois de anunciado como se comemoraria nos diversos países da Europa a chegada do Ano Novo, informava-se o seguinte, que bem merece um parágrafo a parte:
"Na Itália, quando soarem os sinos a meia-noite, todo mundo atirará pelas janelas as panelas velhas e os vasos rachados".
Ótimo! O meu ímpeto, modesto mas sincero, foi atirar-me eu próprio pela janela, tendo apenas no bolso, à guisa de explicação para as autoridades, um recorte do referido despacho.
Mas seria levar muito longe uma simples metáfora, aliás praticamente irrealizável, porque resido num andar térreo. E, por outro lado, metáforas a gente não faz para a policia, que só quer saber de coisas corretas. Metáforas são para aproveitar em versos...
Atirei-me, pois, metaforicamente, pela janela do tricentésimo sexagésimo quinto andar do ano passado.
Morri? Não. Ressuscitei. Que isto da passagem de um ano para outro é um corriqueiro fenômeno de morte e ressurreição - morte do ano velho e Sua ressurreição como ano novo, morte da nossa vida velha para uma Vida nova.
Por essas e por outras coisas é que, nestas calçadas claras do ano bom:
Rechinam meus sapatos rua em fora.
Tão leve estou que já nem sombra tenho
E há tantos anos de tão longe venho
Que nem me lembro de mais nada agora!
Tinha um surrão todo de penas cheio
Um peso enorme para carregar!
Porém as penas, quando o vento veio,
Penas que eram... esvoaçaram no ar...
Todo de Deus me iluminei então,
Que os Doutores Sutis se escandalizem:
"Como é possível sem doutrinação?!"
Mas entendem-me o céu e as criancinhas.
E ao ver-me assim, num poste as andorinhas:
"Olha! É o idiota desta Aldeia!" dizem...
* * *
In: Porta Giratória - 1988
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