domingo, 26 de janeiro de 2014

MURILO MENDES - "Murilogramas"


Murilograma a Cecília Meireles
Murilo Mendes

Dorme no saltério; na magnólia ,
Dorme no cristal; em Cassiopéia .
Dorme em Cassiopéia; no saltério ,
Dorme no cristal ; na magnólia .

O século é violento demais para teus dedos
Dúcteis afeiçoados ao toque dos duendes :
O século, ácido demais para uma pastora
De nuvens , aponta o revólver aos mansos
Inermes no guaiar; columbrando a paz .
Armamentos em excesso, parquesombras de menos
Se antojam agora ao homem , antes criado
Para dança , alegria; ritmos de paz .
A faixa do céu glauco indica-te serena ,
Acolhe a ode trabalhada , nãogemente
Que ainda quer manter linguagem paralém .
Altas nuvens sacodem as crinas espiando
Teu sono incoativo . A noite vai inoltrada ,
Prepara úsnea de seda à ságoma da tua lira
Que subjaz no corpo interrompido , diamante
Ahimè ! mortal que os deuses reclamaram .
Dorme em Cassiopéia; no saltério ,
Dorme no cristal; na magnólia .

Roma, 1964
**


Murilograma a Graciliano Ramos 
Murilo Mendes

1
Brabo. Olhofaca. Difícil. 
Cacto já se humanizando, 

Deriva de um solo sáfaro 
Que não junta, antes retira,

Desacontece, desquer.

2
Funda o estilo à sua imagem: 
Na tábua seca do livro

Nenhuma voluta inútil. 
Rejeita qualquer lirismo.

Tachando a flor de feroz.

3
Tem desejos amarelos. 
uer amar, o sol ulula,

Leva o homem do deserto 
(Graciliano-Fabiano)

Ao limite irrespirável.

4
Em dimensão de grandeza 
Onde o conforto é vacante,

Seu passo trágico escreve 
A épica real do BR

Que desintegrado explode

Roma, 1965
**
Murilograma a Carlos Drummond de Andrade

No meio do caminho da poesia
selva selvaggia
Território adrede
Desarrumado
Onde palavras-feras nos agridem
Encontrei Carlos Drummond de Andrade
esquipático fino
flexível
ácido
lúcido
até o osso .
Armado
De lente compasso
Gramática não-euclidiana
& humour nuclear
Na oficina-laboratório
Itabiromem claroenigmático
Extrai do léxico
Uma lição de coisas .
Enxuto abre o manúbrio
À brisa sarcástica de Minas .
Dorme acordado .

Glossógrafo declancha
Com seus olhos de termômetro
A máquina do mundo da linguagem
Em contacto contraste atrito & rotação
Diurna .

Deflagrando história & semântica
Radiografia o
Desgaste do mundo coisificado .
Destrói o córtex do verbo
Dispara o contexto insólito
Descobre a “obsolescence”
os “rifiuti”
os restos do zero .
Contrapõe às galáxias poetizadas
O inframundo
Antigaláxias da náusea
das fezes
da poeira
do mêdo
Os labirintos íntimos
A paisagem delével do sexo
A paisagem de smog
Os pontapés do amor
A insuportável dor-de-corno
A esquírola de osso do homem .

“Balançando
entre o real e o irreal”,
Investido
Do “solene
sentimento de morte”
O poeta no seu trabalho ácido
Confessando-se
confessa-nos .

E agora, Josés?
Além de Cummings & Pound
Além de Sousândrade
Além de “Noigandres”
Além de “Terceira Feira”
Além de Poesia-Praxis
Além do texto “Isso é aquilo”
Sereis teleguiados ?
Resta a ságoma de Orfeu
Com discurso ou sem .

Sôbre a página aberta
Único campo branco
Drummond fazendeiro da cidade
(Esperamos)
Lançará de novo
a semente .

 Roma 1965
*            *            *

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