Os provérbios de Guimarães
Raul Albuquerque - "Obvious", 28 fevereiro 2014
Alguns escritores nos encantam por quanto se mostram altos e distantes e inacessíveis, outros nos levam ao céu por se mostrarem próximos amigos.
Guimarães certamente está no último grupo. Sua escrita quase falada, sua linguagem que parece improvisada, mas guarda a mais sofisticada elaboração de ideias.
A genialidade de Guimarães Rosa revela-se exatamente nessa aparente simplicidade que esconde uma rica complexidade e uma trança de longas e variadas ideias acerca da língua, das palavras e das filosofias. E esse manto de desleixo reveste também os provérbios que Guimarães pinga em seus contos, e especialmente Grande Sertão: Veredas.
Os aforismos que estão presentes na obra roseana guardam conjecturas mil, selecionei apenas três provérbios de poesia indiscutível para comentar:
1. "Amor? Um pássaro que põe ovos de ferro."
Essas palavras me pegaram desprevenido quando lia Grande Sertão. Parei a leitura e comecei a tentar entender o que é que nos queria dizer com aquilo.
O narrador parece querer dizer que o Amor - essa figura mítica que atravessa os milênios sem ninguém que a viole ou a descubra - seria uma ave, de onde se compreende que o amor seria belo, seria leve, seria livre, que não seria preso ao chão. Apostando na fluidez do amor.
Mas Guimarães surpreende ao dizer que esse pássaro põe ovos de ferro, ou seja, não é uma ave comum nem totalmente fluida, mas o amor teria frutos que permanecem, igualmente seus ovos não são banais, não são postos com facilidade, mas permanecem.
Porquanto o amor é, sim, leve e livre, mas seus frutos são pesados e duradouros.
"Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três, mas o maior destes é o amor." (1 Coríntios 13:13)
2. "Viver é negócio muito perigoso"
A ideia desse aforismo é repetida inúmeras vezes durante o livro Grande Sertão: Veredas.
O narrador sempre vai relembrando ao longo do romance.
"Viver é muito perigoso... Porque aprender a viver é que é o viver mesmo... Travessia perigosa, mas é a da vida."
Parece que a história da vida de Riobaldo serve como prova de que viver é realmente perigoso, viver é estar em constante risco, como um caminho à beira do precipício.
O erro e a morte nos acompanham durante toda a vida.
"A história é tão leve quanto a vida do indivíduo, insustentavelmente leve, leve como uma pluma, como uma poeira que voa como uma coisa que vai desaparecer amanhã" (Milan Kundera, em A insustentável leveza do ser)
3. "Todo abismo é navegável a barquinhos de papel"
Esse provérbio de ironia patente é do conto "Desenredo".
Guimarães parece querer brincar com nossa imaginação.
O abismo seria uma imagem para representar os problemas enormes e aparentemente intransponíveis da vida e dos relacionamentos. O barquinho de papel seria a imagem da inocência, da fragilidade e da infância.
Ele propõe que todos os problemas podem ser resolvidos ou superados - ou até tolerados - com uma postura mais inocente quanto à vida.
"Em verdade vos digo que, qualquer que não receber o reino de Deus como menino, não entrará nele." (Evangelho segundo Lucas 18:17)
* * *
Agora, eu: (Originalmente escrito em setembro de 1981) - Faculdade
Lembro-me de que nossa primeira aula sobre J.Guimarães Rosa alertava-me para a dificuldade de leitura deste autor.
"Considerado pela crítica um autor difícil". Eu não conhecia nada dele! O adjetivo "difícil" foi o impulso. Disciplinadamente (fugindo ao habitual em mim - sou um pouco rebelde e às vezes preguiçosa), propus-me o esquema ordenado da leitura de "Rosa do sertão profundo".
Comecei com "Sagarana", obedecendo à ordem sugerida: primeiro o conto "São Marcos", depois "O burrinho pedrês", em seguida "A hora e a vez de Augusto Matraga". Recentemente, "Grande Sertão:Veredas", que agradeço.
Certo, um autor difícil, porque difícil é aceitar em nós mesmos as oposições em que os contrários se confundem. Difícil é segurar o momento, pois nossa realidade existencial é mutável, é um vir a ser, processo em curso (crescimento e decadência), metamorfose.
Presente como resultado do passado. Viagem de Riobaldo por seu passado; travessia difícil, escura, tortuosa e que, ao fim - será que chegou mesmo ao fim? - defronta-se "nonada" do dia a dia.
Difícil, tenho que concordar. Linguagem nova, própria, característica de quem se habituou a monólogos. Pareceu-me o livro um grande monólogo. O interlocutor paradoxalmente não se manifesta. E os contrastes, as dúvidas: "Diadorim...cujos olhos têm o verde brilhante das folhas do buriti", mas que é também "a calamidade do quente, com o esbraseado, o estufo, a dor, sem nem ao menos sinal de sombra, sem água, sem capim, com o pesadelo mesmo de delírio". Um romance todo sensorial.
O desassossego do mundo: "todos nascendo, crescendo, se casando, querendo colocação de emprego, comida, saúde, riqueza, ser importante, querendo chuva e negócios bons" ; a loucura de todos - "todo mundo é louco - o senhor, eu, nós, as pessoas todas." E a religião como saída - uma religião misto de todas: "Eu cá não perco ocasião de religião - bebo água de todo rio. Uma só, para mim talvez é pouca, talvez não chegue."
Há sempre a volta do bem e do mal, transfigurados pelas emoções.
Riobaldo revive o passado, quer saber como o bem e o mal podem coexistir. Mas suas dúvidas permanecem. Continua sem saber se o diabo existe ou não, e se realmente pactuou com ele.
Por que encontrou Diadorim se nada podia ser realizado? Que estranha razão para conviver com jagunços, justo quem simbolizava o amor e a beleza?
Diadorim é a lembrança que o impede de raciocinar - "uma neblina" dentro de si mesmo.
O que impressiona, também, é a lucidez da personagem em relação ao que conta. "Sei que estou contando errado, pelos altos. Desemendo. Mas não é por disfarçar, não pense" (p. 77). E ainda: "Desculpa me dê o senhor, sei que estou falando demais dos lados. Resvalo. Assim é que a velhice faz". "Contar é muito, muito dificultoso."
A figura de Zé Bebelo... Coisa mais bonita e verdadeira.
A admiração que um espírito sonhador (Riobaldo) sente por alguém que tem os pés na terra, alguém de ideias práticas, reais. E afinal, para onde vão os sonhos: bater com toda força na realidade de pés de chumbo.
Todo o livro é uma chamada para a vida, para a linguagem da beleza, para a meditação mesma na palavra viver.
A gente está sempre "nonada" tentando construir a liberdade, será?
"Mas viver é negócio muito perigoso".
"O diabo vige dentro do homem..."
(Sueli)
Lembro-me de que nossa primeira aula sobre J.Guimarães Rosa alertava-me para a dificuldade de leitura deste autor.
"Considerado pela crítica um autor difícil". Eu não conhecia nada dele! O adjetivo "difícil" foi o impulso. Disciplinadamente (fugindo ao habitual em mim - sou um pouco rebelde e às vezes preguiçosa), propus-me o esquema ordenado da leitura de "Rosa do sertão profundo".
Comecei com "Sagarana", obedecendo à ordem sugerida: primeiro o conto "São Marcos", depois "O burrinho pedrês", em seguida "A hora e a vez de Augusto Matraga". Recentemente, "Grande Sertão:Veredas", que agradeço.
Certo, um autor difícil, porque difícil é aceitar em nós mesmos as oposições em que os contrários se confundem. Difícil é segurar o momento, pois nossa realidade existencial é mutável, é um vir a ser, processo em curso (crescimento e decadência), metamorfose.
Presente como resultado do passado. Viagem de Riobaldo por seu passado; travessia difícil, escura, tortuosa e que, ao fim - será que chegou mesmo ao fim? - defronta-se "nonada" do dia a dia.
Difícil, tenho que concordar. Linguagem nova, própria, característica de quem se habituou a monólogos. Pareceu-me o livro um grande monólogo. O interlocutor paradoxalmente não se manifesta. E os contrastes, as dúvidas: "Diadorim...cujos olhos têm o verde brilhante das folhas do buriti", mas que é também "a calamidade do quente, com o esbraseado, o estufo, a dor, sem nem ao menos sinal de sombra, sem água, sem capim, com o pesadelo mesmo de delírio". Um romance todo sensorial.
O desassossego do mundo: "todos nascendo, crescendo, se casando, querendo colocação de emprego, comida, saúde, riqueza, ser importante, querendo chuva e negócios bons" ; a loucura de todos - "todo mundo é louco - o senhor, eu, nós, as pessoas todas." E a religião como saída - uma religião misto de todas: "Eu cá não perco ocasião de religião - bebo água de todo rio. Uma só, para mim talvez é pouca, talvez não chegue."
Há sempre a volta do bem e do mal, transfigurados pelas emoções.
Riobaldo revive o passado, quer saber como o bem e o mal podem coexistir. Mas suas dúvidas permanecem. Continua sem saber se o diabo existe ou não, e se realmente pactuou com ele.
Por que encontrou Diadorim se nada podia ser realizado? Que estranha razão para conviver com jagunços, justo quem simbolizava o amor e a beleza?
Diadorim é a lembrança que o impede de raciocinar - "uma neblina" dentro de si mesmo.
O que impressiona, também, é a lucidez da personagem em relação ao que conta. "Sei que estou contando errado, pelos altos. Desemendo. Mas não é por disfarçar, não pense" (p. 77). E ainda: "Desculpa me dê o senhor, sei que estou falando demais dos lados. Resvalo. Assim é que a velhice faz". "Contar é muito, muito dificultoso."
A figura de Zé Bebelo... Coisa mais bonita e verdadeira.
A admiração que um espírito sonhador (Riobaldo) sente por alguém que tem os pés na terra, alguém de ideias práticas, reais. E afinal, para onde vão os sonhos: bater com toda força na realidade de pés de chumbo.
Todo o livro é uma chamada para a vida, para a linguagem da beleza, para a meditação mesma na palavra viver.
A gente está sempre "nonada" tentando construir a liberdade, será?
"Mas viver é negócio muito perigoso".
"O diabo vige dentro do homem..."
(Sueli)
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