O passageiro e a perenidade
Marcos Gavazza – “Obvious” – janeiro 2012
Algumas coisas em nossas vidas surgem com a determinação de permanecer para sempre. Achamos nós.
Mas um dia elas simplesmente se vão.
Algumas outras entretanto, sequer existem concretamente porém tornam-se eternas. Não há como distingui-las e menos ainda como explicar essa dualidade. Resta-nos conviver com elas.
Poetas, compositores, escritores e cronistas tentam desesperadamente fixar a permanência de certos sentimentos, em vão. O máximo que conseguimos é dar-lhes uma dimensão e apresentar essa equação a pacientes leitores. O que já é uma grande conquista.
Permitam-me, por favor, certas divagações.
Já não creio em coincidências nem no amor como uma casualidade cósmica, algo que cai do céu como chuva de verão ou surpresa aguardando numa esquina da vida, qual música surgida na madrugada, sabe-se lá de onde.
Se já perdi a noção da hora resta-me a consciência da vida, de sua mecânica e de suas armadilhas. Sobra-me a certeza de que o amor é construído a cada gesto, a cada sorriso, a cada desejo adivinhado, a cada prazer ofertado.
O sonho, o romantismo, a companheira premeditada, o ideal da presença suave, tudo isso serve exatamente para nos tornar mais íntimos da possibilidade de amar.
Amar não é casual, acidental, imponderável como a previsão do tempo, as cartas de baralho e o humor dos geminianos.
Amar é querer e lutar por isso. O que de resto se aplica a tudo na vida, desde o trabalho até cuidar das plantas, desde a arte até a parceira de projetos.
Temos a permissão e a possibilidade de escolher na multidão uma pessoa na qual percebemos a possibilidade de seguir na mesma direção que nós. Isto pode ser verdadeiro ou não.
É impossível saber-se ao certo que rumos cada pessoa poderá tomar quando o dia clarear.
Mas se os caminhos forem paralelos, há espaço para o amor que poderá surgir então como resultado e não como interferência.
"Então tá combinado, é quase nada, é tudo somente sexo e amizade. Mas e se o amor já está, há muito tempo que chegou e só nos enganou?" O compositor Peninha não hesitou em jogar sal na ferida.
Quando morava em Praia do Forte e trabalhava em Salvador – distante 85 km - quase todos os fins de tarde quando já me aproximava de Guarajuba ao retornar para casa, cruzava na estrada com um velhinho que pedalava sua bicicleta em sentido contrário.
Ele era magro qual D. Quixote e sua bicicleta tão maltratada quanto o Rocinante. Mas estava sempre empertigado, bem arrumado em sua pobreza, invariavelmente trajando uma camisa de mangas longas.
Não sei a partir de quando nem porque, mas passamos a nos cumprimentar. Ele me fazia sempre um sinal de "positivo" e eu um aceno ou um sinal de luz com os faróis do carro.
Na fração de segundos que a velocidade permitia, percebia em seu rosto um sorriso e em seus olhos a satisfação de ter feito um amigo de estrada.
Nada sabia nem fiquei sabendo sobre ele. De onde vinha, para onde ia, o que fazia ou terminara de fazer. Não fazia idéia do que era sua vida, se tinha mulher e filhos, se era só com sua bicicleta, se sonhava ainda ou se o cansaço do tempo lhe permitia apenas seguir pedalando.
Também ele nada sabia sobre mim. Mas havia entre nós uma certa cumplicidade, aquela naturalidade dos que se identificaram.
O ir e vir diário, o encontro sempre à mesma hora e no mesmo espaço, a forma de cada um dirigir o que lhe cabia, nos sinalizava que éramos moldados em material semelhante.
Sentia falta dele quando não o encontrava e ficava feliz quando já ao longe percebia sua figura esguia deslizando o acostamento. Ele me fazia sentir que estava chegando em casa e que não estava só.
Esta pessoa, tão incógnita e improvável, entretanto trazia evidentemente em si a possibilidade de uma identificação comigo e talvez percebesse em mim, o mesmo.
Qualquer sentimento de amizade surgido a partir deste tipo de sintonia e desenvolvido conscientemente, permanecerá.
Às vezes, depois de sair da estrada e antes de chegar à vila, ia até o castelo de Garcia d'Ávila. Quase nunca saia do carro me contentando em olhá-lo de longe enquanto o sol saia de cena. Agradava-me saber que eles sempre estariam lá.
Ficava pouco tempo por ali. Apenas o suficiente para rever alguns pensamentos, buscar um pouco de energia e dar o dia por encerrado.
Mas o que tem de comum o amor, o velhinho da estrada e as ruínas do castelo?
A perenidade inerente a tudo o que é construído conscientemente.
Não importa se o amor mudou de coração, o castelo não é mais habitado e o velhinho desaparecia no retrovisor todos os dias. Eles estarão presentes indefinidamente em sua força, que vem do fato de não serem casuais, mas erigidos, pouco importa a finalidade ou o tempo em que permanecerão tangíveis. São definitivos.
Assim como o amor, quando resultado do querer amar.
Acho que uma certa confusão entre paixão e amor acabou criando esta esperança pelo inesperado e provocando este desentendimento.
Vinicius tentou fundir as duas coisas com suas famosa frase "que não seja imortal, posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure".
Apesar da minha imensa admiração por Vinicius e pela própria frase, percebo aí uma forma do poeta de explicar a sua maneira de amar. Ele era assim. Arrebatado entretanto passageiro. Paixão, portanto. Mas sempre reverente aos seus envolvimentos. Amante, desta forma. E inesquecível.
A palavra final sobre o assunto, entretanto, creio eu, é de Chico Buarque de Holanda: "amores serão sempre amáveis".
Mais estranho ainda: o que tem tudo isso a ver com a comunicação interpessoal ou humana?
Aparentemente quase nada, mas em verdade, ela também é exatamente assim.
Pode provocar paixões e lotar auditórios de pulsos acelerados, fazendo futuros amantes da arte de fazer com que as pessoas acompanhem seus pensamentos.
Ou pode entrar sem bater e mutar-se de ofício em dedicação à difícil missão de querer dizer tudo em 140 caracteres, um post num site de relacionamentos com meia dúzia de frases ou uma imagem, criando eternos súditos de um vago soberano chamado leitor.
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Marco Gavazza é Publicitário
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