Szymborska: a prova de que as mulheres
não escrevem somente sobre o amor
Monica Mortone
Um livro sem páginas dobradas e passagens grifadas é o mesmo que uma casa sem janelas.
Quando grifo um parágrafo tenho a sensação de que estou me debruçando sobre uma paisagem na qual devo retornar para que meus olhos possam tragar o que escapou. E no final das contas o que fica é sempre o que escapa.
Da poesia de Wislawa Szymborska muitas coisas me escaparam, inclusive a resposta para a pergunta: por que demorei tanto tempo para ler um livro seu?
A primeira vez que ouvi falar da escritora polonesa foi num recital de poesias no Rio de Janeiro.
Wislawa Szymborska |
Lembro-me que fiquei encantada com a precisão de Szymborska para dizer as coisas e que cheguei a anotar seu nome para procurar o livro depois. Não procurei.
Mas a literatura, especialmente a poesia, tem dessas coisas: sempre nos acha.
Costumo dizer que não escolhemos os autores que lemos, eles é que por algum milagre chegam às nossas mãos e nos escolhem.
Quem nunca comprou um livro pelo título, pela capa, ou por conta do que leu na quarta capa e acabou se apaixonando pelo autor - até então desconhecido - a ponto de buscar ler toda a sua obra depois?
Assim como acontece na vida, as paixões literárias geralmente acontecem quando estamos distraídos.
Um poema, dois poemas, três poemas, dezenove poemas com as páginas dobradas. Inúmeros versos grifados. Foi assim, me debruçando sobre as paisagens de Wislawa Szymborska que entendi que estava completamente apaixonada por sua poesia e dicção.
Há quem diga que as poetisas são demasiado passionais e por isso privilegiam o amor, o desamparo e o desejo carnal na hora de escrever versos.
Pois a polonesa Szymborska está aí para desfazer esse mito.
Ela escreve sobre a assombrosa experiência de existir sem saber como o fazer e sobre a estranha condição humana.
Alguns de seus poemas são pequenos tratados filosóficos:
“Non omnis moriar – uma aflição prematura. Mas será que vivo por inteiro e será que isso me basta? Nunca bastou e muito menos agora. Escolho excluindo porque não há outro jeito, mas o que rejeito é mais numeroso, mais denso, mais insistente do que nunca. À custa de incontáveis perdas - um poeminha”...
No livro "A anatomia da influência, literatura como modo de vida", o crítico literário Harold Bloom diz que a poesia, entre outras coisas, é aquilo que “comunica o que não pode ser transmitido discursivamente” e que “o-poeta-em-um-poeta seculariza o sagrado”.
Pois bem, a vencedora do prêmio Nobel de Literatura de 1996 parece alinhada com o pensamento de Bloom.
Em seu poema Utopia, por exemplo, escreveu:
"Não há estradas senão as de chegada. Os arbustos até pesam sob o peso das respostas"... Szymborska fala sobre a estranheza, sobretudo a estranheza de não saber.
Lembrando que "a estranheza, na verdade, desperta deslumbramento quando não entendemos: imaginação estética quando entendemos" (Harold Bloom).
Assim, também, chegam seus poemas ao leitor: com um misto de deslumbramento e imaginação estética.
Traduzida para o inglês e o italiano, os livros da escritora polonesa fazem muito sucesso em seu país de origem - em apenas uma semana, foram vendidos 10 mil exemplares de Wielka liczba (Grande Número); em 2005, o público devorou as 50 mil cópias da antologia Dwukropek (Dois Pontos).
No ano seguinte, Szymborska, que fumava em demasia, faleceria de câncer no pulmão.
Em tom coloquial, escritos em primeira pessoa, seus poemas dizem muito mais respeito ao nosso “desentendimento humano” do que os poetas herméticos podem sonhar ( ou alcançar).
Sem mais, um poema de Wislawa Szymborska:
Sob uma estrela pequenina
Me desculpe o acaso por chamá-lo necessidade.
Me desculpe a necessidade se ainda assim me engano.
Que a felicidade não se ofenda por tomá-la como minha.
Que os mortos me perdoem por luzirem fracamente na memória.
Me desculpe o tempo pelo tanto de mundo ignorado por segundo.
Me desculpe o amor antigo por sentir o novo como primeiro.
Me perdoem, guerras distantes, por trazer flores para casa.
Me perdoem, feridas abertas, por espetar o dedo.
Me desculpem os que clamam das profundezas pelo disco de minuetos.
Me desculpem a gente nas estações pelo sono das cinco da manhã.
Sinto muito, esperança açulada, se às vezes me rio.
Sinto muito, desertos, se não lhes levo uma colher de água.
E você, falcão, há anos o mesmo, na mesma gaiola,
fitando sem movimento sempre o mesmo ponto,
me absolva, mesmo se você for um pássaro empalhado.
Me desculpe a árvore cortada pelas quatro pernas da mesa.
Me desculpem as grandes perguntas pelas respostas pequenas.
Verdade, não me dê excessiva atenção.
Seriedade, me mostre magnanimidade.
Ature, segredo do ser, se eu puxo os fios das suas vestes.
Não me acuse, alma, por tê-la raramente.
Me desculpe tudo, por não estar em toda parte.
Me desculpem todos, por não saber ser cada um e cada uma.
Sei que, enquanto viver, nada me justifica
já que barro o caminho para mim mesma.
Não me julgues má, fala, por tomar emprestado palavras patéticas,
e depois me esforçar para fazê-las parecer leves.
* * *
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