Para um feliz dia a dia dos namorados
André J. Gomes - "Revista Bula"
Na madrugada do dia de hoje, por obra dos sonhos que nos agitam o sono, um anjo descuidado pulou de sua cama no céu rumo ao banheiro, esqueceu a torneira do amor divino aberta e voltou a dormir. Aqui embaixo, o mundo despertou diferente.
Sobre nossas cabeças açoitadas de sol e chuva e agonia desabaram transformações grandiosas. Em cada canto do mundo, esposas desiludidas surpreenderam seus maridos em trabalhos domésticos há tanto ignorados, palavras de afeição invadiram as casas e adoçaram o café, gestos de ternura encontraram casais novos e velhos, amantes de todas as cores e classes e sexos chegaram atrasados ao trabalho.
Os sentimentos que antes pingavam ressequidos sobre nós agora despencam em cachoeiras de estima e admiração e desejo imperioso. Do canil dos amores sem dono, criaturas encantadoras, sorrindo suas bocarras abertas de língua de fora, os rabos num pra lá e pra cá de alegria comovente, vieram correndo fazer festa entre nós.
Até agora, nenhum anjo se deu conta de que a torneira permanece aberta. Então, que seja assim para o resto de nossas vidas. Que aceitemos o amor como trabalho prestado diariamente. Que os amantes se percebam operários esforçados de uma obra incompleta e extraordinária, da qual todos se servirão com liberdade, aplicação e delicadeza.
Seremos assim, cada um de nós, zeladores cuidadosos de nosso maior patrimônio: essa estranha capacidade grandiosa para o amor. Que todos sejamos responsáveis pelas expectativas que criarmos, e que essa posse bendita conduza nossos atos, gestos e ações e nos faça compreender que pessoa nenhuma é propriedade de outra, mas tão simplesmente sua companheira dedicada de viagem.
E que todos os presentes que trocarmos entre nós venham embrulhados no papel tênue da saudade e enfeitados com o laço vermelho da alegria do reencontro esperado.
Que as pessoas com quem estivermos de amores pela vida, e por obra única de nossa tamanha incompetência não pudermos acompanhar, sejam sempre acariciadas de amor delicado.
Com o susto da surpresa, essa onda avassaladora nos redimirá a todos, aí inclusos os solteiros, os mal amados e os mal amantes. Tomados cada um de nós por irrecusáveis sentimentos de elevação, o mundo ganhará novas cores e temperaturas e trilhas sonoras.
Assim o amor escapará do universo grandioso e apertado dos corações em festa para invadir as ruas e os parques, as praças e os corredores dos shoppings, os escritórios gelados, os bares calorosos, os lares abençoados, as academias de ginástica, as vielas e ruas e avenidas do mundo inteiro, se espalhando pela vida em franca e violenta inundação imprescindível.
E que para além de qualquer crença e religião, o olhar generoso de Deus alcance a tudo e a todos, em qualquer canto de dentro ou de fora, como a música leve que vem de longe no espaço e no tempo. Como a lembrança de um bom e velho sentimento. Hoje, amanhã e sempre. Num longo, lindo e interminável dia a dia dos namorados.
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